Até a noite
O sol surgia claro e avermelhado através das janelas.
A cabeça de Virginia era um peso suave em seu peito. A maneira como ela o provocava, brincando com sua orelha, avisou-o de que não faria objeções a um preguiçoso ato de amor matinal. Ergueu a mão para acariciar-lhe os cabelos, e parou com o gesto no ar. Como a cabeça dela poderia estar em seu peito e a boca em sua orelha? Anatomicamente falando, seria impossível. No entanto, ele já a presenciara fazendo várias coisas que seriam impossíveis, sob as regras do mundo real. Isso, entretanto, era estranho demais. Mesmo estando meio sonolento, sua imaginação fértil se aguçou.
Cautelosamente, baixou a mão para tocar os cabelos dela. Macios, espessos, mas... meu Deus, o formato da cabeça estava errado! Ela havia mudado... Havia se transformado em alguma coisa. Quando a cabeça se moveu sob sua mão, Johnny deixou escapar um grito sufocado e abriu os olhos.
Luna. A gata estava deitada em seu peito, fitando-o com os olhos cor de âmbar fixos e um tanto complacentes. Johnny deu um pulo de susto ao sentir algo maior deslizando em seu rosto. E viu que Flucke estava com as patas dianteiras apoiadas na cama, a enorme cabeça inclinada curiosamente para o lado. Antes que Johnny pudesse falar, o cachorro tomou a lambê-lo.
- A noite foi boa, Johnny? – perguntou Luna. – Vocês não nos deixaram dormirrr um minuto sequerrr.
- Eu me recuso a falar com animais, isso já é demais.
- Como assim se recusa? Enquanto você viver nessa casa, terá que nos tratar bem ou senão... – Flucke fez menção de abocanhar seu braço.
- Puxa vida... - Estendeu as mãos, afagando o pêlo de cada um dos animais.
Flucke tomou o gesto como um convite e pulou para cima da cama, aterrisando na parte mais vulnerável do corpo de Johnny. Com um gemido sufocado, ele ergueu o tronco, desalojando a gata e fazendo-a bater de encontro a Flucke.
Por um instante, a situação pareceu um tanto perigosa, com os animais se encarando e rosnando mutuamente. Porém, Johnny estava ocupado demais em recuperar o fôlego para se preocupar com a perspectiva de ver pêlos voando no quarto.
- Ah, está brincando com as crianças?
Aspirando o ar, Johnny ergueu o rosto e viu Virginia parada na porta.
- Crianças?
Assim que a avistou, Luna sacudiu a cauda no focinho de Flucke, pulou para um travesseiro, fez um giro, deitou-se e começou a se lamber. Com a cauda balançando, Flucke saltou para fora da cama. Johnny calculou que devia haver no mínimo trinta quilos de músculos apoiando as patas no colchão.
- Parece que as crianças gostam muito de você.
- É... Somos uma família feliz.
Trazendo uma caneca de café fumegante, Virginia se aproximou da cama. Já estava vestida, com um vestidinho vermelho enfeitado de contas. Johnny pensou se deveria desamarrar as tirinhas uma a uma ou se tiraria o vestido dela de uma só vez. Então, sentiu um aroma que era quase tão exótico e, sem dúvida, tão sedutor quanto o perfume dela.
- Isto é café? – perguntou desconfiado.
Virginia sentou na beirada da cama e aspirou o conteúdo da caneca.
- É, creio que sim.
Sorrindo, ele estendeu a mão para brincar com as pontas dos cabelos dela, que estavam amarrados em um rabo de cavalo.
- É muita gentileza sua. – disse, enquanto estendia a mão para pegar a caneca.
Os olhos dela refletiram surpresa.
- O quê? Está pensando que eu trouxe o café para você!? Está pensando que eu tive o trabalho de fazer o café, de encher esta caneca e trazê-la aqui na cama só porque você é assim, tão bonitinho?
Devidamente decepcionado, Johnny lançou um último e desejoso olhar para a caneca.
- Bem, eu...
- Tudo bem, você está certo.
Johnny pegou a caneca que ela lhe oferecia e, enquanto bebia, olhou-a por cima da borda. Não era um especialista em café, mas tinha certeza de que aquele era o melhor que já havia provado, em toda sua vida.
- Obrigado. Virginia... - Estendeu a mão para arrumar o complicado arranjo de contas e pedras que pendia de uma das orelhas dela. - Acha mesmo que eu sou bonitinho?
Ela riu, afastando a caneca para que pudesse beijá-la.
- Dá para o gasto, Johnny.
Com os cabelos claros pelo sol desarrumados e caindo no rosto sonolento, o peito surpreendentemente musculoso e provocador aparecendo por cima das cobertas, e com os lábios hábeis e macios roçando nos dela, ele era muito mais do que isso.
- Me chame de Gina. Todo mundo me chama assim...
- Tudo bem, minha bruxinha favorita!
Embora relutante, ela se afastou.
- Preciso ir trabalhar.
- Hoje? Não sabe que é feriado nacional?
- Hoje?
- É claro. É o Dia Nacional dos Amantes. Um tributo aos anos sessenta. Deve ser comemorado com...
- É muito criativo. Mas preciso cuidar da minha loja.
- Que falta de patriotismo, Gina. Estou chocado.
- Beba seu café. - Ela levantou para se impedir de mudar de idéia. - Se estiver com fome, há comida na cozinha.
- Você podia ter me acordado. - Johnny prendeu-lhe a mão antes que ela pudesse se afastar.
- Achei que você precisava dormir mais um pouco e, além disso, não quis lhe dar a chance de me distrair.
Johnny a fitou, enquanto beijava-lhe os dedos.
- Pois eu gostaria de passar horas distraindo você.
- Você poderá fazer isso mais tarde.
- Podemos jantar juntos.
- Sim, podemos. Posso comprar alguma coisa e trazer para cá.
- Boa idéia. - Johnny abriu-lhe a mão, beijando-a na palma. - Às sete e meia?
- Está ótimo. Ponha Flucke para fora quando sair, está bem?
- É claro. - Johnny deslizou os dentes pelo pulso dela, fazendo-a estremecer. - Gina, só mais uma coisa.
O corpo de Virginia ansiava pelo dele.
- Johnny, realmente não posso...
- Não se preocupe. - Mas ele podia ver que ela estava preocupada e adorou a sensação. - Não pretendo desarrumá-la. Será muito mais divertido passar as próximas horas pensando em como fazer exatamente isso à noite. Deixei uma coisa para você, ontem, no pilar da varanda. Esperava que você tivesse um tempinho para ler.
- O seu roteiro? Você terminou?
- Sim, mas ainda faltam algumas correções. Gostaria da sua opinião.
- Então vou tentar formar uma opinião. - Virginia se inclinou e beijou-o novamente. - Até logo.
- Nos vemos à noite. - Johnny recostou na cama com a caneca de café, mas em seguida praguejou baixinho.
Ela parou na porta.
- Meu carro está estacionado na porta da sua garagem. Espere um pouco, vou vestir a calça.
Ela riu.
- Ora, Johnny, francamente. Você acha mesmo que eu vou trabalhar de carro? E, ainda que eu fosse, podia muito bem levantar seu carro para sair com o meu.
- É... - Johnny falou para Flucke, que fingia dormir. - Acho que ela pode cuidar disso sozinha.
- Pode ter certeza que pode. – o cachorro respondeu.
Acomodou-se na cama, se preparando para desfrutar do café solitariamente. Enquanto bebericava, observava o quarto. Aquela era a primeira chance que tinha de ver os objetos com os quais Virginia se cercava.
Intrigado, Johnny decidiu se levantar. Flucke fingia dormir aos seus pés mas, depois de alguns cutucões amigáveis, resolveu se virar e continuou roncando no meio da cama. Nu, com a caneca na mão, começou a vagar pelo quarto.
Incapaz de resistir, pegou um dos frascos de uma prateleira, removendo a longa tampa de cristal e aspirou. Naquele momento, foi como se ela estivesse ali no quarto, ele quase podia vê-la. Relutante, fechou o frasco e o deixou onde estava. Diabos, não queria esperar por ela o dia inteiro. Não queria esperar nem mesmo por uma hora.
"Calma, Varshall", disse a si mesmo. Ela saíra apenas cinco minutos atrás. Estava agindo como um homem obcecado. Ou enfeitiçado, o que talvez fosse a melhor opção.
Esse pensamento lhe provocou uma pequena e perturbadora dúvida, que o fez franzir a testa por um momento, e depois descartou. “Não estava sob nenhum tipo de feitiço.”, pensou. Sabia exatamente o que estava fazendo e tinha total controle sobre seus atos. Era apenas aquele quarto, que continha tantas coisas dela, que o fazia desejá-la ainda mais.
E se estivesse obcecado, isto também podia ser facilmente explicado. Virginia não era uma mulher comum. Depois do que vira, com tudo o que sabia, era natural pensar nela com mais freqüência do que costumava pensar nas outras. Afinal, o sobrenatural era o seu forte. E Virginia era a prova viva de que o extraordinário existia no mundo real. Quanto mais Johnny pensava sobre todas essas coisas, mais se certificava de que aquele roteiro era o melhor trabalho que já fizera.
Mas e se ela não gostasse? Só porque tinham dormido juntos não significava que ela iria entender e apreciar seu trabalho.
“Que ótimo!” - pensou com desgosto enquanto se abaixava para pegar a calça jeans. Agora iria se preocupar com isso até ela chegar. Se arrastando para o banheiro, perguntou-se como havia conseguido se envolver tão profundamente com uma mulher capaz de enlouquecê-lo de tantas maneiras.
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Mais de quatro horas se passaram antes que Virginia conseguisse ficar alguns momentos sozinha. E o pouco que leu do roteiro a havia deixado interessada o bastante para se ressentir de cada interrupção. Agora, esperava a água ferver enquanto beliscava um cacho de uvas. Emily estava na loja, atendendo dois estudantes universitários. E, como ambos eram rapazes, Virginia sabia que ela não precisaria de nenhuma ajuda .
Com apenas uma palavra o chá foi preparado e a xícara veio parar na sua mão. Virginia já estava acomodada na cadeira do canto esquerdo com o roteiro de Johnny sobre a mesa.
Uma hora mais tarde, a xícara de chá estava gelada. Fascinada, voltou para a primeira página e começou a ler novamente. Johnny era sim um escritor de talento. Era ótimo e seria brilhante se colocasse detalhes verdadeiros, e não apenas coisas que eram frutos de sua imaginação. No geral, para um trouxa, que não conhecia nada de bruxaria, aquilo era maravilhoso. Sentiu uma onda de orgulho ao pensar que quem havia escrito algo tão absorvente era o homem que ela amava.
Nunca havia lido um roteiro de cinema antes. De alguma forma, imaginara que não haveria nada além um esboço, uma estrutura na qual o diretor, os atores e técnicos se baseariam para montar um filme que agradasse às platéias. Mas aquele texto possuía força, era tão cheio de vida e alma, que ela podia quase ver as cenas.
Imaginou que, quando tais recursos extras fossem acrescentados pelos atores, pela câmera e pelo diretor, Johnny bem poderia ter nas mãos o melhor filme da década. E o melhor filme da década seria baseado nela.
Deixando o roteiro sobre a mesa, se recostou na cadeira. E ela que sempre se considerara tão astuta, pensou com um sorrisinho. Quantas surpresas Johnny Varshall ainda guardaria na manga?
Trecho do Proximo Capitulo
“Tem que ser perfeito.” - disse a si mesmo enquanto lutava para arrumar uma braçada de flores (compradas dessa vez) num vaso. Mesmo assim, elas pareciam ter vida própria, com as hastes se enroscando e os botões pendendo para os lados errados. Depois de várias tentativas, o arranjo ainda dava a impressão de que as flores tinham sido enfiadas no vaso por uma descuidada criança de dez anos. E, pelo que Johnny notou, pareciam se mexer. Quando finalmente terminou, depois de uma incrível hora, havia enchido três vasos e estava feliz por reconhecer que jamais daria um bom diretor de cenário. E as flores tinham o mesmo perfume das flores mágicas de Gina.
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