Dor de Cabeça



DESAPARATARAM DENTRO do perímetro protegido da Toca, o relógio com os ponteiros-foto dos Wesleys batia meia-noite, Harry divisou seu rosto contido num daqueles porta-retratos em forma de colherinha, mesmo no escuro. A Sra. Wesley havia adicionado sua foto ao relógio logo após ele voltar de Hogwarts, como uma forma de preencher o vazio que a morte de um de seus filhos representava, de modo que Harry não poderia impedir, pois ele iria ter que morar com os Wesleys até conseguir um emprego, o largo Grimald número doze estava fora de cogitação.


Os corpos dos moradores deslocavam-se como fantasmas naquela sala escura, levantando o pó por onde quer que passassem, pois fazia tempo que todos se reusavam a limpar a casa para, de alguma forma, preservar o espírito dos seus entes queridos.


Durante o enterro de Fred, ninguém falou uma só palavra, nem mesmo a Sra. Wesley chorou, e como já se passara quase um mês, ela parecia estar prestes a explodir com as angústias que se acumulavam dentro dela, o mesmo ocorria com os outros, e com a casa.


Quando a coruja ministerial pousou numa das janelas da Toca, trazendo a mensagem de que Harry seria condecorado com a Ordem de Merlin Primeira Classe, todos se aproveitaram disso para disfarçar os seus sentimentos, ocupando suas mentes com os preparativos. Mas, agora que aquilo havia acabado, sobravam apenas o vazio em seus corações e o peso da dura realidade.


Harry alcançou primeiro o último andar da Toca, Hermione dormia no quarto no andar de baixo, com Gina. Quando ele deitou na cama, pôde sentir a sua pesada cabeça afundando no travesseiro, tanto que quase o sufocava. Nem ouviu Rony se deitar.


Harry acordou na manhã seguinte sem a mínima disposição, queria que o mundo acabasse em uma cama, não queria sair da cama, faria tudo na cama, viveria o resto de sua vida deitado em sua cama. Mas aquilo não era possível: teria de encarar os fatos e retomar a sua vida normal, se é que ela já houvesse sido normal. Sentou-se na cama, fixou os olhos no relógio amassado de Fabiano, que naquela manhã parecia mais amassado ainda: eram nove e meia.


O sol incidia pelo corredor de um jeito travesso, parecendo estar brincando com Harry, já que para onde quer que virasse o rosto, lá estava ele para perturbar sua visão. Resolveu, portanto, tapar o sol com a palma da mão, e foi assim que chegou à cozinha.


O cômodo estava vazio e silencioso, como todo o resto da casa, que parecia ela mesma dormir. Harry virou-se para a esquerda e encontrou Hermione sentada em um dos sofás, tricotando. A amiga havia reavivado o hábito dos tempos em que era membro do FALE não para libertar elfos, mas para se libertar de si mesma, o que explicava aquele tipo de artesanato em pleno verão.


- Bom dia- disse Harry, sem esperar resposta. Hermione parecia um tanto frenética com as suas agulhas e linhas emaranhadas.


- Bom dia- respondeu a amiga, quase inaudível, sem mover os olhos dos complicados pontos que executava.


Harry então se acomodou no extremo oposto do cômodo, e quando se sentou na poltrona, levantou uma pequena nuvem de pó. Sem ter nada mais que pudesse fazer, pôs-se a levitar os objetos da sala com sua varinha de azevinho e pena de fênix reconstituída. Sua sistemática era exemplar: fazia cada coisa levitar exatamente três segundos se fosse pequena, como uma caneta, por exemplo, cinco se fosse algo como um quadro, e dez se fosse o aparador.


Hermione permanecia inerte da cintura para baixo, como que ouvindo uma grave confissão das suas agulhas, as pernas cruzadas sob um Bichento manhoso que havia se instalado ali sem ninguém perceber.


Ficaram assim durante cerca de dez minutos, quando os únicos ruídos da casa toda eram os objetos tombando inertes, e as agulhas de Hermione roçando nos fios de lã púrpura. De repente, as agulhas de Hermione produziram um novo som, sendo deixadas de lado numa mesinha próxima, bem como o carretel que ocupava boa parte do assento ao lado, para dar espaço a uma Gina sonolenta.


Gina, que não havia cumprimentado os dois, sentou ao lado de Hermione, que havia se movido instintivamente, ela carregava um imenso pôster do seu time: Harpias de Holyhead, que estava decorando com estrelas cintilantes bordadas.


A verdade é que em menos de duas horas, aquele cômodo em especial parecia atrair não só as pessoas da casa, como também, todos os distúrbios que eles desenvolveram tentando esquecer as suas próprias vidas. A Sra. Wesley mexia uma imensa bacia com massa de pão de mel, Rony clicava seu desiluminador, Jorge fazia as vezes de rouxinol, e Percy estava trabalhando no Ministério. O único Wesley que não estava naquela sala era o pai, que estava no galinheiro trabalhando na moto de Sirius.


Inesperadamente, Harry se levantou. Ele havia conseguido fazer todos os objetos da sala levitar, inclusive o sofá, que despencou com um estrondo ao seu movimento repentino.


- Aonde você vai?- perguntou uma Hermione indignada por aquele ritual estar sendo interrompido daquele jeito.


- Vou fazer alguma coisa!- gritou Harry, batendo a porta da cozinha.


Foi até o galpão, onde agarrou uma imensa tesoura, e pôs-se a aparar os arbustos que haviam crescido no jardim desde o casamento de Gui e Fleur. Deu a volta na casa, contornou o hangar, e já estava quase terminando o lago quando Hermione lhe chamou, da varanda:


- Harry! O café está pronto!


Ele caminhou até a casa, sendo seguido pelo Sr. Wesley, que limpava os dedos sujos de graxa com um pano que um dia fora branco.


Sentou-se à mesa. Todas as faces distraídas haviam sido substituídas por um “kit velório”, que parecia estar em promoção. Nem mesmo os pães de mel, que Gina havia preparado em forma de smile pareciam levantar o humor. Permaneceu o silêncio e a mesa foi esvaziando assim que o café esfriou, como se todos obedecessem a ordens programadas com antecedência.


Quando Harry saiu para concluir o seu serviço, foi interrompido por dois acontecimentos bizarros: um embrulho amarelo com as dimensões de um tijolo havia caído do céu em sua cabeça, seguido por uma coruja inconsciente. Ele pegou cuidadosamente o embrulho, como se ele pudesse explodir a qualquer instante. Era feito de papel, e foi rapidamente cercado pelas faces enlutadas. Hermione depositou um galeão na pata da coruja entregadora, que acordou e saiu voando cambaleante.


Para a surpresa geral, o embrulho continha uma edição de luxo do Profeta Diário, a manchete principal dizia, em letras douradas:


 


A QUEDA DAQUELE QUE NÃO DEVE SER NOMEADO


CHEGA AO FIM UM TENEBROSO REGIME


 


Na manhã de ontem, no Átrio do Ministério da Magia, o Sr. Harry Tiago Potter finalmente foi recompensado pela sua inestimável contribuição não só ao mundo bruxo, mas também ao mundo trouxa: a vitória sobre o Lord Voldemort, encerrando definitivamente o tenebroso regime.


Nesta edição especial de quatrocentas páginas, a maior da história deste jornal, está transcrita não só o discurso detalhado do Sr. Potter, como também depoimentos de diversos e renomados historiadores da Magia, aurores, e membros da Suprema Corte, que analisam e endossam o depoimento de Harry.


Confira os assuntos nos encartes:


- O início: A história obscura da infância de Harry, desde o assassinato de seus pais até o ingresso em Hogwarts. (página 5)


- Hogwarts: Os acontecimentos na escola não foram pura coincidência. (página 120)


- Voldemort: Confira os fatos que levaram Tom Riddle a se tornar tão perverso. (página 200)


- Dumbledore: Suas suposições sobre Harry tinham fundamento?(página 295)


- Relíquias da Morte: Sim, registros familiares comprovam sua existência. (página 330)


- Infográfico (página 395)


 


Barnabás Cuffe


Editor Chefe do Profeta Diário Londres, 20 de junho de 1998


 


  O editorial terminava em uma imensa foto de Harry que ocupava todo o resto da página, emoldurada com arabescos dourados que ondulavam diante de uma brisa invisível.


Mal Harry depositou o exemplar sobre a mesa, cada um dos encartes foi destacado e lido vorazmente por todas as pessoas da casa. Eles foram passados de mão em mão, até que todos tivessem praticamente decorado o texto monumental. Suas preces haviam sido atendidas: teriam algo com o que ocupar suas mentes.


A festa só acabou quando a Sra. Wesley anunciou que o jantar estava servido. Sua comida, que havia perdido a qualidade e a diversidade no último mês havia recuperado o sabor, a variedade, e a quantidade.


O jornal realmente foi um tônico para as mentes de todo o mundo: era bom saber que alguma coisa boa acontecia no meio daquele pós-guerra. Até Bichento, que andava afoito, estava mais calmo no colo de Hermione; e o vampiro, que andava traumatizado com o retorno de Rony, retomou a vocação de baterista. Enfim, a vida voltava ao normal, mesmo Harry desacreditando que as coisas fossem melhorar tão rápido, ele estava feliz.


Naquela noite, Hermione convocou uma reunião no quarto de Gina, apenas para elas, Harry e Rony, o qual estranhou o pedido, já imaginando se existia algo nas entrelinhas de “12 Maneiras Infalíveis de se Encantar Bruxas” que dizia respeito à “verdade ou desafio” (ou seria “conseqüência”?).


De fato, naquela reunião não existia nada com relação a jogos de amor, aquilo era sobre um assunto muito mais sério:


- Hem, hem- começou Hermione, lembrando a Profª Umbridge. O quarto estava escuro, mas com as cortinas abertas a luz da lua entrava, deixando a todos na penumbra. Todos estavam com as varinhas acesas e apontadas para o queixo, lembrando os antigos filmes trouxas de terror que Harry assistia na Rua dos Alfeneiros- O assunto hoje é sério- a amiga esperou os amigos assentirem- Não podemos mais viver na ilusão de que tudo está calmo; porque não está! Meus pais estão na Austrália, milhares de Comensais da Morte estão por aí, escondidos, e isso sem contar os Inferi.


Rony parecia contrariado com o fato daquela reunião não ser destinada às brincadeiras maliciosas. Harry, no entanto, pensava que ela era mais do que necessária:


- O Ministério está encobrindo os fatos!- completou ele - É claro que eles estão prendendo dezenas de Comensais por dia em todo o mundo, mas noticiam apenas os fatos desnecessários! Desse jeito estão passando uma imagem de que está tudo bem.


- E agora que essa febre contagiou essa casa, nós temos que dar um fim nisso!- encerrou uma Hermione triunfante.


Ela propôs uma lista detalhada com os afazeres domésticos que todos iriam por em pratica a partir do dia seguinte, para evitar que desenvolvessem novos surtos de ócio. Também ficou decidido que eles iriam publicar um “Manifesto Realista” na edição do Pasquim, se possível do dia seguinte. O manifesto havia sido redigido por Hermione logo após ela terminar a leitura do jornal, e estava sendo lido naquele momento:


 


 


MANIFESTO REALISTA


 


Faz saber aos interessados, e principalmente aos desinteressados, que o nosso mundo não está salvo, embora pareça. Nessa guerra nós vencemos a maior das batalhas, mas a guerra ainda não chegou ao fim: o Ministério faz sua parte, prendendo os Comensais da Morte que estão à solta por aí, mas ainda existem milhares em liberdade: é preciso que fiquemos alerta a essas ameaças, ajudando a acabar de uma vez por todas com esse mal que quase nos dizimou, sem nos deixar levar por essa onda de acontecimentos felizes.


Esperando a contribuição de todos, assinado:


Alegres & Felizes, Porém Preocupados


 


-Está mais para “Nota Realista”- comentou Rony.


- Eu fiz o melhor que pude- retrucou Hermione- Você faria igual se os seus pais estivessem presos em um país completamente desconhecido!


- Mas foi você quem mandou eles para lá.


- Dá para vocês calarem a boca?- apartou Gina, que até aquele momento estava completamente avulsa- Desse jeito vão acabar acordando os meus pais.


- Ei, de que lado você está?- Rony indagou, mas foi interrompido por um forte ruído de chamas:


- Estão satisfeitos agora?- Harry limpava as mãos sujas com as cinzas do papel que um dia fora o “Manifesto/Nota Realista”


- Você está louco?- Hermione abordou-o abismada


- Essa coisa vai causar muita confusão. – justificou Harry- E da próxima vez, convoque uma reunião na qual a pauta principal seja seus pais na Austrália. Aliás, mais cedo ou mais tarde nós vamos ter de ir pra lá resgatá-los, assim como mais cedo ou mais tarde o Ministério irá se pronunciar.


Os três pareciam chocados com a atitude do amigo. Ele, Harry Potter, o Eleito, o que sempre lutava a favor da maioria, estava menosprezando uma das maiores missões da sua vida. Ficaram um instante em silêncio, até que Hermione tomou novamente a palavra:


- É fácil para você dizer isso, não são seus pais que estão longe.


- Talvez porque meus pais sempre estiveram longe! – Harry e Hermione congelaram. Por mais que Harry soubesse que seus pais sempre estiveram com ele no coração, ele nunca tivera um contato físico significativo com eles, pelo menos não que lembrasse. E Hermione sabia disso, estava sendo egoísta, usando dos problemas da época para atingir os seus interesses. Completamente muda e sem ar, caiu no choro:


- D-desc-u-ulpe H-harryy, eu fu-ui tão eg-goísta!


Harry a observou-a com o olhar sereno que ela sempre usava com ele, lembrou de como a amiga sempre o ajudava com os trabalhos escolares, e também nas suas aventuras, de como seus pais devem ter sofrido em deixar a única filha entrar em um mundo completamente desconhecido, de como ela estava querendo retribuir isso tudo.


- Sim, eu a desculpo. – e dizendo isso, ele a abraçou. – Sabe, eu acho que podemos ir falar com o Sr. Lovergood amanhã. – Harry estava realmente arrependido e queria se redimir.


- Sem problema- respondeu a amiga com os olhos inchados- mas amanhã, porque agora eu tenho que descansar.


Realmente ela precisava.

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