Despedidas



A noite estava escura como breu e foi necessário o brilho vindo das varinhas para que um pequeno grupo de bruxos descesse uma colina íngreme. Lúcio Malfoy caminhava com segurança entre eles. Tivera tempo de estudar cada meandro, cada centímetro de terra, cada declive. Era lá que vinha passando seus dias desde que escapara de Azkaban. Até descobrirem o segredo da passagem, dedicara muitas horas ao estudo de mapas e textos antigos. Além de esgotar Alastor Moody num interrogatório capaz de arrancar memórias dos subterrâneos da mente. Roubar informações de um auror era sempre muito difícil. Especialmente um da qualidade de Olho Tonto. Ele tinha habilidade para esconder segredos, mas não resistira à ação do Senhor das Trevas. E assim revelara os detalhes de uma conversa que tivera muitos anos atrás com Lovett, o antigo colega de Malfoy. “Maldito! Ele nunca quis dividir o que sabia comigo”, e olhou de esguelha para um Comensal que vinha mais atrás.

Não era o único que maldizia. Lorde Voldemort vinha em silêncio, ruminando o final da batalha. Não conseguira dominar totalmente Harry Potter. E isso o exasperava. Afinal, ele era somente um garoto. Sem dúvida, era o jovem mais extraordinário que tivera a chance de conhecer. Sua força e sua magia seriam insuperáveis se ele se aliasse às trevas. Mas se isso ocorresse teria um inimigo ainda pior. Teria um competidor. Precisava eliminá-lo agora antes que fosse tarde. E talvez a saída fosse atacá-lo por onde não esperava. Ou então atraí-lo para onde as sombras tratassem de engoli-lo. Enquanto ele não atingisse sua maturidade como bruxo poderia triunfar. Precisava de um novo plano. Algo capaz de tirar de vez a base de segurança de Harry. Uma idéia surgiu em sua mente.

- Lovett, mande aquele elfo doméstico preparar a infusão de novo. Vou fazer mais uma visita ao nosso amigo. Creio que ele tem coisas interessantes a me dizer a respeito de Harry Potter.

O Comensal acelerou os passos e entrou primeiro na cabana de caça. O refúgio ficava próximo, muito próximo da passagem por onde Voldemort acessara o submundo.





*****




Faixas pretas adornavam o salão principal de Hogwarts. O dia estava para raiar e velas brancas flutuavam pelo ar. Vasos de flores montados por Madame Sprout estavam espalhados pelos cantos e no centro, sobre uma mesa, jazia o corpo do guarda-caças. O professor Flitwick deixava o recinto ao lado de Dumbledore, que passara o resto da noite no local. Tinham de providenciar os últimos preparativos. Três monitores estavam presentes. Um deles era Gina Weasley. Dormira um pouco, mas despertara ainda de madrugada, assombrada pelos pesadelos. Por isso, decidira descer. Tomara o lugar de Hermione, que cabeceava de sono e que exibia olheiras. Ambas tinham conversado sobre tudo o que acontecera, do minuto em que deixaram o castelo até a hora em que se reencontraram na enfermaria. A ruiva só omitira o encontro com Cassandra. Hermione voltou para o dormitório para repousar antes do enterro. E Gina pôde dar livre vazão aos pensamentos. Sentia-se um pouco magoada com Harry, mas perdoava-lhe a atitude. Para ele, era um golpe duríssimo perder Hagrid.

Divisou algumas cadeiras ao fundo e escolheu uma delas para se instalar. O tempo se arrastava e os dois monitores que ainda estavam no salão se despediram. Gina ficou absolutamente só, entregue à tristeza. A vida tinha dado tantas voltas que ela se via ali, guardando um segredo quando o mais comum seria que Hermione, Rony e Harry compartilhassem uma informação de bastidor. Puxou uma cadeira onde apoiou os pés e a cabeça. As mechas ruivas cobriram seu rosto. Estava para terminar o sexto ano e se impressionava com o grau de desolação que o momento atingira. Fosse em outros tempos, ela estaria ansiosa. Em breve, atingiria a idade para aparatar e ter direito a tantas coisas que lhe eram negadas agora. Mas agora o que restava era a melancolia e a angústia de carregar o fardo da nova profecia. Distraída assim, não reparou que mais alguém entrara na sala. Alguém que a observava com atenção e em silêncio.

Harry tinha tomado um banho, trocara de roupa e dera umas voltas pelo jardim de Hogwarts em busca de paz de espírito. O sono não viera e ele se sentia profundamente cansado. Andara a esmo até que decidiu que já estava mais calmo. Não arrancara a imagem de Belatrix de sua mente. Mas pelo menos apaziguara a raiva que sentira de Gina por impedi-lo de se vingar. Quanto mais pensava nela, mais lhe doía o peito. Não devia ter gritado com ela. Sabia que a garota apenas tentara protegê-lo. Do quê? Não desconfiava. Lembrou-se de como a caçula dos Weasley lutara bravamente. Suspirou. Gina seria uma mulher e tanto. Pena que não teria condições de desfrutar disso. Não poderia expô-la aos perigos que sua sina impunha. Pensou em Sirius e Hagrid mortos. Seus cabelos se eriçaram. Odiava Belatrix com todas suas forças. E com esse sentimento negativo retornou ao castelo e entrou no salão principal.

A primeira coisa que viu foi o corpo de Hagrid sobre a mesa. Depois, desviou o olhar para os fundos para verificar se havia mais alguém no local. Gina estava sentada numa cadeira, com a cabeça apoiada no encosto de outra. A cabeleira vermelha se desmanchava em cascata, cobrindo-lhe parcialmente o rosto. A visão trouxe a Harry duas sensações diferentes. A primeira, a emoção de encontrá-la. Desde o momento em que Voldemort invadira seu corpo, o sentimento por ela parecia ter aumentado. Sua vontade era abraçá-la e pedir que nunca saísse de perto dele. Mas a segunda emoção que teve foi a da frustração. Gina não lhe permitira vingar o amigo e assim diminuir a dor e a culpa de assistir impotente a derrocada de Hagrid. O rapaz experimentou um gosto amargo na boca. Para ele, era como ser traído. E ser traído pela pessoa que amava era demais. Por um minuto, a angústia deu-lhe vontade de chorar. Um bolo se formou na garganta.

Gina teve a impressão de que mais alguém estava no salão. Ergueu a cabeça e notou dois olhos verdes úmidos fixos nela. Mas uma sombra surgiu nas retinas e o rapaz virou o rosto para Hagrid. Não trocaram palavras, embora dividissem o mesmo espaço. “Isso não é justo comigo”, pensou a garota, que voltara a abaixar a cabeça, escondendo o rosto entre as mechas ruivas e deixando escapar algumas lágrimas que teimavam em aparecer. Estava cogitando se iria até Harry quando Draco Malfoy surgiu. O sonserino hesitou assim que viu o rival. Porém ao perceber que Gina estava ao fundo, saiu de perto de Harry sem fazer ruído. Nada escapou ao grifinório, no entanto. E uma pontada de ciúme o assaltou mais uma vez. Draco se aproximou da artilheira e tocou-lhe o ombro, fazendo uma pressão suave. “Harry?”, surpreendeu-se ela e ergueu a cabeça. Sua decepção ficou estampada no rosto.

- Draco? Você? Aqui? – falou baixinho, incrédula.

O sonserino deu um suspiro de enfado. “Sim, sou eu. Não o Harry”, murmurou entre dentes. Gina tentou enxugar os olhos com as mãos. E ele logo retirou um lenço das vestes para oferecer à garota.

- Não. Obrigada. Eu tenho um que sempre está comigo – e vasculhou os bolsos em busca do lenço no qual bordara suas iniciais. Estranhou que não o encontrasse, mas deu de ombros. – Você é a última pessoa que pensei que viesse aqui. Você não gostava de Hagrid!

- Ah, qual é, Gina? Ele nunca foi bom professor.

- Ele ensinou coisas muito boas para mim.

- É. Sob o risco de você perder um dedo. Tá bom. Não vou falar mal dele. Afinal, o cara tá morto.

A garota se zangou.

- Por que não vai embora já que está claro que o Hagrid não era alguém que você admirava?

- Por que você está sempre querendo brigar comigo quando quero ajudar? Eu sei que você gostava muito dele. Por isso, vim. Quero ser solidário com a sua dor, Gina. E também tem o fato de ter sido um bom guardião. Isso, sim, era uma tarefa talhada para ele.

- Você não entende, Draco. Ele era bom de verdade – disse para alfinetar em seguida. - Não é que nem você, que faz as coisas por interesse.

O rapaz arregalou os olhos. Deu uma risadinha de deboche.

- Eu devo mesmo ser muito idiota. Levo cada patada sua que nem acredito! Até quando quero ser legal. E olha o que você tem em troca. Avalia bem a situação. Nós três estamos aqui, só que o senhor maravilha nem olha para você. Não fala com você. Ignora a sua existência. Acha que ele se importa com o que você está sentindo?

- Não tem nada a ver você falar do Harry – sibilou. – E ele já falou comigo e agora quer ficar um pouco sozinho – mentiu.

- Se querem ficar de cochichos, saiam daqui – vociferou Harry, incapaz de tolerar o zum-zum da conversa dos dois. Não conseguira ouvir nada. E o ciúmes atingira o nível máximo.

Draco lançou um olhar zombeteiro para ele. Gina preferiu ficar quieta. Mas não se moveu do lugar. O sonserino caminhou vagarosamente, desafiando Harry. Quando estava ao lado dele, já perto da porta, virou-se para ele e murmurou com sarcasmo:

- Que raios de herói você pretende ser senão consegue controlar seu humor, Potter?

- Eu não sou herói nenhum! – disse, irritado, voltando o rosto para Draco.

- Nós dois sabemos que você não é. Acho que está na hora de começar a mostrar isso para os outros. Antes que eles se decepcionem. Com esses seus ataques, você está destruindo sua imagem de senhor maravilha – ironizou.

Harry ergueu a varinha com agilidade e a colocou sob o queixo de Draco, como se fosse uma espada. O sonserino se espantou com a reação rápida. E teve a impressão de que os olhos do apanhador da Grifinória estavam negros.

- Por Merlin, ele já estava de saída, Harry – assustou-se Gina.

A garota saltou da cadeira e veio correndo ao encontro de ambos. Harry sentiu uma raiva profunda de vê-la partir em socorro de Draco. O salão subitamente recebeu uma lufada de vento gelado e a temperatura caiu bruscamente.

- Hagrid nunca significou nada para o Malfoy! Ele não tinha de estar aqui – resmungou com a voz rouca.

- Mas você não pode impedir o Draco de...

- Draco?! Vocês estão íntimos, não?! Quer saber? Isso não me interessa nem um pouco - sibilou. E dirigindo-se a Malfoy fuzilou – Suma da minha vista!

Harry guardou a varinha nas vestes e deu as costas para o rival. Draco se sentiu insultado com o desprezo, mas Gina o empurrou com as mãos, sussurrando que se fosse. O monitor da Sonserina se afastou, deixando os dois a sós. A garota olhou para o amigo com tristeza. Harry, por sua vez, fervia. “Maldito Malfoy! Malditos todos os Malfoys!”, pensou. E se lembrou de Belatrix Lestrange, parente distante de Draco. Seu peito se encheu de ódio. “São todos da mesma linhagem! Corja de assassinos!”. Relanceou um olhar para Hagrid. “Eu vou me vingar! Isso não vai ficar assim!”. E estava tão furioso que seu corpo vibrava. Uma rajada forte de vento frio adentrou o salão, apagou as velas flutuantes e revirou as cadeiras. Gina acionou sua varinha.

- Lumus!

A luz revelou o rosto de Harry transfigurado. A face se contraía numa expressão de ódio e ele parecia alheio ao mundo, à desordem que a rajada provocara. Gina decidiu tocar o amigo no ombro.

- O que aconteceu? – perguntou.

Uma névoa branca escapara de seus lábios. O salão estava muito gelado e a jovem tremeu. O contato quente de suas mãos e sua voz trouxeram Harry de volta. Ele mesmo não entendia o que tinha acontecido. Sentia-se enjoado e debilitado. Mas não queria demonstrar sua fraqueza à ruiva.

- Nada. Foi só um vento.

- Você está pálido. Está sentindo alguma coisa.

- Não. Nada. Eu ainda não dormi. É isso – respondeu, contrafeito. – E pare de me perturbar.

Harry deixou a sala em seguida. Gina arrumou as cadeiras no salão e reacendeu as velas flutuantes com movimentos da varinha. E então foi sua vez de se sentir perturbada. Acabava de descobrir que todas as flores que Madame Sprout arranjara com tanto capricho estavam ressequidas. Mortas.





*****




Os primeiros raios de sol iluminaram o salão onde Hagrid repousava. Alvo Dumbledore assumira seu lugar na mesa dos professores e dava início a cerimônia de despedida do guarda-caças de Hogwarts. Alunos, professores e funcionários da escola vestiram capas negras. Os elfos domésticos carregavam flores nas mãos e os fantasmas flutuavam baixo em sinal de respeito. Até a Murta deixara seu banheiro para ver as honras fúnebres. Harry, que perambulara o restante da madrugada pelos jardins do castelo, tinha voltado pouco antes de amanhecer e se sentira grato por ver que os Weasley, exceto Rony – ainda na enfermaria – estavam presentes. Lupin, Tonks, Mundungo e Podmore também estavam lá. Pensou em Sirius. O padrinho tinha sido enterrado sem demora no mausoléu dos Black. O Ministério da Magia se encarregara do serviço porque não queria abrir espaço para homenagens ao bruxo que ainda considerava proscrito. Arrependeu-se de nunca antes ter feito uma visita ao túmulo do padrinho. A angústia fechou sua garganta. “Eu não sirvo para nada mesmo”, lamentou-se, acreditando piamente que era o último dos homens.

Hermione, que estava numa mesa junto com os outros monitores, lhe fez um sinal para erguer a cabeça. Ele não ligou. Desviou o rosto. Até porque olhar para Hermione era o mesmo que olhar para Gina. As duas estavam juntas. E perto de Gina estava Draco Malfoy. Naquele instante, não tinha ânimo nem mesmo para odiar o rival. Sua mente se perdeu, vagando entre as cenas das quedas de Sirius e Hagrid. Ambas tinham ocorrido diante dele. E nenhuma das duas ele conseguira evitar. Não ouvia Dumbledore contando em poucas palavras o que acontecera na campina e quais as dimensões da nova ameaça que enfrentavam. Captava apenas trechos do discurso do diretor. E não se deu conta das passagens em que ele lhe atribuía momentos de bravura. Não percebeu os murmúrios de admiração de alguns estudantes. Um tapa amistoso de Colin chamou sua atenção.

- Aí, Harry! Mostre para esses Comensais o valor da Grifinória.

Teve ganas de responder que não havia valor algum. Que ele fracassara. Dumbledore pigarreou.

- Devo também destacar a preciosa ajuda da jovem Gina Weasley. Sem ela, não estaríamos aqui.

Uma sucessão de palmas discretas se fez ouvir. Harry, amargurado, só conseguia pensar que Hagrid não estava ali. Esforçou-se para aplaudir a garota, mas logo abaixou os braços. Corada, Gina notou o movimento do rapaz. Entristeceu-se. “Ele ainda está com raiva de mim”, imaginou. Dumbledore prosseguiu o relato, agradecendo a ajuda dos professores Snape, McKinley, McGonagall e os demais. E em seguida elogiou o trabalho de Hermione, Rony e Draco. Ao ouvir o último nome, Harry estremeceu. Olhou para Draco, que retribuiu a atenção com um sorriso sarcástico. Sentiu-se ainda pior. A vontade era deixar imediatamente o salão, em sinal de protesto. Mas não abandonaria Hagrid. O diretor, então, passou para a parte final do discurso. Enalteceu as qualidades do guarda-caça e pediu que todos guardassem em seus corações os bons momentos vividos com ele.

- Acima de tudo, Hagrid era um homem sensível. Ele gostaria de ser lembrado com alegria. Por isso, peço que lutem contra a tristeza. Saudade sim. Ela é válida. Mas não se entreguem a pensamentos que nos maltratam. A idéias negativas. A vida prossegue!

Um cortejo se formou. Por magia, o corpo de Hagrid foi carregado e uma chuva de pétalas cobriu o caminho. Harry se afastou de Hermione. Queria ficar sozinho e andava quase colado em Snape. Ele sabia que nenhum estudante gostaria de ficar próximo do professor de Poções. Chegaram num trecho mais descampado onde se iniciava uma trilha para a Floresta Proibida. Filch já havia escavado a terra. Alguns centauros se encontravam nas imediações, prestando homenagem ao guarda-caça. Harry se manteve um pouco mais afastado, apoiado numa árvore e mergulhado na depressão. Dumbledore falara mais um pouco e se preparava para jogar a primeira pá de terra sobre o caixão quando se ouviu uma voz conhecida vinda das fileiras de trás.

- Não enterrem Rúbeo Hagrid antes que a gente tenha a chance de dizer adeus adequadamente.

Era Thelonius McKinley. Ele vinha amparando Rony nos braços. Dumbledore quase sorriu.

- Cheguei a duvidar que você pudesse voltar, Thelonius. Mas, como sempre, você vive me surpreendendo.

- Eu tive trabalho com aquele balrog. Tive de levá-lo para montanhas geladas, onde o frio pudesse neutralizar parte de seus poderes. Depois conto essa história. Agora, abram caminho para que o meu amigo, Ronald Weasley, se aproxime. Eu o encontrei na enfermaria se esforçando para vir para cá. Este é um sujeito teimoso, madame Pomfrey!

Rony balançou a cabeça, ainda fraco. E os dois conseguiram jogar flores sobre o túmulo de Hagrid. Estavam abatidos. As marcas da luta ainda eram visíveis. O diretor finalmente jogou a primeira pá de terra. McKinley jogou a segunda e assim começou um rodízio entre os adultos. Dumbledore ergueu a pá e perguntou se algum aluno queria lançar mais terra. Neville se prontificou de imediato. Rony fez questão de usá-la também. Mas quase não conseguiu movê-la direito. Luna saiu do meio dos alunos para ajudá-lo e o rapaz a agradeceu, sensibilizado. Hermione veio em seguida, com o rosto afogueado. Ela tinha se distraído e quando viu que Luna colocara suas mãos sobre as de Rony para auxiliá-lo, sentiu uma picada no coração.

Quando Dumbledore percebeu que não era mais necessário jogar terra, voltou-se para Harry.

- Uma última pá de terra. Alguém mais se prontifica?

O recado era claro. Todos sabiam que o diretor se dirigia a Harry. O apanhador da Grifinória olhou para a pá. Estava muito pálido. Continuou quieto. Ele ergueu a vista para o céu. O dia estava apenas começando. Pensou que na manhã seguinte já seria hora de arrumar suas malas. Aproximava-se o momento de deixar Hogwarts de vez. De partir para uma outra fase em sua vida. E isso sem que o peso da profecia tivesse diminuído em seus ombros. Pelo contrário. Agora ainda carregava nas costas a sensação de culpa. Por Sirius. Por Hagrid. Não podia se despedir assim do lugar onde fora mais feliz em sua vida. Ao mesmo tempo, doía muito estar ali, diante do que túmulo de um grande amigo.

- Harry? – perguntou Dumbledore.

Nesse instante, descobriu que não podia. Que não conseguiria ver o fim de tudo.

- Eu... não posso – respondeu com a voz trêmula.

Sem dizer mais nada, deixou a árvore onde se apoiava e tomou a trilha que levava para a floresta. Andou sem olhar para trás, com passos decididos. E ninguém se atreveu a importuná-lo.

- Ora, ora. O grande Harry Potter não ficou para o enterro – debochou Draco, tentando granjear a atenção de Gina.

A ruiva, porém, nada respondeu. Limitou-se a abaixar os olhos.

Vendo Harry se afastar, a senhora Weasley se agitou e chamou o marido para ir atrás do rapaz. Dumbledore a interrompeu com um gesto.

- Deixe o garoto. Ele precisa disso.

- Mas, Dumbledore, pode haver Comensais na floresta.

- Molly, o que mais temo neste dia não são os Comensais. Asseguro que eles não estão por perto. No entanto, eu me preocupo com o estado de espírito de Harry. Ele necessita de um pouco de paz.





*****




Terminado o enterro, as pessoas retornaram em grupos para o castelo. O senhor e a senhora Weasley ofereceram ao filho mais novo o suporte necessário. Luna Lovegood deu o braço para Rony, disposta a ajudá-lo. O rapaz enrubesceu um pouco, mas os pais gostaram do gesto. Hermione desvencilhou-se das tarefas que recebera da professora Minerva e tratou de correr no encalço da família.

- Senhor e senhora Weasley, como vão? Ei, Rony, preciso falar com você um pouco. Antes de voltar para a enfermaria. Será que a gente podia conversar... humm... a sós?

Rony fez que sim com a cabeça. Estava muito sem graça porque se lembrava perfeitamente que tinha agarrado a amiga para beijá-la. E se sentia ainda mais embaraçado porque até aquele momento não vira Hermione interessada nele desde o episódio. “Ela não gostou”, calculou enquanto se sentava na raiz de uma árvore para poder conversar. A garota também se ajeitou no mesmo lugar. Notou que Luna olhava para ela com um ar desconfiado.

- Estou ouvindo, Mione.

Hermione cruzou os braços à altura do peito. Depois, descruzou. O desconforto era nítido. Nunca suspeitara que um dia seria difícil falar com seu amigo. Um de seus melhores amigos, aliás.

- É sobre o Harry que eu quero conversar.

Rony só faltou soltar um suspiro de alívio. Temia que ela quisesse debater os motivos por que ele decidira beijá-la naquela noite. Hermione desatou a falar sobre as mudanças em Harry. Contou o que Gina observara e relatou com detalhes tudo o que acontecera nas batalhas travadas contra Voldemort e os Comensais.

- Para você ter uma idéia, Rony, até agora ele não conversou comigo direito. A gente não trocou meia dúzia de palavras.

- O Harry tem uma tendência a se fechar, Mione. Você sabe.

- Mas eu não estou gostando do jeito dele. Você precisava ver na reunião. Ele gritou com a sua irmã!

- Às vezes, a Gina se mete onde não é chamada.

- Que é isso? Sua irmã fez tanta coisa. Você não ouviu o Dumbledore.

- Não é isso, Mione. Lembra no ano passado como ela azucrinava o Harry. Sempre tinha uma resposta pronta para o mau humor dele, para as horas em que ele tentava se isolar.

- É. Mas parecia que o Harry gostava disso. Eu nunca o vi sendo mal educado com ela. E, olha, eu acho que ele esperava pelos comentários dela, assim como a gente esperava alguma piadinha do Fred e do Jorge.

- A Gina tem mesmo algo do Fred e do Jorge. Convivência!

- Tinha porque nem ela está normal.

- Mione, você é muito inteligente. Mas tem horas que não percebe algumas coisas que são óbvias. Depois da noite passada, nada mais vai ser como antes. Nem para a gente, nem para ele. O Harry enfrentou Você-Sabe-Quem cara a cara e pela primeira vez desde que soube da profecia. E qual o resultado disso? Ele não conseguiu vencer o cara. Tá bem. Ele também não foi derrotado. Só que isso significa que a história não acabou. Eles vão se encontrar de novo. Você acha que isso não está pesando para ele? E tem mais. O Hagrid morreu nessa batalha. O Hagrid, o sujeito que trouxe o Harry para o mundo ao qual ele pertence. Simbólico, não é? Será que ele não está se sentindo perdido agora que perdeu essa pessoa? Vamos ver: o Harry perdeu os pais, o padrinho e o Hagrid. Se eu bem conheço nosso amigo, ele deve estar desesperado com a idéia de que um de nós vai ser o próximo da lista. Ou seja, ele vai querer se afastar de todo o jeito. E a nossa obrigação é trazê-lo de volta.

- Eu sei, Rony. Só que ele está tão transtornado. O lance de ele propor que a Belatrix virasse nossa prioridade. Você não viu a cara dele – insistiu.

- Não. Eu não vi. Mas ele só pode estar se remoendo de ódio.

- No fundo, eu tenho medo disso. Vamos falar com ele sobre essas coisas?

- Vamos dar um tempo para ele. Talvez amanhã.

- Amanhã a gente começa a arrumar as malas para ir embora de Hogwarts! – disse Hermione, dando-se conta do inevitável.

- É verdade – respondeu Rony, entristecido. – Foi bom aqui, né?!

- Mas a gente... a gente... não vai perder contato. A gente vai se ver fora daqui. Não é?

- Nossa, como a gente viaja! Falávamos do Harry, certo?! Bom, vamos deixar cada coisa em seu lugar. Um problema por vez. Esta noite, se eu for liberado pelo sargento Pomfrey, volto ao dormitório e puxo papo. Ok?

- Você brinca...

- Depois de tudo que aconteceu, um pouco de humor não vai mal. De resto, Mione, confie em mim. O que quer que esteja acontecendo com o Harry, eu não vou deixá-lo sozinho nessa.

Rony começou a se levantar com alguma dificuldade. Hermione se ergueu e ofereceu a mão para ajudá-lo. Ele aceitou com um sorriso. No mesmo instante, Luna apareceu. Estivera esperando pelos dois à distância e assim que vira a movimentação caminhou apressada até os amigos.

- Opa, Mione, agora é comigo. Madame Pomfrey disse que eu podia bancar a enfermeira do Rony – afirmou, passando o braço na cintura do rapaz e fazendo com que ele se apoiasse em seu ombro.

Hermione concordou com a cabeça, mas decidiu andar a frente. Não queria ver os dois juntos.





*****




Harry caminhava pela floresta com a cabeça baixa. Andara muito. Fora até a campina onde a batalha se desenrolara. Revisitava os espaços sob a luz do sol, tentando encontrar uma maneira de mitigar a dor. Onde Grope tombara havia um monte de terra e uma pequena lápide onde se lia o nome do gigante. Como Dumbledore providenciara o enterro, era um mistério. Reconhecia que o diretor era um bruxo formidável. Muito poderoso, porém, aparentemente, menos poderoso do que Voldemort. O jovem passou a se perguntar se ele teria condições de vencer o inimigo. A dúvida já o assaltara outras vezes, mas desta vez estava mais forte. Principalmente porque enfrentara o Lorde das Trevas e não conseguira triunfar. Pensou que em duas ocasiões já pedira para ser morto. Na primeira, desejara o fim para encontrar seu padrinho. Na segunda, oferecera sua vida em troca da de Gina. E nas duas situações se salvara. Era estranho seu destino. Só se salvava para continuar sofrendo. Sirius não retornaria. E Gina? “Eu não posso arriscar a segurança dela”, disse para si.

Já era tarde quando encontrou um objeto na grama. Vagara sem rumo pela campina, quase um zumbi. Até que algo lhe chamou a atenção. Estava no lugar onde Hagrid caíra fulminado pela maldição de Belatrix. Era o resto da varinha do guarda-caças. Harry a pegou nas mãos e, como se tivesse recebido uma autorização para liberar todas as emoções, desatou a chorar desesperadamente. Estava cansado. Queria voltar para o mundo trouxa. Desejava ser um simples trouxa. Sem sina para cumprir. Sem profecia. Sem desafios terríveis para enfrentar. Ele queria ser apenas um rapaz se preparando para entrar na vida adulta.

O silêncio da floresta o tranqüilizou. Não precisava responder a ninguém o motivo do desespero. Enxugou os olhos com as mãos, encarou o sol e calculou que em breve ele se deitaria. O dia estava chegando ao fim e ele não necessitara enfrentar a curiosidade dos colegas de Hogwarts. Observou a varinha que estava com ele. Tinha de se despedir de Hagrid. Não adiantava negar a realidade. Seu amigo estava morto. Venceu os quilômetros que o separavam do túmulo. Parou diante da lápide e viu letras que pareciam ter sido gravadas a fogo. O nome de Hagrid brilhava e se destacava na clareira. Quem chegasse ali não poderia deixar de reparar na lápide. Voltou a olhar a varinha. Não sabia o que fazer com ela, onde colocá-la. Então, ouviu passos por perto e sacou a própria varinha, virando-se em direção ao lugar de onde vinha o som.

- Você?!

Gina deu um salto, tamanho o susto. Carregava mudas de plantas e quase as deixou cair. Ela olhou surpresa para Harry.

- Por onde você andou? Meus pais não queriam ir embora sem saber do seu paradeiro – disse, enquanto caminhava até ele.

O rapaz não respondeu, limitando-se a guardar a varinha nas vestes. Gina se abaixou e com sua varinha abriu pequenas fendas nas laterais da lápide, colocando ali as mudas que trouxera. Depois, com um feitiço verteu água sobre as plantas. Murmurou outra magia e pequenos botões de flores surgiram. A garota olhou para Harry, que exibia um ar curioso.

- Que é? Não sabia que é possível acelerar o processo de crescimento de algumas plantas? Basta saber o feitiço certo.

- E como você aprendeu isso?

- Este ano, passei muito tempo na biblioteca, se é que você notou isso.

Harry deu de ombros. Não pretendia conversar muito com a jovem. Até porque ela estava com um jeito que lhe agradava particularmente. Usava trancinhas como no distante dia em que a vira caminhando sobre uma cerca. O dia em que notara que Gina não era mais uma garotinha.

- Posso falar com você? Quer dizer, será que você pode me responder?

- Agora não – apressou-se a responder, assustado porque reconhecia seu estado de fragilidade diante daquele rosto emoldurado pelas tranças vermelhas. – Estou... ahn... ocupado – e apontou o objeto que trazia nas mãos.

- Isso é?

- O que restou da varinha de Hagrid. Eu preciso colocá-la em algum lugar - pigarreou. - Acho que ele gostaria de ficar com ela. Só não sei onde...

- Posso?

Gina não esperou a resposta e pegou a varinha, enfiando parte dela junto a um dos cantos em que depositara as mudas. Com um movimento suave, executou uma magia sobre as plantas. Um caule fino se enrolou na varinha. Na ponta da haste verde surgiu uma flor totalmente desabrochada. Com tudo isso, ainda se via que era uma varinha que estava fincada na terra.

- Com esse feitiço, ninguém vai poder tirá-la daí. A menos que arranque a muda inteira. E eu garanto: não vai ser fácil.

- Gina, você é uma bruxa incrível!

- Podemos falar agora?

- Eu... preciso de alguns minutos – respondeu, nervoso. - Tenho de me despedir do Hagrid.

Ela balançou a cabeça e voltou por onde viera. Harry ficou alguns minutos em silêncio olhando para a lápide. Murmurou algumas palavras em voz muito baixa, dizendo adeus. Por um segundo, a raiva voltou e ele prometeu a Hagrid que Belatrix não ficaria impune. Sua vista escureceu, seu corpo tremeu e o rapaz voltou a se sentir enjoado. Atribuiu o mal estar à falta de alimentação. O sol se punha. Não tinha certeza se conseguiria encarar o jantar. Decidiu retornar ao castelo e tentar provar alguma coisa. Havia dado alguns passos entre as árvores quando da sombra do final de tarde saiu Gina.

- Eu estava te esperando.

- Você não devia – retrucou, sem vontade de discutir.

- Só quero que você saiba que eu agi por impulso. E porque tive medo de você...

- Medo de mim? – interrompeu, com a voz alterada.

- Calma. Deixe-me explicar direito. Quando Voldemort te invadiu... bem... o que eu quero dizer é que você estava tão estranho, tão diferente do que eu conheço...

- Se você teve medo de mim, então você não entendeu nada – disse, decepcionado. – Eu nunca iria te machucar.

- Eu sei disso!

- Então por que teve medo de mim? – perguntou quase gritando.

- Voldemort te dominou e te obrigou a atingir Dumbledore. E também Snape. Eu vi! Mas não é isso que...

- Ok. Eu não consegui resistir muito bem nessa hora, mas contra você nada me obrigaria... – disparou e então parou sem saber como prosseguir.

- Eu percebi que você não me atacou. Na hora, saquei que você tinha conseguido expulsar Voldemort. Eu sabia que você ia conseguir! Só que quando eu falei do medo, não foi do medo de ser atingida. E sim do medo do que poderia acontecer com você. Como conseqüência do seu ato. Você estava tão fora de controle, Harry! Ah, Harry, não tenha raiva de mim. Eu só quis o seu bem, mesmo sem ter a menor idéia do que estava fazendo.

Harry perscrutou o rosto de Gina, molhado pelas lágrimas que derramara enquanto se explicava. Com uma das mãos, enxugou uma delas, surpreendendo a garota.

- Como eu poderia ter raiva de você? Você foi a razão de eu sobreviver – confessou com ternura. – Voldemort deixou o meu corpo porque eu ofereci minha vida para que você pudesse escapar. E ele não pode suportar esse tipo de sentimento.

- Que sentimento? – inquiriu Gina, trêmula.

Ele sentiu um frio no estômago. Olhou para os lados. Respondeu que estava tarde e que era bom retornarem ao castelo. A garota soltou um suspiro de impaciência. Colocou as mãos na cintura e continuou encarando Harry.

- Você é inacreditável! Acaba de falar algo super bonito para mim e depois trata disso como se fosse uma coisa qualquer.

- O que você quer, Gina? A gente nem bem deixou o túmulo do Hagrid. Para mim, o mundo está de cabeça para baixo e eu estou tentando não cair do teto.

- Você precisa cair em si. Não se isole. Saia do casulo antes que perca outras pessoas – disse, virando-se em direção a Hogwarts.

- Perder quem? Você? – perguntou Harry, segurando a garota pelo braço.

- Por exemplo – respondeu, ficando de frente com o rosto a centímetros do dele.

Ambos estavam com a respiração entrecortada. Harry mergulhou nos olhos de Gina. Havia neles um brilho que ele reconhecia perfeitamente. Desejo. Puxou a garota contra seu peito e a beijou com a mesma volúpia que experimentara meses atrás, no salão comunal. Gina envolveu seu pescoço com os braços e se entregou completamente aos carinhos do rapaz por quem perdera o sono noites e noites. Ele pronunciara o nome dela duas vezes, entre beijos sôfregos.

Gina afastou o rosto por um instante para observar os olhos do amado. Sorriu ao notá-los verdes, límpidos.

- Acho que você tem jeito, Harry – disse antes de aproximar os lábios outra vez.

A vontade de Harry era não soltá-la nunca mais. Ficaria ali, em meio ao arvoredo de Hogwarts por toda a vida, desde que tivesse a garota de seus sonhos junto com ele. Acariciou o rosto de Gina. Manteve uma das tranças entre os dedos. Em seguida, o coração se contraiu. Seu olhar se entristeceu.

- Acho que não tem jeito, Gina. Não agora. Não tão cedo.

- Você não sabe do que estou falando – rebateu a garota, sentindo que pisava em ovos. Pensara que Harry podia se afastar da ameaça das sombras se liberasse o coração para os sentimentos que compartilhavam.

- Por mais que eu queira, eu não posso. Eu tenho um caminho para trilhar, que não vai ser fácil. Que é perigoso. E eu não quero você nele.

- Qual caminho?

- Eu vou atrás de Belatrix Lestrange. Assim que sair daqui.

- Você não pode!

- Eu posso!

- Você ouviu o que Dumbledore disse na reunião da Ordem.

- Vou fazer isso por minha conta. Não tem nada a ver com a Ordem. Não mais. Eu preciso, Gina. Não vou deixar Belatrix escapar.

- Não é certo querer se vingar!

- Gina, não adianta. Eu já decidi. Esse é o meu destino!

- Você não sabe nada do seu destino!

- Sei que eu vou reencontrar a Belatrix! Não me importo com o que isso vai me custar.

- Pode custar caro demais. Para todos nós – murmurou, aterrada.

- Apenas para mim, Gina. Não pretendo envolver mais ninguém nisso.

- Como se sua vida só interessasse a você – resmungou, sentindo que o chão escapava de seus pés.

- É por isso que não quero te envolver na minha vida - suspirou. E depois de uma curta pausa, emendou – Podemos agora voltar para Hogwarts? Já escureceu.

Gina estava pálida. Nervosa, se soltou dos braços de Harry.

- Eu estava certa. Você é inacreditável. E não quero que ninguém me veja andando ao lado de alguém tão... – buscou a expressão mais adequada -... inacreditavelmente estúpido! – exclamou, avançando pela trilha com rapidez e deixando Harry para trás.












Este é um capítulo um tanto longo. Até o próximo!

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