Aspereza



A carroça seguia lentamente cruzando o árido terreno. O sol a fustigava implacável e não havia nenhuma árvore ou arbusto que pudesse proteger o boleeiro quando parava para um pequeno descanso. A água carregada cuidadosamente num cantil era seu único alívio.
― Pai? O que é aquilo lá? - perguntou um garoto de aproximadamente treze anos, que acabara de espiar para fora da surrada lona da carroça e avistado uma mancha de cor vinho no meio de tons terracota.
― Não faço idéia. Vamos, rapazes! - gritou para os cavalos, agitando as rédeas e depois, as puxando sutilmente para a esquerda. À medida que se aproximavam, o garoto ficava eufórico, nunca antes tinha visto uma cor bonita como aquela. O pai, porém, temia pelo pior.
― É uma mulher! - berrou o garoto entrando pânico.
― Agüente aqui, filho - disse o pai lhe dando as rédeas e pulando do acento para o chão com rapidez.
― Ela está bem? - quis saber o garoto descendo da carroça também, correndo para perto da mulher, que estava deitada de costas no chão, os braços sobre a cabeça. - Dona? Dona? A senhora está bem? - o garoto cutucou-a. Ela não se mexeu. O pai então a virou de bruços e o garoto soltou um berro.
― É claro que não está, Jimmy. Olhe para ela! Quem será que fez isso com a pobre coitada? Vou levá-la para casa, Jimmy, você chama o doutor! Vá o mais rápido que puder!
― Sim, senhor - obedeceu o garoto, pulando sobre o cavalo que vinha amarrado à traseira da carroça. Tinham acabado de comprá-lo na cidade, as ferraduras estavam gastas precisando urgentemente de troca, mas o pai nada disse, deixou que o filho seguisse caminho enquanto se preocupava em alojar confortavelmente a mulher na carroça.
Quase não conseguiu guiar a carroça. Não tinha demonstrado, mas estava preocupadíssimo com a situação daquela mulher. Forçou ao máximo seus dois cavalos para não se demorar, pois sabia que quando chegasse em casa, o doutor já estaria esperando.

A calmaria dava sensação muito pior do que a agitação toda que passara há minutos atrás. Socorrer a mulher fora o certo a fazer, mas seus nervos estavam à flor da pele, fazia tempo que o doutor entrara no quarto e nem sequer viera até a porta avisar se precisava de algum tipo de ajuda. De repente, seus pensamentos foram cortados pelo ranger da porta abrindo.
― Greig - bufou o doutor passando a mão pela testa -, a moça vai ficar bem. Está muito machucada, mas nada que um bom repouso não cure. Sorte dela vocês a terem encontrado - e o doutor passou a mão sobre a cabeça de Jimmy.
― Obrigado, Edmund - disse Greig apertando a mão do doutor e amigo com muita força.
― Resta saber quem cometeu tal barbaridade. Esperemos que, quando acorde, ela nos conte - e bateu o chapéu na coxa para tirar excesso de pó que havia nele. - Qualquer coisa, me avise, certo? Até!
― Até, Edmund! - despediu-se Greig. - Agora, todos para cama, em silêncio!
Ecoaram passos durante minutos por todos os lados da casa, porém, naquela noite estavam muito mais silenciosos do que de costume.
Era difícil ter uma mulher na casa. Apesar de possuir uma filha de vinte e um anos, havia tempo que outra não entrava ali. Greig era genitor de sete crianças, na verdade, a maioria era adolescente ou adulta, mas para ele sempre seriam crianças, e havia quatro anos que as criava sozinho. Não falavam sobre a mãe naquela casa, era assunto proibido porque ela deixara a casa e a família sem olhar para trás. Sem nenhuma explicação ou remorso.
Agora, sentindo o perfume feminino vindo de muito perto, Greig se pagava pensando na desgraçada, na maldita que fez os filhos sofrerem. Sim, os filhos, pois ele era duro, forte, homem formado há muito, e dificuldades sempre existiram em sua vida, aos montes. Por diversas noites seu coração o fez chorar como nunca antes o tinha feito, e não queria mais sentir-se pequeno, esmigalhado, não queria ter que esconder das pessoas próximas um sofrimento, era como mentir e mentiras eram o que mais odiava. Sofrera com a esposa, mas sofrera menos sem ela. Portanto, decidira-se a esquecer o passado. Sua vida presente era o que realmente importava! E nada lhe dava o direito de comparar a mulher deitada ali em sua cama com a esposa desertora. A moça estava frágil, machucada pelo corpo todo, sendo que era desagradável fixar o olhar nela, o rosto estava totalmente inchado, cheio de hematomas, o canto do lábio superior tinha arrebentado, provavelmente por um soco. A vida era cheia de atropelos. Alguém sempre estava sofrendo. Não! Não queria mais pensar em tristezas. Levantou-se, aproximou-se da cama puxando o cobertor por sobre o braço descoberto de jovem e voltou para a cadeira.
Antes de sentar olhou pela janela, estava amanhecendo, passara quase a noite toda acordado, não só preocupado com a desconhecida, mas com o trabalho que teria pela frente nesse dia. O vizinho mais próximo, Willard McCraft, estava marcando o gado, Greig, que era experiente em relação aos bovinos, havia sido contratado pelo amigo para coordenar o serviço. Contudo, sabia que teria que por as mãos na massa já que aqueles tempos estavam sendo difíceis para se conseguir bons empregados, logo, se quisesse um serviço bem feito, teria que fazê-lo sozinho.
― On... de estou? - a voz rouca da mulher o sobressaltou. Aproximou-se da cama hesitante. - Quem... é... é você?
― Senhora - cumprimentou baixo, o chapéu girando sob os dedos pela aba. - Sou Gregory McCoy... sou dono dessas ter... - o que importava a ela? Como ela saberia de algo se passara o dia todo e, sabe-se lá quanto mais, desacordada? - Encontrei a senhora lá no vale... desmaiada.
Ela silenciou. Um risco de memória iniciava-se mostrando o porquê de aparecer naquele deserto. Olhou para o homem de baixo à cima, já estava claro agora e mesmo estando a luz contra ele, mostrava as roupas surradas, sujas e abarrotas que vestia.
― A senhora está se sentindo melhor? - perguntou ele, tinha voz grossa, mas falava cantado.
― Eu... não... não sei - murmurou. - Mas, agradeço pela ajuda, espero não ter sido um estorvo... - continuou tentando se sentar.
― Ah, não, senhora, não se levante! - disse ele deixando o chapéu cair no chão e aproximando-se mais, empurrou-a gentilmente para perto do travesseiro enquanto a olhava com certa curiosidade. - Eu teria ajudado qualquer um naquelas condições!
Os dois se fitaram. Greig foi quem desistiu primeiro. Deu um passo atrás, ajuntou seu chapéu, rodopiou-o pela aba com os dedos e pigarreou ao ouvi-la suspirar.
― Vou ter que sair, senhora, mas minha filha Nellie está em casa. Vou avisar que a senhora já acordou e pedir que traga algo para a senhora comer.
― Eu agradeço - desabafou a mulher -, no entanto, não a incomode, estou sem fome.
Achou graça no sotaque dela, arrastado, carregado, pronunciando palavras de um jeito totalmente diferente; mal entendeu quando ela disse que não estava com fome, teve que se esforçar. Conhecia outro homem com as mesmas características lingüísticas daquela moça, era um rico conde, lorde, ou seja lá qual a nomenclatura atribuída a ele, vindo da Europa disposto a comprar as terras da região. Desistiu quando uma oportunidade melhor apareceu: trabalhar com o dinheiro das pessoas. Tornou-se banqueiro, enriqueceu mais e comprou metade dos estabelecimentos da cidade, entre eles, o Saloon Mermaid, um lugar de jogatinas, bebidas e prostituição. Possuía também o Grant Hotel Finstere, o maior e mais luxuoso hotel da região, onde muitas pessoas famosas se hospedavam, já que o lugar possuía um grande teatro. Rock Canyon, a cidade, era passagem direta para a grande planície.
― Algum problema, senhor? - pediu a mulher achando entranho ser observada por tanto tempo em silêncio por um homem que nunca havia visto em toda sua vida. Era certo que sua aparência deveria estar horrível, mas um pouco de bom senso ele deveria ter por debaixo daqueles trapos.
― Desculpe, senhora - pediu girando o chapéu com as mãos por outra vez. - Vou deixar a senhora descansar!
Greig, muito envergonhado, saiu do quarto, fechou a porta e apoiou-se na estante mais próxima. A filha o olhou com curiosidade, mas nada disse, continuou fazendo os serviços da casa depois de perceber que o pai não queria conversa.
― A senhora vai descansar mais um pouco. E não precisa levar comida, ela não está com fome - murmurou Greig deixando a cozinha.

O dia estava se pondo, já escurecera. Apenas Nellie, a filha de Greig estava em casa, os outros ainda não haviam voltado da lida. Elliot, o filho caçula, espreitava pelo lado de fora da janela da cozinha, esperando por uma deixa da irmã para entrar na casa. Não demorou muito, Nellie saiu para buscar leite e Elliot entrou, com um pano cuidadosamente dobrado sobre um pedaço liso de madeira, colocou-os sobre a mesa, pegou uma bacia com água fria e depositou-a sobre a madeira. Com cuidado, aproximou-se do fogão a lenha, pegou a chaleira e despejou vagarosamente água fervente dentro da bacia com água fria. Parou de súbito, aguçando a audição, era o cachorro latindo, sua irmã ainda não havia saído do celeiro.
Com pressa, abriu a porta do quarto onde dormia a mulher. Espiou, ela não se mexia. Voltou para a mesa, ergueu a madeira - na sua visão uma bandeja -, com cuidado, e entrou no quarto sem fazer barulho. Andou vagarosa e silenciosamente até perto da cama, colocou tudo sobre a cadeira e espiou mais uma vez para ver se a irmã havia chegado. Não, ainda não. Podia ver a luz do lampião de Nellie ainda no celeiro. Sorriu. Voltou a sua bandeja. Pegou o pano, mergulhou-o n’água, torceu-o e passou-o no rosto da mulher.
― O que está fazendo?
O garoto levou um susto tão grande ao vê-la arregalar os olhos, que permaneceu colado à parede.
― Desculpe-me, não quis assustá-lo, menino - continuou ao ver medo nos olhos marrom-esverdeados. O garoto se mexeu.
― Eu... eu só queria passar um remédio - disse ingenuamente.
A mulher sorriu, o garoto sentiu simpatia e aproximou-se.
― Qual é o seu nome?
― Elliot McCoy.
― Eu sou Kassandra Crabbe.
Os dois sorriram.
― O chefe Pena Branca me deu esse remédio. Disse que as mulheres do povo dele usam nos feridos.
― Chefe Pena Branca? - perguntou intrigada.
― Ele é um índio que trabalha para o pai. É um dos bons. Ele gosta da gente - acrescentou. Kassandra balançou a cabeça positivamente, mas não havia entendido direito sobre o que o garoto falava. Ele começou a passar o remédio outra vez.
― Você não precisa fazer isso, querido - disse Kassandra com pena do garoto, que cuidadosamente espalhava uma fina camada de remédio sobre o rosto ferido dela.
― Eu não me importo. A senhora vai ficar bonita de novo, logo, logo, viu?
― Vou? - riu-se. - E como sabe que sou bonita? Olhe só meu rosto...
― Claro que a senhora é bonita! Sei que é! Dá pra ver de longe... ai! - assustou-se.
― O que foi?
― Doeu?
― Não - riu ela.
― Passei muito remédio em cima da ferida!
― Deixe que eu mesma faço isso... - pediu Kassandra -, você não precisa, e depois, é repugnante, não é, passar a mão sobre o machucado de alguém.
― Ah, dona, se eu cuido de cavalo que é bicho, como é que eu não ia cuidar da senhora que é gente? - falou o garotinho ainda aplicando a emulsão receitada pelo índio. - Não se preocupa, eu já estou terminando.
Não demorou nada e o garoto terminou. Despediu-se de Kassandra e saiu de fininho do quarto. Ela adormeceu pouco depois, o cansaço era mais forte que a vontade de se levantar e sumir dali.
Kassandra não conseguia esquecer o motivo que a fizera aparecer naquele lugar deserto, numa casa solitária rodeada de pastos e animais, num quarto escuro de paredes mofadas e finas por onde ouvia as conversas se estenderem noite adentro, deixando-a acordada e irritada porque seus pensamentos caíam sobre o homem que precipitara sua fuga do aconchego da casa luxuosa e cheia de mordomias que possuía. Não agüentou o choro, mas abafou-o sob as grossas cobertas feitas de lã com enchimento de penas de ganso.
― Dona? - sussurrou uma voz fininha. Kassandra assustou-se, olhou para o lado e viu o garotinho de cabelos marrons desgrenhados. - Por que a senhora está chorando?
Não quis lhe responder, secou as lágrimas rapidamente.
― A senhora sente falta de sua casa, não é?
Ainda sem responder, fixou o olhar na pessoinha falante de aproximadamente uns noventa centímetros de altura.
― Eu sei como é... - continuou ele - sinto falta da minha mãe. Ela foi embora um dia, quando eu tinha assim - e o rapazote mostrou um dedinho. - Não me lembro dela, só a vejo numa foto que o pai guarda lá no armarinho.
― Quantos anos você? - pediu Kassandra, seu sotaque inglês fez o garoto franzir a testa, mas depois de pensar por alguns segundos ele respondeu:
― Tenho assim! - e mostrou uma mão emporcalhada aberta. Ela riu. - Se a senhora quiser eu fico aqui para a senhora não ficar sozinha. Quer?
― Eu...
― Elliot! Seu pestinha! - ralhou um jovem alto, novo. Kassandra se sobressaltou. - O que faz aqui? Está incomodando a senhora... e olha só para você! Nellie não te deu banho?
― Ela esqueceu - riu o menino chispando o quanto antes do quarto.
― Desculpe meu irmão, senhora - o jovem rapaz nem sequer lhe lançou olhar, tinha os olhos fixos nas frestas entre as ripas de madeira do chão. - Com sua licença.

Passaram-se seis dias desde a chegada daquela mulher à casa dos McCoy. O doutor aparecia a cada dois e recomendava apenas descanso. E descanso foi o que Kassandra mais teve. Ninguém a importunava, traziam-lhe o que beber e comer e deixavam-na sozinha. Vez ou outra o senhor McCoy adentrava o quarto, observava rapidamente tudo ao redor e logo saía.
Na segunda semana a aparência de Kassandra era bem melhor. Ela estava melhor. Não sentia mais fortes dores de cabeça nem cansaço corporal. Sentia uma leve dor ao tocar o rosto, mas por causa dos hematomas que agora se tornavam esverdeados, mostrando progressivo sinal de cura.
Depois que toda família McCoy saiu de casa, Kassandra se levantou. Pela primeira vez saiu do quarto e sentou-se na varanda, onde o sol fraco, mas aconchegante, da manhã tocava seus braços. Ela vestia uma camisola florida de mangas curtas, um pouco maior que seu manequim, tinha os pés descalços e balançava-os para sentir a brisa refrescá-los.
― Olá! - cumprimentou Elliot, sentando-se ao lado dela.
― Olá, querido - respondeu com um breve sorriso.
― A senhora saiu do quarto. Que bom!
Kassandra soltou um largo sorriso.
― Eu não falei que a senhora ia voltar a ficar bonita?
― Meu bem...
Ela iniciou a frase, mas foi interrompida pelo ralho do irmão mais velho de Elliot, de cima de seu cavalo de pêlos caramelo muito brilhantes.
― Vá para o estábulo, menino! Deixe a senhora em paz! O pai está de olho em você!
Kassandra e o rapaz se fitaram. Ele tinha olhos castanho-escuros. As sobrancelhas grossas, mas bem delineadas, mostravam certa preocupação, certo interesse. Ou talvez fosse apenas o cuidado que o pai ordenara que tivessem com a hóspede.
― Senhora - ele cumprimentou, e em seguida esporeou o cavalo e saiu num trote lento para bem longe de vista.
Kassandra sentou-se e baixou os olhos. Precisava sair dali. Que estorvo estaria sendo? Um baque surdo ecoou as suas costas, Nellie havia aberto a porta com força e apareceu na varanda assustada. As duas se entreolharam e a moça disse:
― Desculpe, senhora. Tomei um susto grande quando não a vi no quarto...
― Eu já devia tê-lo deixado há dias...
― A senhora está se sentindo bem?
― Estou. Obrigada pela preocupação.
Nellie sorriu, deu meia volta e entrou na casa. Kassandra a seguiu e assim que fechou a porta a jovem a encarou como se perguntasse o que ela estaria fazendo ali.
― Precisa de ajuda? - quis saber Kassandra.
― Ah... não - balbuciou Nellie sem ação. - Vou aprontar a almoço...
― Eu poderia ajudá-la?
A moça arregalou os olhos. Será mesmo que aquela mulher saberia o que era trabalhar numa cozinha? As roupas nas quais ela chegara pareceram a Nellie muito sofisticadas, mostravam que aquela mulher a sua frente deveria pertencer à alta sociedade.
― Meu pai me mataria se pegasse a senhora me ajudando.
― Oras, e quem manda em mim? Seu pai ou eu mesma?
A resposta à pergunta pareceu óbvia para Nellie, mas a moça resolveu abaixar a cabeça e soltar um sorrisinho maroto.
― A senhora quer colocar o vestido em que chegou?
Foi então que Kassandra percebeu: eles a julgavam. Imaginavam que ela seria uma dessas esnobes socialites cheia de serviçais, que sabia somente dar ordens e subjugar seus domésticos.
― Talvez você pudesse me emprestar um de seus vestidos - murmurou para espanto de Nellie. - Acho que temos o mesmo manequim...
― A senhora não iria gostar dos meus vestidos - respondeu Nellie parecendo ofendida, na verdade estava sendo sincera -, são todos exatamente parecidos com este que visto! - Kassandra não deixou de sentir pena, porém, tão rápido quanto a sentiu se recuperou e disse:
― Então me consiga um vestido desses porque esta camisola vai me deixar envergonhada na frente de sua família.
Nellie ainda não estava convencida de que a mulher a sua frente não fosse uma dondoca da cidade. Seu pai havia dito que era inglesa, e se ela fosse metade do que o dono da cidade era, a expulsaria daquela casa o quanto antes.

Assim que o almoço foi posto à mesa, Nellie tocou o sino que ficava na varanda da casa. E sem demora os irmãos começaram a aparecer. Todos pela porta de trás, onde havia um grande cocho. Lá se asseavam para depois entrarem na cozinha e assentarem-se ao redor da grande mesa. E foram entrando pessoas: jovens e adolescentes, e todos a encaravam com certa estranheza, mas nada diziam apenas se sentavam e baixavam os olhos para os pratos.
Quem falou foi Elliot, que entrou correndo na cozinha ao ver Kassandra de pé num lindo vestido azul cetim. Atrás dele estavam Greig e o filho mais velho, Andrew, os dois de queixos caídos.
― Eu disse que ela era linda! - falou o pequenino em alto tom, o que tirou o pai do transe. Greig fulminou Nellie com o olhar, enquanto Andrew não lhe tirava os olhos. - Esse vestido é lindo, não é, pai?
― É o vestido da mãe - falou um dos meninos baixinho. Greig, sem ação, apenas sorriu. Kassandra, envergonhada por estar usando um vestido que não lhe pertencia, quebrou o gelo falando:
― Desculpe-me por isto - e tocou no vestido. - Abri o guarda-roupa e havia vários deles - percebeu que a explicação não estava lhe ajudando em nada, então mudou o assunto. - Como não tenho feito nada além de comer e dormir nesta casa, eu decidi agradecê-los e agradá-los pela hospitalidade: preparei-lhes uma sobremesa de maçã.
A meninada aplaudiu alto, mas assim que o pai pigarreou, calaram-se.
― A senhora não devia estar se esforçando - Greig saiu do choque, parecia zangado agora.
― Não foi esforço algum, senhor McCoy.
Ele ergueu as sobrancelhas e um leve sorriso perpassou-lhe ao rosto. Ela lembrava-se de seu nome. Contudo, ele percebeu que não tinha sido hospitaleiro o suficiente, havia esquecido de apresentar a família.
― Ah, claro! - falou alto, num risinho. - Vou apresentar à senhora os meus filhos. - Greig começou pelo mais velho, Andrew, o jovem rapaz que por duas vezes afastara o irmão mais novo da presença de Kassandra.
Andrew se aproximou com os olhos no chão. Kassandra lhe estendeu a mão e Andrew a tomou beijando-a levemente. Ela sorriu e o rapaz se afastou. Greig seguiu apresentando do maior para o menor. Andrew, 23 anos; Nellie, 21 anos; Luc, 19 anos; Cliff, 17 anos; Randy, 15 anos; Jimmy, 13 anos e o temporão Elliot, de 5 anos. Andrew e Elliot tinham os cabelos castanhos rebeldes, levemente compridos, eram parecidíssimos com o pai. Os outros meninos tinham cabelos mais claros e Nellie os tinha bem loiros. Era a imagem e semelhança da mãe.
Almoçaram num profundo silêncio. Com toda certeza a presença de Kassandra estava interferindo no dia-a-dia daquela família. Depois do almoço ela ajudou Nellie nos afazeres da cozinha, mas sentia certa hostilidade vinda da moça. Fingindo um leve mal estar, Kassandra se retirou indo se sentar ao pé da janela no quarto que lhe fora dado. A semana que se seguiu foi assim. Exatamente assim.
Era uma quarta-feira. Da janela de seu quarto Kassandra viu quando Nellie entrou no celeiro e logo depois saiu montada no lombo de um cavalo pequeno. Então levantou e voltou à sala, depois à cozinha, à outra saleta logo ao lado de seu quarto. Seus olhos subiram a escadaria e hesitavam em subir. Sentia pena daquela gente. Como poderiam viver num casebre daqueles? Subiu os primeiros degraus e parou. Não era certo bisbilhotar. E se alguém a pegasse? Mas onde mais poderia ir? Continuou subindo e reparou que havia marcas de quadros faltantes nas paredes que levavam ao andar superior. Seu palpite caía sobre a mãe ausente. Talvez falecida por causa de alguma doença. Mas também, com tantos filhos, quem sobreviveria? Era um escândalo.
O hall do andar de cima parecia bem melhor cuidado do que a parte inferior da casa. Ali as paredes eram claras, havia um alto vaso de flores do campo e um bonito móvel encostado à parede, amparando um lampião e dois porta-retratos. Eram fotos de crianças. Nos dois quartos que davam para frente da casa havia duas camas cada. Estavam arrumados e calças masculinas jaziam dispostas sobre as camas.
O quarto à direita, nos fundos, era provavelmente o da moça. Era arrumado e perfumado por mais flores. As cortinas também tinham tons alegres e claros. Definitivamente o quarto de uma garota. O seguinte pareceu ter sido assolado por um vendaval. Tudo estava espalhado por todo canto. Brinquedos de madeira, roupas, era uma miscelânea de objetos. Kassandra caminhou para a última porta e a empurrou lentamente. Outro quarto muito bem arrumado, mas com escuros móveis e cortinas. Sobre a mesinha de cabeceira havia um livro de Direito. Parecia novo, mas estava gasto. Kassandra se aproximou e descobriu que o livro era recente, mas havia sido devorado por traças nas extremidades. Será que o filho mais velho cursara alguma faculdade? Bem, não seria impossível, mas aquela pobreza não lhe dava muitas chances e provavelmente não terminara já que estava vivendo ali.
― Andrew é Bacharel.
A voz fez Kassandra dar um salto e gritar de susto.
― Des... desculpe, senhora! - era Greig McCoy adentrando o aposento. - Não foi minha intenção...
Ela tinha a mão sobre o coração, os olhos fechados, mas falou:
― Eu é que devo me desculpar por bisbilhotar em sua casa.
― Não há muito que se fazer por essas bandas... - sussurrou ele e pela segunda vez Kassandra pôde perceber um sorriso nascendo no canto dos lábios dele.
Os dois se olharam, ela se desculpou uma segunda vez, mas puxando conversa, disse:
― Seu filho é Bacharel? E o que faz aqui?
Greig pareceu envergonhado. Olhou em volta e apertou os dedos no chapéu. Kassandra percebeu que fora grosseira e mal-educada, desculpou-se outra vez.
― Bem, senhora, é uma história triste. Mas resumindo: ele não quis ficar na cidade e me deixar sozinho para cuidar da família.
Kassandra sorriu.
― Entendo. Vejo que se amam muito - ela tentou amenizar o rombo que havia feito no ego do senhor McCoy.
― Sim, sim - balbuciou ele. - Tenho algo para lhe entregar, senhora. Venha comigo.
Desceram a escadaria e dobraram à esquerda, entrando na saleta defronte o quarto principal. McCoy estendeu o braço indicando a Kassandra uma poltrona logo à frente e depois de pegar algo na estante, ele mesmo se sentou.
― Encontrei isto ao lado da senhora naquela tarde lá no... no... - mas ele não terminou a frase, sentia em se lembrar daquele terrível dia. Kassandra estendeu a mão e ele lhe entregou uma bolsa feita com o mesmo tecido que seu vestido bordô. - Nellie remendou seu vestido, senhora. Nem mesmo a melhor costureira teria feito tal façanha. A menina é boa com a agulha, tenho que admitir.
― E com a comida - sorriu ela. Ele também sorriu e a luz do sol refletida no chão de madeira lustrado da saleta mostrou um homem diferente. Um homem bonito, muito bonito. Humilde, mas forte e experiente. Eles se olharam por momentos até que Kassandra falou: - Bem, meus poucos pertences. Que bom que estão a salvo. O senhor poderia ter pego para pagar o doutor - ela mostrou o dinheiro.
― Ninguém mexeu em sua bolsa, senhora. Nem mesmo eu. Não saberia lhe dizer o que há ali dentro.
A verdade era que todo o dinheiro, centavo por centavo, encontrava-se como Kassandra o havia deixado no dia em que chegara àquele lugar. Até mesmo o folhetim de propaganda de um show, que lhe fora entregue no trem, por ela logo amassado... Tudo estava lá sem ser tocado. Sentiu-se a pior das criaturas naquele instante. Como pudera mexericar pela casa afora quando o homem nem sequer abrira sua bolsa para saber quem era ela?
― O que foi, senhora? - pediu McCoy ao ver a expressão de angústia no rosto abatido da mulher. Ela tinha as mãos sobre a boca e uma lágrima rolou pela face. - Senhora? - ele se ajoelhou diante dela e tirou-lhe as mãos do rosto. - Qual o problema?
Kassandra desviou seu olhar dele e mirou a almofada surrada no sofá ali adiante.
― Vou deixá-la sozinha - respondeu ele pigarreando e se colocando rapidamente de pé. - Não quis ser atrevido, senhora, me perdoe.
Kassandra nem conseguiu responder. Levantou e correu para seu quarto. McCoy permaneceu de pé, sem graça, na saleta. Naquela noite, não saiu para jantar.

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