Capítulo 4



Perdera a noção do tempo novamente. Tinha a impressão de que semanas haviam se passado. Deveriam estar em outubro, quase em novembro. Mas os dias eram todos iguais. Visitas. Toques. Gritos. Não conseguia encaixar os gritos no espaço e no tempo. Em uma visita, a proposta.





-Sabe, acho que ela já poderia ter alta. O problema é que não há quem possa levá-la. O senhor não gostaria de levá-la? Sabe, ela já está aqui há quase um mês, já acordou algumas vezes, sempre beirando a histeria, por isso a mantivemos sob a Poção do Sono. Mas isso poderia prejudicar o bebê. Já tem por volta de dois meses e meio de gestação. Então, o senhor a levará?



Por que não? Seria uma pessoa para compartilhar o seu inferno. Além disso, sua queda já havia acontecido, ou não? Ela caíra de seu paraíso pelo menos dois meses antes. Mas, por outro lado, por que o faria? Poderia ajudá-lo a trazer à tona de onde conhecia aqueles gritos.

Tomou sua decisão.

Horas mais tarde, seu apartamento servia de morada para duas pessoas. Um anjo caído e um anjo do inferno. Ele a trouxera, adormecida, ainda sob efeito da poção. Sentira seu peso nos braços novamente. Ele a depositara no colchão sem lençóis. Tomara o cuidado de retirar tudo o que pudesse ser usado em uma tentativa dela de concluir sua queda.

Ele sentara-se no chão empoeirado da sala sem móveis. Girava a varinha na mão. Sua varinha, feita especialmente para ele. Tudo na varinha sofrera a ação ou fizera parte de um dragão. Álamo queimado por um dragão. Uma árvore solitária. Corda de coração de dragão. Quase quarenta centímetros. Tirara tantas vidas com ela. Causara tantos gritos com ela.

Sentiu passos leves no piso gelado. Não fez nada. Apenas ergueu os olhos. Fios de seu cabelo loiro platinado lhe caíam sobre os olhos de prata. Ali estava ela. Parada na porta. Iluminada por um facho de luz pálida que entrava através das pesadas cortinas. Linda. Anjo. Finalmente viu os olhos dela. Castanhos. Cheios de medo. Cheios de sofrimento. A pele de pêssego desprovida de cor. Os cabelos ligeiramente desgrenhados. Ruivos. Seus cabelos eram ruivos. Tão pequena. Parecia que iria se desfazer.

Ele levantou-se. Guardou a varinha no bolso. Começou a aproximar-se dela. Quando estava a dez passos dela, ela gritou. Ela virou-se e correu. Em instantes, a porta do quarto batia. Ele ouvia os soluços dela. Soluços familiares.

Recuou, entrando novamente nas sombras, até sentir a parede em suas costas. Manteve as costas na parede enquanto deslizava para o chão empoeirado. Permaneceu ali o resto do dia. Vagava por algum lugar além do real. Mergulhou em escuridão.

Acordou. Estava deitado no chão. As vestes e os cabelos sujos de poeira. Deveria ter limpado o apartamento. As entranhas rugiam novamente. Levantou-se, sem sequer fazer uma tentativa de tirar o pó das roupas e dos cabelos.

Ganhou a rua. Entrou em um bar, onde pediu dois sanduíches. Um para si. Outro para ela. Engoliu o seu rapidamente. Sem perder o estilo Malfoy de comer. Não se conseguia se livrar disso. Estava gravado a ferro e fogo em sua alma. Pôs o outro sanduíche no bolso. Saiu para a rua.

Pisou no apartamento novamente horas mais tarde. Não saberia dizer onde esteve. Tirou o sanduíche do bolso. Estava levemente amassado. Não era digno de um anjo. Mas era comida não era? Isso já bastava. Onde deixaria o sanduíche? Não queria entrar no quarto. Aqueles gritos arruinavam a sanidade de qualquer um. Onde deixaria? Decidiu-se por deixá-lo na bancada de mármore marrom da pia. Deduzia que seria o primeiro lugar a ser revirado em caso de fome.

Voltou a sentar-se no chão, as costas apoiadas na parede. Perdido na escuridão. Olhos prateados. A única coisa que alguém veria naquela escuridão. Ele não enxergava nada. Apenas ouvia. Ouvia mais aguçadamente que o normal. Após o que lhe pareceu a eternidade, ouviu passos. Passos leves e descalços. Passos de anjo. A luz da cozinha acendeu, o cegando por instantes. Minutos depois, os passos voltavam ao quarto.

Permaneceu ali. Perdido no tempo. Foi arrancado de seus devaneios por passos. Os passos agora corriam. Ainda descalços. Os ruídos indicavam que seu anjo havia rejeitado o sanduíche. Deviam ser os enjôos de gravidez. Não se importava. Os barulhos cessaram. Água corria. A água parou de correr. Soluços. Choro convulsivo. Anjos não deveria chorar. Não havia lágrimas no paraíso, havia? Bem, não deveria haver.

Estava em um dilema. O que fazer? Deixar que ela parasse de chorar por conta própria ou ir consola-la? Mas como se consolava uma pessoa? Não sabia. Nunca fora consolado. Nunca consolara alguém. Mas não achava correto que um anjo sofresse sozinho. Mesmo que fosse ao lado de uma alma condenada à escuridão.

Foi para o banheiro. Travava uma batalha interna. Não fazia parte de sua índole ajudar outras pessoas. Antes que a batalha fosse decidida, ele estava na porta do banheiro. Ao vê-la, a batalha foi decidida. Adentrou o banheiro. Estava sentada contra a parede. Os joelhos encolhidos. Ainda soluçava. Dentre os soluços era possível identificar as palavras “Por quê?”.

O que fazer? Terminou por fechar a porta do banheiro e sentar no chão, as costas contra a porta. O joelho direito flexionado. O braço direito apoiado no joelho. A observava. Não sabia se sua presença fora percebida. Ela ergueu a cabeça. O rosto estava lavado de lágrimas. Os olhos injetados e sem brilho. Perfeita. Essa era a palavra. A pele alva. Os cabelos ruivos cacheados. Quem era ela? Qual era a sua história. Estranhamente, ao vê-lo, ela encolheu-se ainda mais. Pânico em seus olhos. Fitou-a. Estudou-a. Um anjo em todo o esplendor de sua queda. Por que ela se encolhia? Sua alma não estava tão condenada a ponto de ferir um anjo. Baixou a cabeça. Fitava o joelho.

Ficou ali. Perdeu a noção do tempo. Sentiu-se observado. Ergueu a cabeça. Ainda encolhida contra a parede, ela o observava. O antebraço esquerdo queimava. Instintivamente, pôs a mão sobre o antebraço. Ergueu novamente o olhar. Horror nos olhos de avelã. Pelo menos não soluçava mais. Ergueu-se e saiu do banheiro. Deixou-a ali. Foi até a janela coberta de poeira. Anoitecia. O crepúsculo se desvanecia. A noite se aproximava, trazendo consigo melancolia e solidão. Ele amava a noite. Era escura como sua alma. Solitária como seu espírito.

A sensação de ser observado voltou. Voltou-se. Ela estava a uma distância suficiente para que ele não conseguisse alcança-la, mas suficientemente próxima para que ele conseguisse ler seu olhar. Baixou seus olhos de prata. O ventre dela já se pronunciava. Era necessário que ela fosse ao hospital fazer os exames. Ela precisava de roupas. Precisava de refeições decentes e regulares. Tão frágil. Tão perdida.

Precisaria de dinheiro. Precisava restaurá-la à sua posição no paraíso. Não como tentativa de salvar sua alma. Sua alma já estava há muito na estrada da perdição. Não havia volta. Mas não era justo. Não era justo que um anjo tivesse de amargar no mesmo inferno que ele.

Precisava ir ao banco. Onde estava a chave de seu cofre em Gringotes? Em seu bolso. Estivera o tempo todo em seu bolso. Saiu do apartamento.

Londres era uma cidade arruinada. Cidade em ruínas. O que uma guerra entre bruxos não fazia?

Foi tragado pela multidão no Beco Diagonal. Que inferno. Conseguiu abrir caminho até o banco. Foi atendido por um duende mal humorado. Odiava duendes. Não sabia por que. Sempre os odiara. Mas o que não odiava? Era preenchido por ódio, apenas para não ser vazio. Não conhecia a alegria ou a esperança. Conhecia o sofrimento e a dor.

O que compraria para ela? Dilema. De novo. Por que diabos ela o punha em tantos dilemas? Se fosse em outro caso, ele faria o que lhe fosse mais proveitoso. Mas não havia ele na situação. Apenas ela. Terminou se decidindo por deixar o dinheiro com ela. Se ela quisesse gastá-lo em um porre fenomenal, que gastasse. Não se importava. Daria a ela a escolha.

Entrou novamente no apartamento. Estava irreconhecível. As janelas escancaradas. O chão limpo. E o perfume dela no ar. As janelas deixavam entrar o frio que assolava a cidade. Foi até a cozinha. Depositou a bolsa de couro de dragão, negra, com o dinheiro que retirara de seu cofre em cima da bancada da pia.

Foi até o quarto. Estava realmente frio ali. No entanto, não cogitava fechar as janelas. Ali estava ela. Encolhida no colchão, de frio. Não lhe parecia justo que um anjo como ela fosse submetido às ações do tempo, como o frio que entrava no quarto. Tirou a varinha do bolso. Sua varinha negra. Sim, era negra. A madeira era negra por ter sido queimada. Com um aceno, fez surgir um cobertor de um tecido negro brilhante, por cima do corpo encolhido dela. Tudo o que conjurava era negro. Negro como sua alma. Ficou contemplando o sono dela. Tão tranqüilo. Tão inocente. Tão diferente dele. O sono dele era atormentado por pesadelos. Daí a sua insônia.

O antebraço voltou a queimar. Será que não o deixariam em paz? Não, até que fossem destruídos. Ele era precioso demais para o Mestre aceitar que o perdera tão fácil. O braço queimou insistemente por alguns minutos. Quando os companheiros traídos viriam atrás dele? Que fossem para o inferno, todos eles. Então sorriu, apenas um lado da boca. Não podiam ir para o inferno. Já estavam nele. Sem controle de seus destinos.

Ela começou a dar mostras de que estava acordando. Quanto tempo ficara ali? Não conseguiu obter a resposta a sua pergunta. Desencostou-se do batente da porta, onde estivera apoiado e foi para o banheiro. Precisava de um banho. Frio, de preferência.

Enquanto a água fria escorria por suas costas, molhando seus cabelos, ele pensou. Pensou em todas as ações que cometera. Ações grandes o suficiente para alterar seu destino. Desligou a água. Apanhou a toalha gasta que havia conjurado. Negra, como sempre. Enxugou os cabelos o suficiente para que eles não pingassem água. Olhando para o estado de suas roupas, conjurou novas roupas.



N/A



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