Capitulo XXV



Harry entrou na casa dos Barlow a meia noite. Reconheceu o veículo que estava estacionado junto a casa, e não o surpreendeu ver Rony na sala, tomando uma cerveja.


 


—Como está, advogado Potter?


 


 Em lugar de levantar-se, Rony se limitou a olhar sua cerveja.


 


—Coloquei minha casa à venda hoje. Eu não gostava de ficar ali.


 


Harry grunhiu e se sentou em seu saco de dormir para tirar as botas. Compreendia o mau humor de seu irmão, e sabia que devia animá-lo se não queria que os dois acabassem igualmente tristes.


 


—Nunca gostei daquela casa. Como  não gostava de sua esposa.


 


Sua opinião foi tão fria e certeira que Rony riu.


 


—Bom, foi um grande investimento. Ficarei com um bom lucro na venda.


 


Harry moveu a cabeça em gesto negativo ao ver a cerveja de seu irmão.


 


—Não são tão boas como os cigarros. —declarou— Eu pensava em ir ver você.


 


—Por que?


 


—Para lhe dar uma surra. —respondeu, bocejando— Mas terei que esperar até manhã. Estou muito cansado.


 


—Por alguma razão em particular?


 


—Você beijou a minha garota. —respondeu.


 


Harry pensou que ainda tinha energias suficientes para lhe dar uma boa lição.


 


—Fiz isso? — perguntou Rony, sorridente — Ah, sim. OH, sim... Agora estou lembrando de tudo. E desde quando é sua garota?


 


Harry tirou as calças. Só estava de  cueca e  camisa.


 


—Isso que acontece por viver na cidade. Faz muito tempo que está fora do jogo. Ela agora é minha.


 


—Ela sabe?


 


—Eu sei, e isso basta. —respondeu, convicto e com os olhos fechados— Além disso, tenho intenção de que continue sendo.


 


Rony riu enquanto tomava sua cerveja.


 


—Quer se casar com ela?


 


—Quero ficar com ela. —espetou— E eu gostaria que as coisas continuassem como estão agora.


 


A idéia de casar assustava.


 


Rony achou o assunto muito divertido. Divertido e interessante.


 


—E como vão as coisas com ela?


 


—Muito bem. —respondeu, sentindo seu aroma no saco de dormir— Mas terei que quebrar sua cara de qualquer jeito. Entende, só por hábito.


 


—Entendo. —disse, espreguiçando-se — Embora acredito que se lembre que nunca me pagou por ficar com  Sharilyn Bester, a atual senhora Fenniman.


 


—Somente curei seu coração partido depois  que você a abandonou.


 


—Sim, mas é o hábito. — Harry passou a mão pelo rosto, considerando a questão.


 


—Muito bem, tem razão. Mas Sharilyn, por mais bonita que fosse, não é Gina Weasley.


 


—Nunca vi Gina nua.


 


—Graças a isso que continua vivo. —declarou, cruzando os braços— Enfim, suponho que estamos empatados.


 


—Bem, em todo caso, poderei dormir tranqüilo.


 


 Harry sorriu com a ironia.


 


—Sinto muito por sua casa. Se você o sentir.


 


—Na realidade, não sinto. Me fazia lembrar de muitas coisas. Infelizmente, comportei-me tão mal quanto Bárbara. Tudo teria sido mais fácil se tivéssemos nos limitado a atirar coisas ou gritar um ao outro. —declarou, deixando a garrafa vazia no chão — Não há nada mais desmoralizador que um divórcio civilizado entre duas pessoas que nem conseguiam se preocupar um com o outro.


 


—Bom, é melhor que ter o coração partido.


 


—Não sei. Acredito que preferiria ter tido essa oportunidade.


 


Naquele momento ouviram uns soluços, que vinham do andar de cima.


 


—Pergunte a ela. — sugeriu Harry — Tenho certeza de que não estaria de acordo com você.


 


—Talvez devesse pensar na possibilidade de realizar um exorcismo.


 


Harry sorriu e fechou os olhos, disposto a dormir.


 


—Não. Eu gosto de tê-los ao meu redor. Já estive tempo demais sozinho.


 


 


 


 


 


 


 


 


Harry raramente lembrava de seus sonhos. Por isso pensava que não sonhava, e gostava de dizer que talvez seu consciente preferia as fantasias para poder as desfrutar mais durante os períodos que estivesse acordado.


 


Mas aquela noite sonhou. Ou melhor, teve um pesadelo em que o fogo se elevava contra a lua, enquanto nevava.


 


No sonho, corria desesperadamente enquanto as chamas lhe alcançavam. Seus olhos doíam pelo cansaço e pelo horror que tinha visto.


 


Os homens voavam em pedaços antes de poder sequer gritar. O chão explodindo, cortado pelo fogo dos canhões, e havia sangue por toda parte. Não podia deixar de sentir o cheiro da morte, e tinha a impressão de que nunca conseguiria livrar-se dele.


 


Sentia falta do aroma das magnólias e das rosas, das verdes colinas e dos férteis campos de seu lar. De ter tido lágrimas para derramar, teria chorado recordando a tranqüila água do rio que atravessava a plantação de sua família, a risada de suas irmãs e as canções sussurradas pelos campos.


 


Tinha medo, um medo profundo de que tudo o que tinha conhecido e amado desaparecesse. E só um desejo cruzava sua mente. O desejo de retornar e vê-lo pela última vez.


 


Queria ver seu pai de novo, lhe dizer que seu filho tinha tentado comportar-se como um homem.


 


A batalha rugia em todas partes. Nos campos e inclusive em seu coração. Muitos de seus camaradas do exército do sul jaziam mortos naquelas pedregosas e esquecidas terras de Maryland.


 


Não sabia onde se encontrava. Estava perdido. Não podia ver por causa da fumaça, nem ouvir nada pelo som das armas e pelos aterradores gritos dos homens. De repente, surpreendeu-se a si mesmo correndo para salvar sua vida, correndo como se quisesse encontrar um buraco profundo para se esconder.


 


O medo se misturava com uma sensação de vergonha por ter abandonado o campo de batalha. Tinha dado as costas a sua responsabilidade, e com isso tinha perdido também sua honra. Agora, de algum modo, teria que recuperá-lo.


 


Os bosques eram muito densos, e as folhas caídas cobriam o chão, com cores douradas e avermelhados. Nunca tinha estado tão ao norte, e não tinha tido a oportunidade de cheirar a decadência natural do outono.


 


Só tinha dezessete anos.


 


De repente, alguém apareceu. Só pôde ver um uniforme azul, o uniforme dos ianques. Estava tão assustado que disparou e errou, e o inimigo  fez melhor. A bala se alojou em seu braço. Levado pela dor e pelo horror, gritou de raiva e carregou contra ele com a baioneta.


 


Naquele instante, teria desejado não ver nunca seus olhos, os olhos de um inimigo tão jovem como ele mesmo. Suas baionetas chocaram. Podia sentir o cheiro de sangue e  medo, juntos. Então, a lamina de sua arma se cravou no estômago do ianque. Sentiu uma profunda náusea e caiu ao chão junto com o outro. Permaneceu ali um bom tempo, banhado em seu próprio sangue e no do soldado que acabava de ferir.


 


A dor o estava destroçando. Já não podia pensar em nada, somente em retornar para casa. Então, levantou e viu uma casa distância. Avançou para ela como pôde, tropeçando nas rochas enquanto caminhava entre flores e folhas secas, deixando um rastro  de sangue ao longo de todo o percurso.


 


 Um certo momento, teve a impressão de que alguém o levantava. Pôde ouvir vozes, doces, ouvir uma suave voz que cantava as canções do sul que tanto amava.


 


Aquela mulher tinha um rosto maravilhoso, amável e triste ao mesmo tempo.


 


—Tenho que ir para casa. — disse, agonizando — Tenho que ir para casa.


 


—Esta bem. — prometeu ela — Irá para casa assim que tiver se recuperado.


 


A mulher afastou então o olhar, e seu rosto encantador empalideceu de repente.


 


—Não, não faça isso. Está ferido. — ouviu que dizia — É só um menino, Charles. Não pode fazê-lo...


 


Naquele momento, viu a figura de um homem. Pôde contemplar sua pistola e ouvir suas palavras.


 


—Não permitirei que um canalha confederado invada minha casa. Não permitirei que minha própria esposa cuide de um rebelde.


 


Harry despertou de repente, com o som de um disparo nos ouvidos. Permaneceu quieto um bom tempo, escutando seu eco, até que, ao passar uns segundos, o som desapareceu sob a tranqüila respiração de seu irmão.


 


Estava gelado. Levantou e colocou lenha no fogo. Depois, voltou a sentar-se e observou as chamas enquanto esperava o amanhecer.


 


 


 

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