Trancados



"Eu tranco a porta pra todos os gritos

E o silêncio também está lá fora

Agora, a porta está trancada"

( Trancado - Ana Carolina)







O expresso de Hogwarts avançava sem a balbúrdia do princípio do semestre. Os estudantes que tinham passado os feriados em suas casas estavam entregues a uma sonolência própria de quem abusou à mesa. Harry dividia a cabine com Neville e Lilá Brown. O casal conversava baixinho, sem despertar a atenção do colega. Rony, Hermione e Gina estavam com os outros monitores. Por causa disso, Harry estava se sentindo muito sozinho. Olhando para a paisagem, procurava se concentrar apenas na enigmática carta de Ingrid Fulton e tentava adivinhar o que o professor Dumbledore diria de tudo isso. De tempos em tempos, entretanto, a imagem de Gina se insinuava em sua mente. Lembrava dela ralhando com ele no ano anterior. Ou rindo. Ou simplesmente conversando com ele sem sustos, sem medo. Naquela época, embora ele estivesse mergulhado na tristeza por causa de Sirius, a garota conseguia arrancar dele alguma reação. Recordou-se que podia ficar ao lado dela também sem sustos, sem medo. Muito diferente daqueles dias em que se sentia rejeitado por ela ter dito que "nada" tinha acontecido entre ambos. Nada. Tentou se conformar. "Melhor assim", pensou. O coração, no entanto, não queria obedecer ao cérebro. Quando a via, um estranho ardor se instalava na garganta. Sorria, porém. Não iria se denunciar.

- Harry, você me ouviu?

- Ahn, desculpe, Lilá. Eu me distraí.

- Eu perguntei se você não estranha a falta de movimentação de Você-Sabe-Quem. Acho que isso é sinal de que logo ele vai atacar algum lugar.

- Ele já vem atacando. Só que são pequenos movimentos que a gente não consegue perceber agora. É nisso que acredito.

- Minha avó disse que muitas vezes os bruxos atacados não percebiam que ele estava por perto - comentou Neville. - Você sabe, ele age como se fosse uma cobra - engoliu em seco.

Harry concordou com um movimento da cabeça. Não estava disposto a conversar. Queria ficar apenas observando a paisagem.

- Você não vai atrás dele de novo, não é?

A pergunta de Lilá o pegou de surpresa. E o aborreceu.

- De novo? Quando fui atrás dele?

- Desde que você entrou em Hogwarts está sempre envolvido nessas histórias...

- Eu estou envolvido, é? Mas por um acaso não fui eu que fui até Voldemort. Ele veio até mim. Todas as vezes.

Dizer o nome do inimigo sempre causava um rebuliço em torno de Harry. E isso desta vez o agradou. Por algum motivo, sentiu vontade de mostrar que não temia o lado das trevas.

- No ano passado, você foi até a Floresta Proibida atrás dele.

- Você está enganada, Lilá. Fui atrás de uma pista de Belatrix Lestrange e encontrei Voldemort.

- Bem, dois anos atrás você foi até ele. Neville me contou.

O garoto encolheu no banco e desviou os olhos de Harry. Estava visivelmente desconfortável naquela situação, vendo a namorada acuando o amigo. O rapaz com a cicatriz em forma de raio, por sua vez, ficou ainda mais irritado com Lilá.

- Não tenho idéia do que o Neville te falou a respeito do dia em que estivemos no Ministério da Magia. Mas garanto que fui até lá por causa de Sirius Black, meu padrinho. Para salvá-lo. Neville te contou essa parte?

- Harry, eu não...

- Pare, Neville! Você não pode ficar assim diante de Harry. Vocês são amigos, não são? Então, por que não diz o que pensa? - insistiu Lilá.

Os olhos de Harry cintilaram. Estava cada vez mais enfurecido.

- Sim, Neville. Diga-me o que você pensa - disse num tom rouco pela raiva.

- O que está acontecendo aqui? - interrompeu Hermione, que acabava de chegar à cabine junto com Rony. - Dá para ouvir a discussão do corredor.

- Não estamos discutindo, Mione. Só estou interessado em descobrir por que o Neville diz por aí que eu ando atrás de Voldemort.

- Eu não digo isso, Harry. Juro. O que eu comentei com a Lilá é que você se mete no caminho de Você-Sabe-Quem e que ele deve te odiar por causa disso.

- Eu não me meto no caminho dele. Ele se mete no meu caminho - respondeu, elevando a voz e se erguendo.

Rony se aproximou do amigo e colocou uma mão em seu ombro.

- Calma, cara. O Neville sempre esteve do seu lado. Eu entendi o que ele quis dizer. Que você é a pedra no sapato de Você-Sabe-Quem. Só isso. Não é para você se irritar.

- Não? Sou eu que procuro Voldemort? Sou eu que crio confusão? Do jeito que ele fala, é como se jogasse na minha cara a responsabilidade por tudo que aconteceu...

- Não, não. A morte de Sirius não é sua culpa - apressou-se a dizer Neville.

Harry empalideceu violentamente ao ouvir a frase. Essa idéia constantemente o atormentava. Era uma dor aguda que não passava e seus amigos sabiam disso. Hermione lançou um olhar de censura para Neville. Rony pigarreou e tentou desviar o assunto.

- Ahn, daqui a duas semanas teremos um jogo contra a Corvinal. Espero que estejam prontos para torcer muito pela gente. Aquele Miguel Córner tem se achado o máximo ultimamente.

Neville, que percebera o desastre de seu comentário, tratou de confirmar sua presença no jogo. Lilá, porém, ainda não estava satisfeita. Não entendia direito o que estava acontecendo. Entretanto, julgava que o namorado merecia melhor tratamento.

- É claro que a morte de Sirius não é sua culpa. É da Lestrange. Neville me explicou isso. Só que eu acho que você, Harry, tem de fazer um maior esforço para se afastar de Você-Sabe-Quem. Ninguém aqui quer se sentir ameaçado. Acho que está na hora de deixar para o Ministério da Magia o trabalho de combater o inimigo. Não é seu trabalho, Harry. Você nem acabou Hogwarts ainda. E do jeito que vai, não será neste ano que sairá da escola.

- Ninguém está mais ou menos ameaçado por causa de Harry - sentenciou Gina, que também tinha entrado na cabine.

A garota ouvira o comentário de Lilá ainda na porta. Antes mesmo de entrar na saleta, pudera imaginar a fúria de Harry diante dessas palavras. Então, se apressara em se pronunciar antes que ele o fizesse. No estado em que estava, o amigo poderia ser brusco com Lilá e se indispor com Neville.

- O perigo já está aí, espreitando a gente em qualquer canto. Não vamos esquecer que certos alunos de Hogwarts são filhos de Comensais. E isso é sabido por todos. Mas ninguém fala nada por causa disso. Já que é assim não acho justo que as pessoas olhem o Harry como se ele fosse uma bomba relógio ambulante. Na verdade, fazer isso é uma grave grosseria. Ele está do nosso lado. Harry não é e nunca será uma ameaça para nós.

- Vocês não querem mesmo me entender! - bufou Lilá. - Eu sei que Harry é nosso amigo e blá-blá-blá. Eu só gostaria de pedir a ele que não se arrisque em aventuras que podem arrastar outros para o perigo. Ainda mais agora que estamos no último ano.

- Então, ele pode se arriscar em aventuras no ano que vem, quando você provavelmente estará longe dele? Sinto muito, Lilá, mas isso não me parece um sinal de lealdade - ironizou. - Apesar disso, tenho certeza de que Harry não iria hesitar em te ajudar caso te visse em perigo. E, aliás, ele faria isso por qualquer um.

- Ok! E quanto ao fato de ele estar sempre metido em encrencas? Alguém aqui é capaz de me contestar? - teimou Lilá.

- No final das contas, o que Harry tem feito é nos livrar de encrencas. E pensa bem. Vol... Volde... - esforçou-se em dizer. - Voldemort é uma encrenca tão grande que acho difícil a gente não se deparar com ele ou com algum dos aliados dele em breve. Pode ser neste ano. Pode ser no próximo. Mas ninguém está imune. Como acredito que, às vezes, a melhor defesa é o ataque, prefiro aguardar o rumo dos acontecimentos para saber se ataco ou se me defendo. Parada é que não vou ficar. E se tiver que agir, vai ser melhor se estiver ao lado de quem tem coragem de enfrentá-lo.

Um breve silêncio se seguiu à resposta de Gina. Rony estava absolutamente orgulhoso da irmã e sorriu para ela. A garota se sentiu um tanto envergonhada. Não planejara falar tanto. Tratou de se sentar ao lado da porta e pegar um Profeta Diário que estava ali. Não percebeu os olhares intensos de Harry sobre ela. O rapaz ainda se sentia ferido pelos comentários de Lilá, mas a defesa de Gina apaziguara um pouco seu espírito. Estava tentado a pegar-lhe a mão e revelar tudo o que vinha sentindo por ela. Mas lembrou-se das frases mordazes da namorada de Neville. "Não se arrisque em aventuras que podem arrastar outros para o perigo." Nunca iria arrastar Gina para o perigo. Não podia ficar perto dela. O risco seria atrair a atenção das trevas para ela. Nesse instante, a garota, entretida com a leitura do jornal, ajeitou alguns fios de cabelo atrás da orelha, alheia ao que se passava com Harry. "Ela está tão bem assim, longe de mim". Uma sombra se instalou no coração do rapaz. Optou por se calar e trancar os sentimentos no fundo do peito. "Mas prometo que farei de tudo para afastar Voldemort de você e de todos", pensou enquanto desviava os olhos da ruiva de volta ä paisagem.





*****




A sala estava escura como breu. E o ar, denso. Apesar disso, fazia um frio de arrepiar a alma. Um homem jazia amarrado sobre uma cama de armar. Ele respirava ruidosamente e com chiados. Estava desperto, mas não se atrevia a mover um músculo. Seu corpo doía e pesava como se fosse de granito.

Uma porta se abriu e por ela entrou uma lufada de ar fresco e também duas figuras altas e abrigadas por capas de tecido grosso. Uma delas se aproximou do homem fazendo os saltos da bota estalarem no assoalho de madeira. Trazia nas mãos uma lamparina antiga. A luz tênue incidiu diretamente sobre o rosto do sujeito entrevado na cama.

- Ora, ora, mas ele está acordado. Teve bons sonhos? - perguntou num tom irônico.

Alastor Moody piscou os olhos. Aquela voz só podia ser de... Antes de completar o raciocínio, tomou um violento tapa no rosto. O impulso do velho auror foi saltar sobre o agressor, mas não havia forças em seus membros para isso. Chegou a formular uma série de xingamentos na mente, porém desistiu. Não valia a pena.

- Que cara resistente! Não apenas está acordado, como também está obediente. Finalmente, aprendeu a lição, não é?! Olho-Tonto não reage mais daquele modo tão agressivo. Que bonitinho! - e imitou uma voz infantil.

- Por mim, ele seria eliminado imediatamente. Só dá trabalho esse velho inútil e deformado.

- Paciência, Lúcio. O mestre tem outros planos para ele.

E Belatrix Lestrange se afastou de Moody com passos decididos.

- Você diz isso porque não tem de ficar trancado aqui. Eu, um Malfoy, fazendo papel de babá - resmungou.

- Aproveite o lugar, querido. Seu amigo até que soube deixar este fim-de-mundo agradável - riu a mulher, enquanto fechava a porta, voltando a jogar Moody nas trevas daquele quarto abafado.





*****




Alvo Dumbledore estava ansioso pela chegada de Harry. Tinha sido informado por Tonks da carta de Ingrid Fulton. Dera instruções para Lupin e para outros membros da Ordem. Mas o que desejava mesmo era investigar a quantas andava o coração do jovem bruxo. No ano anterior ele se fechara, amargurado pela morte do padrinho. E agora, quando Harry parecia ter superado a dor, outro sentimento parecia ter tomado conta dele. Temia que fosse negativo. Negativo demais. Por um momento, sua memória trouxe de volta o rosto de Tom Riddle em seus tempos de Hogwarts. Era um rapaz de modos gentis, apesar de carregar ódio profundo no coração. "Como não pudemos perceber isso? Tanto ódio em um coração tão jovem e talentoso é um perigoso atrativo para as trevas", suspirou. Ouviu batidas à porta e autorizou a entrada do estudante.

- Professor?

- Sente-se, Harry. Como foi de Natal e Ano Novo?

- Bem, eu acho. Mas imagino que não é sobre esse assunto que o senhor queira falar.

- E sobre qual assunto você imagina que eu desejo falar?

- Ingrid Fulton, a prima de Lúcio Malfoy. Tonks conversou com o senhor, não é?

- Sim. Conversamos a esse respeito. E entreguei para Remo Lupin a missão de investigar mais a respeito do conteúdo da carta.

- Só isso que podemos fazer?

- Eu diria que investigar é o primeiro passo.

- Acho que os registros de Hogwarts podem nos dar alguma pista a respeito do tal refúgio de Lovett.

- Acredite-me. Forneci a Remo tudo o que estava ao meu alcance.

- Esse Lovett, o senhor o conhecia?

- Sim. Foi um aluno mediano. Depois que deixou Hogwarts pouco se soube dele. Sua família nem existe mais. Foi atacada por Comensais.

- Lovett não era um Comensal?! - espantou-se - Ele era amigo de Malfoy.

- Talvez fosse, mas agora não há como descobrir. Ele morreu com sua família. Estão todos enterrados em um mausoléu bruxo. Ele, o pai, a mãe e a esposa.

- Ele foi casado? Teve filhos?

- De acordo com os registros bruxos, não.

Harry começou a andar de um lado para o outro da sala. Não podia acreditar que continuavam de mãos amarradas.

- Essa carta tem de servir para alguma coisa, professor - disparou, enraivecido.

- Estamos fazendo o possível, Harry.

- Está na hora, então, de fazermos o impossível.

Dumbledore respirou profundamente.

- Posso te pedir um favor, Harry?

- Qual?

- Deixe de pensar um pouco na guerra. Concentre-se em seus estudos, em Hogwarts. Há gente suficiente na Ordem para se preocupar com os rumos da nossa batalha.

Harry riu.

- Certo. Prometo me empenhar. Mas esquecer de Voldemort? Esquecer da profecia? Esquecer Sirius? Esquecer Belatrix? Se é isso que o senhor me pede, então é impossível. Eu não posso e não quero esquecer.

- É. Você está certo. Talvez esteja mesmo na hora de fazermos o impossível.

- O senhor quer que eu abandone a guerra? Que eu finja que meu destino não está amarrado ao de Voldemort?

- Jamais pediria isso, Harry. Apenas gostaria de poupá-lo. De aliviá-lo de tanta... raiva. De tanto tormento e dor. No passado, a força das trevas quase nos destruiu. Eu falo de bruxos adultos, em tese com maior domínio da magia. Não duvido de você. Muito pelo contrário. Mas temo que esta guerra te abale mais do que imaginamos.

- O senhor imagina muitas coisas. Não quero ofendê-lo, professor, só que devo lembrá-lo que há quase dois anos o senhor admitiu nesta sala que se enganou por querer me "poupar". Acho que não preciso ser poupado de nada. E eu estou nesta guerra desde que nasci. O senhor sabe disso.

- Sim, eu sei.

- E então? - perguntou, parando em frente a Dumbledore.

O velho diretor olhou para o jovem. Seu semblante estava sereno, mas o coração se enchera de tristeza.

- Verei o que mais posso fazer. Espero que não duvide de que também quero trazer Moody de volta à segurança.

- Não duvido - respondeu e se despediu com um aceno de cabeça, deixando Dumbledore entregue a incertezas que começavam a tomar conta de sua mente. "Já há muito ódio no coração desse rapaz."








Oiê. Este capítulo é rapidinho. O outro já está pronto. E logo vai ao ar... Obrigada pela leitura.

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