PELOS VELHOS TEMPOS



TRÊS ANOS ATRÁS:

Chovia a cântaros naquele fim de outono britânico. Harry não estava ainda muito bem, afinal havia passado um mês no hospital entre a vida e a morte. Hermione e todo o St. Mungus estavam desesperados com o seu sumiço. A residência dos Granger ficava relativamente longe do centro de Londres e ele não sabia se a amiga estava em casa àquela hora. Mas ela estava. E Rony também. As pessoas que ele sabia que sempre pudera contar. As pessoas que ele sabia o quanto haviam se sacrificado por ele.

Minutos antes Hermione atendera uma ligação telefônica onde uma chorosa Gina Weasley relatava a sua briga com Harry. Aos gritos (os Weasleys nunca aprenderam a usar direito um telefone) ela contou como o rapaz havia saído da Toca cambaleando, parecendo muito mal. Estava arrependida por ter gritado com ele e ter-lhe dito coisas horríveis.

- Calma, Gina – dizia Hermione, tentando entender o que se passava – Ele saiu andando ou aparatou?

De repente a ligação havia caído. Certamente a amiga não havia colocado uma quantidade de moedas suficiente. A campainha tocou. Rony, andando de um lado para outro pela sala, sobressaltou-se. Aquela deveria ter sido uma noite romântica. Os pais de Hermione estavam na Escócia visitando uma tia e os dois teriam a casa só para eles. Mas o telefone não parava de tocar e as corujas chegavam em profusão. Primeiro Lilá Brown (uma bruxa que sabia usar um telefone) havia ligado para perguntar se Harry estava com ela ou com Rony. Depois Molly lhe mandara uma coruja falando do aparente desaparecimento de Harry, que havia sido procurado na Toca. Depois outra coruja do Ministério da Magia relatando que eles estavam colocando todos os aurores atrás do amigo, suspeitando que algum comparsa do falecido Voldemort poderia tê-lo seqüestrado. Rita Skeeter, com sua sobrinha Anna a tiracolo, havia aparecido em pessoa na casa de Hermione para obter um furo de reportagem sobre o paradeiro do “garoto que sobreviveu”. Hermione bateu a porta na cara das duas abelhudas e amaldiçoou mentalmente o idiota que deu seu endereço para a imprensa. A professora MaCgonagall também enviara uma coruja em resposta à coruja de Hermione, informando que Harry não dera as caras em Hogwarts.

Passando por Rony, que ignorava de onde vinha o som estridente, Hermione abriu a porta com a varinha em punho, pronta para estuporar Rita Skeeter ou qualquer outro jornalista atrás de um furo sobre o desaparecimento do “garoto que sobreviveu”. Mas era o próprio que estava na porta, molhado até os ossos e pálido como um fantasma.

- Acabou – ele disse. E desmaiou.

- Ele gosta de entradas dramáticas – disse Rony, correndo para amparar o amigo, cujos olhos não demonstravam o mesmo senso de humor da frase.

Minutos depois ele acordou. Tinha as roupas secas, coisa que Hermione providenciara com sua varinha e estava no quarto de hóspedes dos Granger. Despertando ainda meio entorpecido por causa de alguma poção que Hermione havia lhe dado, desceu trôpego as escadas até a sala onde Rony e a namorada confabulavam sobre ele.

Quando Hermione viu o amigo, correu até ele e o abraçou. Ele tentou dizer alguma coisa, mas ela o deteve.

- Você não precisa dizer nada agora, Harry. Depois nós ouviremos tudo o que for preciso.
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Como há três anos atrás, acordou num sofá, sentindo que dois pares de olhos, azuis e castanhos, o olhavam com curiosa apreensão. Só que agora estava no seu apartamento e não na confortável casa dos pais de Hermione, onde, tinha certeza que na ocasião havia atrapalhado os planos românticos dos amigos. “Muito bem, Harry Potter”, pensou seu demoniozinho interior, “dá um trabalho imenso ser seu amigo”. Imaginou que havia apenas pensado as últimas palavras, mas disse em voz alta, pois Hermione respondeu:

- Mas eu não trocaria a sua amizade por nada desse mundo.

E se atirou sobre Harry, que com dificuldade via Rony em pé, rindo com a sua atrapalhação para se livrar dos braços da ex-namorada. Depois da manifestação de afeto, a jovem retomou o papel de medibruxa profissional, conjurando instrumentos que pairavam barulhentos em volta do sofá onde Harry estava, apitando e dando informações sobre batimentos cardíacos, pressão arterial, níveis de magia e mais inúmeras coisas que só Hermione parecia entender. Harry tentou duas ou três vezes se levantar, mas foi impedido pela amiga, primeiro de maneira gentil e depois sendo ameaçado por azarações e maldições imperdoáveis.

- Ela não é um doce de pessoa? – perguntou Rony. Mas ele estava visivelmente impressionado com a sua eficiência profissional.

- Mandona e sabe-tudo... – emendou Harry – Sim, você é a minha amiga Hermione, não aquela moça que chegou aqui aos prantos ontem à noite.

- Aos prantos? – perguntou Rony, muito interessado.

- Ah, calem a boca vocês dois! – ralhou a medibruxa, ainda às voltas com os seus instrumentos, mas sorrindo deliciada com as brincadeiras dos amigos.

- E por falar em prantos... – ia dizendo Rony, mas um olhar cortante de Hermione o interrompeu.

- Tenho certeza que Harry falará sobre isso quando estiver pronto – disse a jovem, terminando os exames e fazendo com que os instrumentos retornassem para a sua mala com um volteio elegante de varinha.

- Obrigado, Mione – disse Harry, realmente muito agradecido.
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- Bem, então foi isso – disse Hermione, concluindo a frustrada experiência no congresso na Escócia.

Eles agora estavam na lanchonete favorita de Rony, e ele e Harry já haviam dado dezenas de autógrafos. Hermione achava engraçado o fato de Harry, que desde criança era reconhecido por todo o canto ser ainda tão tímido perante os fãs, e o ruivo se sentir a vontade distribuindo autógrafos e flertando com as garotas. O moreno só relaxava com as crianças. Meninos e meninas pulavam em cima dele quando o reconheciam e Harry brincava com eles sem nenhum constrangimento. Eles adoravam Rony também, mas claramente os pais não aprovavam muito a simpatia dos guris por aquele goleiro grandalhão e indisciplinado.

- Ele adora o senhor – dizia uma mãe, segurando o pestinha do filho, que gritava feliz por ter conseguido um autógrafo do Maluco Weasley – Mas o senhor não deveria dizer aqueles palavrões todos no jogo. O pequeno Frederic agora vive repetindo-os pela casa. Sabe com é, agora com a TV Bruxa...

Rony havia recebido uma multa da Liga Inglesa de Quadribol por ter gritado em alto e bom tom que o juiz do jogo conta os Pegas de Montrose era um monte de bosta de trasgo fedorenta, xingamento que foi perfeitamente captado pela TV Bruxa (“Todas as cores e a emoção do quadribol chegando até você”).

- Mas voltando ao assunto – dizia Rony, depois de se livrar do pequeno Frederic – É uma merda a gente ter vencido uma guerra contra os comparsas de “Você-sabe-quem” e mesmo assim ter que agüentar esse monte de gente preconceituosa. Essa gente deveria ter sido varrida do mundo.

- Hermione, eu juro que não sabia que as minhas contribuições ao St. Mungus tinham atrapalhado a sua vida ao invés de facilitá-la – dizia Harry, que tentava engolir alguma coisa sólida depois da insistência dos dois amigos.

- É claro que a culpa não foi sua, Harry. E o problema não foi apenas o preconceito contra os “sangues-ruins”. Muita gente não gosta de ver uma bruxa de vinte e um anos desenvolvendo experiências com feitiços que bruxos experientes e mais velhos não conseguem realizar.

- Eu sempre disse que o seu cérebro ainda ia acabar te fazendo infeliz – afirmou Rony, engolindo com dificuldade uma enorme porção de ovos com salsichas.

- Ah, claro, eu deveria ser estúpida para ser feliz, como aquelas fãs histéricas que se jogam em cima de você e do Harry – disse Hermione muito contrariada - “Deixa eu segurar o seu bastão de quadribol, senhor Maravilhoso Maluco Weasley” – falou, imitando uma voz de menininha débil.

- Não foi isso que eu quis dizer, Senhora "sou feliz sendo mais inteligente do os reles mortais”! – replicou Rony, já se alternado, as orelhas vermelhas, o que era sempre um perigo em se tratando de um Weasley – E goleiros não usam bastões!

- Por favor, parem! – disse Harry com severidade, antes que Hermione retrucasse e aquela discussão se estendesse até o infinito – Eu sou grato pelo que fizeram por mim hoje cedo, mas vocês estão me dando dor de cabeça. Parem de brigar ou eu vou mandar as duas crianças para a cama sem sobremesa – e acrescentou sorrindo: - Em quartos separados, é claro.

Rony começou a rir, engasgando com a sua refeição. Hermione, depois de alguns segundos, desistiu de sua pose séria e gargalhou com vontade, batendo nas costas de Rony para ajudar a desengasgá-lo. Era tão bom estar com aqueles dois, pensou Harry. Quando Hermione e Rony seguiram caminhos diferentes na vida há dois anos atrás, Harry havia se sentido culpado. Foi uma discussão envolvendo o seu nome, embora de maneira indireta, que precipitou a separação do casal que ele imaginava destinado a passar a vida inteira juntos. De lá para cá a vida tornou ele e o amigo craques do quadribol, Hermione a mais jovem medibruxa do St. Mungus. Sabia que Hermione havia arranjado um namorado que ele considerava abominável e Rony vinha batendo o recorde mundial de camas avulsas, aproveitando-se do prestígio esportivo, que parecia excitar as mulheres.

Pensando bem, só ele, Harry havia ficado sozinho todo esse tempo. Sabia que Gina tivera alguns namorados nos últimos três anos. Gina... Pensar naquela noite chuvosa ainda o matava um pouco. “Vamos, admita, Harry Potter”, rugiu seu demoniozinho interior mais uma vez, “você é um babaca, que se quisesse, poderia ter centenas de mulheres a seus pés, sem mencionar outras partes da anatomia masculina, mas não, você precisa se afundar em culpa e autopiedade, que te faz acordar gritando nas noites em que não consegue, bem, você sabe o que”.

- Tudo bem, Harry? – perguntou Hermione.

- Sim? O que vocês diziam?

- Que ou você fala o que te aflige ou nós vamos interná-lo a força no St. Mungus – disse Rony, que não estava sorrindo, portanto a sentença parecia séria.

- A Mione verificou aqueles instrumentos estranhos e disse que não havia nada errado comigo, não é mesmo?

- Não fisicamente – disse Hermione de maneira sombria – Mas não me diga que uma pessoa que acorda trêmulo e em prantos, pedindo perdão às pessoas e dizendo que um homem morto o acusou de alguma coisa não tem nenhum problema.

- Nós teríamos problemas mentais se acreditássemos que você está legal, cara – emendou Rony.

Harry suspirou profundamente. De maneira inesperada segurou as mãos dos amigos, uma vez que estavam um em cada lado da pequena mesa redonda da lanchonete.

- Eu realmente não queria dar mais trabalho a vocês. Eu sei a dificuldade que vocês tiveram sendo amigos do “garoto que sobreviveu”. De alguma forma eu sinto que a vida de vocês seria muito melhor se a gente não tivesse se conhecido naquela cabine do Expresso Hogwarts, dez anos atrás.

Harry ficou em silêncio por um instante. Antes que os amigos o desmentissem, ele retomou:

- Por outro lado eu sei que lhes devo a verdade. Mas eu ainda não estou preparado. Vocês teriam um pouco de paciência comigo? Pelos velhos tempos?

- Claro, Harry – disse Rony – Mas não demore muito.

- É, ou nós o mandaremos para a cama sem sobremesa, mocinho! – disse Hermione de maneira divertida, mas seus olhos brilhavam de emoção, ainda segurando a mão de Harry e instintivamente procurando também a de Rony.

- E nós sempre estaremos do seu lado. Lembre-se disso.

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