Capitulo XIX



—Estava com sede. — mentiu, enquanto deixava o copo cheio na pia — Acho que o silêncio me despertou. Não parece estranho o silêncio que há?

—A neve amortece os sons.

—Não, refiro-me à casa. Parece diferente. Mais tranqüila.

—Mesmo os soldados mortos e as mulheres infelizes têm que dormir de vez em quando. — cruzou a cozinha para pegar o copo e beber um gole — Está quase amanhecendo. Uma vez, eu e meus irmãos passamos uma noite aqui, quando éramos pequenos. Acho que já havia falado isso para você.

—Sim. Rony ficava fazendo ruído, e passaram a noite contando histórias de terror e fumando cigarros roubados.

—Exatamente. O caso é que entrei na cozinha. Também estava amanhecendo, mas era verão. Tudo estava tão verde, e os bosques estavam tão densos, que ficavam muito misteriosos. Havia uma nevoa por cima do chão, como um rio. Era muito bonito, e pensei...— deteve-se, encolhendo os ombros.

—Continue. O que pensou?

—Pensei que podia ouvir os tambores, o som dos soldados acampados que se preparavam para a batalha. Podia sentir o cheiro do medo, a excitação, o horror. Pensei que podia ouvir como a casa despertava a meu redor, os sussurros e os ruídos. Estava petrificado, paralisado. Se tivesse podido me mover, eu teria saído correndo. Meus irmãos teriam esfregado isso na minha cara durante anos, mas se minhas pernas conseguissem se mover, teria fugido como um coelho.

—Você só era um menino.

—Isso era o pior. Tinha algo a demonstrar. Passei a noite toda na casa, sem me assustar. E de repente, quando já estava amanhecendo, morria de medo. Quando tudo passou, fiquei olhando pela janela, e pensei que uma casa não poderia comigo. Que nada poderia comigo. Talvez por isso a tenha comprado. Não sei quantas vezes vim aqui sozinho, depois daquilo. Esperava que acontecesse algo, desejava que acontecesse, para demonstrar que eu suportaria. Percorri todas os cômodos da casa. Ouvi coisas, vi coisas, senti coisas. Quando fui embora daqui, há dez anos, prometi que voltaria.

—E agora a casa é sua.

—Sim. — a olhou um pouco envergonhado — Nunca tinha contado isso a ninguém.

—Então, nem eu contarei. — ergueu a mão e acariciou seu rosto — Sejam quais sejam suas razões, está fazendo algo importante. Esta casa esteve abandonada durante muito tempo.

—Ficou com medo de passar a noite aqui?

—Não. Não pela casa.

—E por mim? — perguntou levantando uma sobrancelha.

—Sim. Você sim que me dá medo.

O humor desapareceu de seus olhos.

—Fui muito brusco.

—Não é por isso. — disse, pondo a chaleira no fogão para acalmar-se — Nunca estive com ninguém como com você ontem à noite. Tão descontrolada, tão... ávida. Surpreendo-me um pouco quando penso, e... bem.

Deixou escapar o ar dos pulmões e ficou procurando algo para preparar um café.

—Está surpreendida? Ou arrependida?.

—Não estou arrependida, Harry. — se esforçou para virar e olhá-lo nos olhos — Não tenho por que estar. Simplesmente, estou um pouco inquieta, porque sei exatamente o que pode fazer comigo. Sabia que seria bom fazer amor com você, mas não sabia que seria tão... perturbador. Não há nada em você certo ou previsível. E eu gosto das coisas certas e previsíveis.

—Desejo você agora. Isso era previsível.

—Meu coração pula. — começou a dizer — Literalmente, quando diz essas coisas. Mas eu preciso que meu mundo seja ordenado. — abriu a lata do café e mediu cuidadosamente as colheradas, para demonstrá-lo — Suponho que seus empregados começarão a chegar dentro de uma hora, mais ou menos. Não acredito que este seja o melhor momento para conversar.

—Ninguém vai vir hoje. Há mais de um metro de neve.

—OH.

Sua mão tremeu e deixou cair um pouco de café moído no fogão.

—Estamos presos aqui, amor. Pode falar tudo o que quiser.

—Bem. — limpou a garganta e voltou a olhar para ele — Acredito que é melhor nos dois esclarecermos uma série de coisas.

—Que coisas?

Gina sentiu-se furiosa por hesitar.

—Tudo o que não acabamos de discutir ontem à noite. O fato de que o que temos é uma aventura puramente física e mutuamente satisfatória, sem ataduras nem...

—Complicações?

—É isso. — respondeu, sentindo-se aliviada — Exatamente.

Surpreso por estar zangado ante uma descrição tão fria, apesar de que em teoria refletia seus próprios desejos, coçou a cabeça — Isto esta bastante claro, e a seu gosto. Mas se isso significa que tem a intenção de sair com mais alguém, as coisas se escureceram bastante quando eu tiver um ataque de ciúmes.

—De todas as coisas ridículas...

—E deixa de...

—Cale a boca! — falou furiosa — Não tenho a intenção de sair com ninguém mais enquanto dure nosso relacionamento, mas se...

—Será melhor que pare. — interrompeu Harry — Digamos simplesmente que temos uma relação física exclusiva mutuamente satisfatória. Parece bom para você?

Mais tranqüila, Gina virou-se e encheu o filtro de água fervendo.

—Sim, muito bom.

—Você é difícil, Gina. Quer que assinemos um contrato?

—Só quero estar segura de que os dois esperam o mesmo. — concentrou-se em cobrir o café moído com água — Não tivemos tempo para nos conhecer bem. Agora somos amantes. Não quero que pense que pretendo nada mais.

—E se eu pretender algo mais? — Os dedos de Gina ficaram brancos. Apertava com força a alça da chaleira.

—Pretende algo mais? — Harry se separou dela e ficou olhando pela janela.

—Não.

Gina fechou os olhos, dizendo que se sentia aliviada por ouvir aquela resposta. Só aliviada.

—Então, não há nenhum problema.

—Não, tudo está muito claro. Não quer romantismo, o que me economiza alguns problemas. Não quer promessas, assim não tenho que mentir. Ambos queremos apenas dormir juntos. Isso simplifica as coisas.

—Eu gosto de estar com você. — disse Gina, satisfeita com seu tom despreocupado — se eu não gostasse, não teríamos chegado a tanto. Desejei outros homens, antes.

Harry afastou o cabelo de seu rosto.

—Agora esta tentando me deixar furioso.

O fato que ele não pudesse entender como era difícil para ela ser clara e simplificar as coisas, tornava mais fácil agir com naturalidade. Era estranho, mas não era difícil ser sincera com ele.

—Só era uma observação. Não viria ontem à noite, com a esperança de encontrá-lo aqui, se não me importasse com você.

—Você veio para deixar os candelabros.

Gina nunca tinha percebido que a sinceridade pudesse ser tão divertida.

—É um idiota. — disse, servindo o café — Não acreditou nisso, não é?

Intrigado, Harry pegou a xícara que ela oferecia.

—Sim, acreditei nisso.

—Tolo.

—Talvez eu não goste das mulheres atiradas e agressivas.

—Você adora. De fato, tem a esperança de que o seduza agora mesmo.

—Acha isso?

—Sim. Mas antes quero tomar o café. — Harry a contemplou. Era impecável e delicada até quando bebia.

—Talvez eu só queira que me devolva a camisa. Não me perguntou se podia usá-la.

—Muito bem. — disse, desabotoando a camisa com uma mão — Pega.

Harry tirou o café de sua mão e deixou as duas xícaras a um lado. Gina riu enquanto ele a levava nos braços pelo corredor. De repente, a porta se abriu, deixando entrar o frio. Na entrada havia uma figura coberta de neve.

Denis tirou o capuz e se sacudiu como um cão.

—Olá. — disse sem se alterar — O seu carro esta quase enterrado na neve, Gina.

—OH. — fechou a camisa apressadamente e tentou imitar seu tom normal — Nevou muito.

—Quase um metro. — Imperturbável, sorriu para o irmão — Achei que seria bom vir ajudá-lo.

—Parece que quero que alguém me ajude? — perguntou Harry indignado, entrando na sala e deixando Gina no sofá — Fique aí.

—Harry! — protestou, tentando baixar a camisa para cobrir as pernas — Por favor!

—Fique aí. — repetiu, voltando para o corredor.

—Fizeram café? — perguntou Denis, sentindo o cheiro — Vou querer um pouco.

—Me dê um motivo para que eu não quebre seu pescoço.

Denis tirou as luvas e esfregou as mãos geladas.

—Por vir até aqui no meio de um temporal porque pensei que estava em perigo. — se inclinou, mas não pôde ver o interior da sala — Que pernas ela tem!

—Como quer morrer?

—Foi somente um comentário. — disse, sorrindo — Ei, como eu ia imaginar? Pensei que estava preso aqui e que não tinha como voltar. Sozinho. Depois, quando vi o carro de Gina, pensei que talvez ela tampouco pudesse sair. Acho que vou perguntar se ela quer que eu a leve.

—De mais um passo e não encontrarão seu corpo até a primavera.

—Se eu ganhar, posso ficar com ela? — soltou uma gargalhada ao ver o rosto indignado de Harry — Ouça, não me bata. Estou congelado e me quebraria.

Murmurando ameaças, Harry agarrou seu irmão pelo colarinho do casaco e o levou para cozinha. — Olhe para frente. — pegou a bule de café — Agora beba.

—Eu vou. — anunciou Denis, bebendo diretamente do bule — Esta caindo uma tempestade de neve horrível. — voltou a beber, grato pelo calor — Não tinha intenção de aparecer em seu ninho de amor. Você esta sério com ela?

—Se preocupe com seus assuntos. — Denis deixou a bule da cafeteira em cima da mesa.

—Você sempre foi meu assunto. E eu gosto muito de Gina. Pergunto a sério.

—E o que?

—E nada. — mudou de posição, um pouco envergonhado — Eu gosto, sempre gostei. Tinha pensado em...

Decidiu que seria melhor que não continuasse e ficou assobiando, olhando para outro lado.

—No que tinha pensado?

Denis passou a língua pelos dentes, com precaução. Queria conservar todos eles.

—No que você pensa que eu tinha pensado. Olhe para ela. O que acha que pensaria qualquer homem? A única coisa que fiz foi pensar. Não pode me proibir de pensar. — levantou as mãos — O que quero dizer é que parabéns. Esta com a mulher mais interessante da cidade.

—Nos estamos dormindo juntos. Isso é tudo.

—Por algum lugar terá que começar.

—Ela é diferente, Denis. Não sei o que isso quer dizer, mas é muito diferente. É importante para mim.

Não queria reconhecer isso para si, mas foi fácil confessar para seu irmão.

—Todo mundo tem que cair cedo ou tarde. — disse, dando uma palmada com sua mão gelada no ombro nu de Harry — Até você.

—Eu não disse nada sobre cair. — murmurou. Sabia o que aquilo significava. Apaixonar-se. Estar apaixonado.

—Não era necessário. Olhe; por via das dúvidas, passarei com a máquina de limpar neve. Têm comida?

—Sim, de sobra.

—Então, vou embora. Parece que deixará de nevar no meio da amanhã. Tenho que cuidar dos animais, assim, se precisar de algo, chame antes o Carlos.

—Obrigado. Se você se atrever a olhar para a sala enquanto sai, terei que matá-lo.

—Já vi as pernas dela. — disse, saindo da cozinha — Até mais tarde, Gina.

Assim que ouviu a porta se fechando, Gina apertou a rosto contra os joelhos. Seus ombros tremiam. Ao entrar na sala, Harry fez um gesto de estranheza ao encontrá-la naquela postura defensiva.

—Sinto muito, amor. Deveria ter fechado a porta. — sentou a seu lado — Denis não é um idiota de propósito. Nasceu assim. Não pretendia fazer nada de mal.

Gina emitiu um som estrangulado, e quando levantou a cabeça, as lágrimas corriam por sua face. Estava chorando de tanto rir.

—Imagina a cara de quem visse nós três no corredor? — disse entre gargalhadas — Você e eu seminus, e Denis disfarçado de abominável homem das neves.

—Acha engraçado?

—Não. Parece divertidíssimo — respondeu, sem deixar de ri — Os irmãos Potter. Meu Deus, em que confusão eu me meti!

Encantado com ela, abraçou-a fortemente.

—Devolva minha camisa, querida, e mostrarei.


Continua....

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