Johnny Varshall
Ele não se sentia solitário. E, como poderia, se passara horas daquele dia absorto em seus livros, estimulando a mente e a alma com fantasias? Desde a infância Johnny aprendera a se contentar com sua própria companhia. O que começou como uma necessidade para sobreviver, agora se tornara um estilo de vida.
O tempo que havia morado com sua avó, com sua tia ou nas suas estadas esporádicas em lares adotivos ensinou-lhe que ele estaria em melhor situação se criasse suas próprias distrações do que se esperasse que estas lhe fossem oferecidas pelos adultos que o cercavam. Com muita freqüência, a recompensa por tais distrações significavam tarefas a mais, sermões, castigos ou, no caso de sua avó, uma palmada rápida e certeira.
Desde que nunca lhe fora permitido uma abundância de brinquedos ou de companheiros de brincadeiras, Johnny transformara sua mente num brinquedo especialmente interessante. Muitas vezes ele achava que isso lhe dava uma vantagem sobre as crianças mais favorecidas. Afinal, a imaginação era portátil e maleável. Não podia ser tirada dele de repente por um adulto irritado a fim de lhe dar um castigo. E não precisava ser deixada para trás, quando ele era despachado para qualquer outro lugar.
Agora que Johnny podia comprar tudo o que quisesse, ainda se satisfazia com a fluidez de sua imaginação.
Com todo prazer, era capaz de bloquear o mundo real e as pessoas reais durante horas a fio. Isso não significava que estivesse sozinho. A imaginação sempre fora sua melhor companhia e se ocasionalmente aceitava convites e se entregava a festas, reuniões e bebedeiras, era mais para obter material para suas fantasias do que para compensar aqueles tempos de solidão.
Mas sentir-se solitário? Não, isso era um absurdo.
Ele tinha amigos, tinha controle do seu próprio destino. Dependia apenas dele a decisão de ficar ou de ir embora. Podia comer quando estivesse com fome, dormir quando estivesse cansado, jogar as roupas onde quisesse. Muitos de seus amigos e colegas tinham casamentos infelizes ou haviam passado por divórcios amargos e desperdiçavam muito tempo reclamando de seus parceiros.
Mas não Johnny Varshall.
Ele era um homem solteiro. Um solteiro livre e despreocupado.
Johnny sabia o que o fazia feliz. Ser capaz de abrir o laptop na mesa do terraço e trabalhar sentindo o sol e o ar fresco, ouvindo o barulho das ondas ao fundo. Ser capaz de brincar com o roteiro de um novo filme sem precisar suar por causa de prazos, por políticas da empresa ou por uma mulher que ficava à sua espera para exigir sua atenção e enchê-lo de repreensões.
Será que isso soava como o lamento de um homem solitário?
Johnny sabia que nunca fora talhado para um emprego ou para um relacionamento convencional. E sua avó sempre lhe dizia que ele jamais seria capaz de realizar qualquer coisa respeitável, e que nenhuma mulher decente o aceitaria.
Johnny duvidava que sua avó considerasse suas histórias de terror e feitiçaria remotamente respeitáveis. E, se ela ainda estivesse viva, com certeza torceria o nariz diante do fato de que ele chegara aos trinta anos sem se casar.
No entanto, ele até fizera tentativas neste sentido. Sua breve e terrível experiência como escriturário numa empresa de seguros nos Estados Unidos provou que ele jamais se encaixaria no esquema de trabalho em escritório. E, sem dúvida, sua última e desastrada tentativa de manter um relacionamento sério provou que ele não se adequava às exigências da convivência permanente com uma mulher. Conforme sua ex namorada, Wanessa Bristol, lhe dissera ao por um fim no romance entre eles,. "Você não passa de um garotinho egoísta, emocionalmente retardado. Acha que, só porque é bom de cama, pode se comportar irresponsavelmente fora dela. Prefere brincar com seus monstros a ter um relacionamento sério e maduro com uma mulher." E ela havia dito muito mais, Johnny se lembrava. Na verdade, não podia culpá-la por isso. Ele a decepcionara. Não era, como ela havia esperado, o tipo de sujeito talhado para o casamento. E, não importava o quanto ela tentasse transformá-lo e emendá-lo no decorrer daqueles cinco anos que estiveram juntos, ele simplesmente não correspondia às suas expectativas.
Agora, Wanessa estava prestes a se casar com um cirurgião dentista.
“Antes ele do que eu.” – pensou. Wanessa era uma mulher inteligente e simpática, com um corpinho aconchegante e um sorriso sensacional.
Certamente não se sentia solitário ao pensar em Wanessa seguindo a longa e escorregadia trilha rumo ao altar. Ele era dono de si mesmo, freqüentador de lugares sofisticados, descompromissado e desimpedido.
Então, por que ficava perambulando por aquela casa enorme? E, muito mais importante, por que havia ameaçado pegar o telefone umas dez vezes, querendo ligar para Virginia?
Não tinham trabalho marcado para aquela noite. Ela havia sido muito firme quando lhe concedeu apenas duas noites por semana. E Johnny tinha de admitir que, depois que superaram aqueles difíceis obstáculos iniciais, passaram a se relacionar de maneira bem fácil. Contanto que ele tomasse cuidado com o sarcasmo.
Virginia possuía um ótimo senso de humor e um bom senso dramático. Não era exatamente um sacrifício passar umas poucas horas por semana na companhia dela. Verdade, Virginia era categórica ao insistir que era uma feiticeira, mas isso apenas tornava tudo mais interessante. Johnny quase ficou desapontado quando ela desistira das exibições dos efeitos especiais.
Ele desenvolveu um enorme controle para manter as mãos longe dela. Mas o mais difícil era resistir àqueles lábios macios, tentadores, àquela nuca convidativa, aos seios perfeitos, adoráveis... Interrompeu o curso de tais pensamentos, ansiando por ter algo mais satisfatório para chutar do que o braço do sofá.
Era perfeitamente normal desejar uma mulher. Diabos, era até agradável imaginar como seria se enroscar nos lençóis com ela. Mas o jeito que sua mente insistia em se voltar na direção de Virginia todas as horas do dia e da noite, estava bem próximo de se tornar uma obsessão.
Estava na hora de recuperar o controle.
“Mas eu não perdi o controle” - lembrou a si mesmo. Estava se comportando como um santo. Mesmo quando ela lhe abria a porta usando aqueles shorts desfiados e desbotados, uma de suas grandes fraquezas, ele fazia o possível para sufocar seus instintos mais básicos. Um envolvimento pessoal com aquela mulher acabaria estragando o profissional. De qualquer forma, uma mulher capaz de nocauteá-lo com um único beijo certamente merecia ser tratada com muita cautela. E Johnny tinha o pressentimento que aquele tipo de nocaute seria bem mais fatal do que a pontaria certeira de Wanessa.
Ainda assim, queria ligar para ela, ouvir sua voz, perguntar se poderia vê-la por apenas uma ou duas horas.
Diabos, ele não se sentia solitário. Ou, pelo menos, não se sentia assim antes de desligar o computador. Desejava ter Virginia ao seu lado, para que pudessem caminhar de mãos dadas, ou se sentarem num tronco abandonado, abraçadinhos, enquanto viam as primeiras estrelas surgindo no céu.
Resmungando uma praga, Johnny pegou o telefone e discou o número da casa dela. O que iria dizer? perguntou-se. - ”Queria apenas falar com você. Preciso vê-la. Não consigo parar de pensar em você.”
Balançando a cabeça, colocou o fone no lugar e andou novamente de um lado para outro da sala. Nas estantes mais baixas, os punhais afiados com os cabos ornamentados reluziam sob a luz. Para aliviar a tensão, Johnny pegou um boneco de vodu e enfiou um alfinete em seu coração.
- Experimente isso, idiota.
Jogou o boneco para longe, enfiou as mãos nos bolsos e decidiu que já estava na hora de sair daquela casa. Que diabos, iria ao cinema.
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- É a sua vez de comprar os ingressos - Virginia disse a Ronald, com toda paciência. - Minha vez de comprar as pipocas e a de Parminda escolher o filme.
Ronald fez um gesto de desprezo, enquanto seguiam pela calçada.
- Eu comprei os ingressos na última vez.
- Não foi, não.
Parminda sorriu quando o primo voltou-se para ela em busca de ajuda, mas balançou a cabeça.
- Fui eu quem comprei na última vez. - confirmou. - Você só está tentando se safar novamente.
- Me safar? - Ofendido, ele parou no meio da calçada. - Que palavra mais desagradável! E me lembro muito bem...
- O que quiser lembrar. - Parminda concluiu a frase, enfiando o braço sob o dele. - Desista, Rony. Não vou lhe dar a minha vez.
Ronald resmungou alguma coisa, mas recomeçou a andar, levando Virginia num braço e Parminda no outro. Estava querendo muito assistir o mais novo filme de Schwarzenegger e receava que Parminda fosse escolher a melosa comédia romântica que estava sendo exibida na sala dois. Não que não gostasse de romances, mas ouvira dizer que Arnold havia se superado naquele filme, salvando todo o planeta de um grupo de cruéis e dissimulados extraterrestres.
- Não precisa ficar emburrado. - Virginia falou, animada. - Você escolhe o filme na próxima vez.
Ela gostava daquele acordo. Sempre que estavam dispostos, e quando tinham tempo, os três iam juntos ao cinema. Muitos anos de brigas, temperamentos alterados e noites arruinadas haviam resultado no sistema que usavam atualmente. Não era a prova de falhas, mas normalmente evitava uma discussão acalorada na bilheteria do cinema.
- E não é justo tentar me influenciar. - Parminda acrescentou quando sentiu Ronald entrando em sua mente, eu já decidi.
- Só estou querendo evitar que você desperdice meu dinheiro. - Resignado, Ronald observou as pessoas que se reuniam na fila. Sentiu-se um pouco mais animado ao avistar o homem que vinha andando lentamente, na direção oposta.
- Ora, ora - disse. - Que agradável coincidência.
Virginia já havia visto Johnny e não tinha certeza se isso a deixava contente ou aborrecida. Estava conseguindo manter as coisas razoavelmente equilibradas durante seus encontros. Nada de truques maldosos, ela já havia decidido.
Era capaz de lidar com a situação, lembrou a si mesma, e sorriu para Johnny.
- Olá! Decretou seu próprio ponto facultativo?
O humor sombrio que o assolava desapareceu no mesmo instante. Virginia parecia um anjo pecador, os cabelos caindo em cascata pelos ombros, o vestido vermelho e curto colando-se a cada curva.
- Mais ou menos. Gosto de assistir os livros dos outros sempre que estou batalhando em um dos meus. - Embora exigisse um esforço desviar os olhos dos de Virginia, virou-se para Ronald e Parminda. - Oi, tudo bem?
- É um prazer vê-lo novamente. - Parminda entrou na fila. - Engraçado, mas a última vez que viemos os três juntos ao cinema foi para ver um filme seu, o "Falsa Morte".
- Ah, é mesmo?
- Foi muito bom. – respondeu Parminda.
- Como se ela soubesse... - Ronald se intrometeu. - Parminda passou os últimos trinta minutos do filme com os olhos fechados.
- Este é o maior dos elogios. - Johnny acompanhou a fila Juntamente com eles. - Então, o que vão assistir?
Parminda enviou um olhar para Ronald, enquanto ele tirava a carteira do bolso.
- O filme de Schwarzenegger.
- É mesmo? Eu também.
Johnny viu que estava com sorte quando se sentou ao lado de Virginia, na sala de projeção. Não tinha nenhuma importância o fato de já ter visto aquele filme na premiére em Hollywood. Era bem provável que o escolhesse, mesmo se não tivesse encontrado Virginia na fila. Era um tremendo filme, pelo que se lembrava. Rápido, com humor suficiente para equilibrar as cenas de violência, junto com uma trama de suspense muito bem engendrada. E havia uma cena, em especial, que deixara a platéia de celebridades eletrizada. Se a sorte continuasse lhe sorrindo, Virginia estaria agarradinha nele antes da metade do filme.
As luzes diminuíram, Virginia virou o rosto e sorriu para ele. Johnny sentiu várias células cerebrais se derreterem e desejou que as sessões duplas ainda existissem nos cinemas.
No curso normal dos acontecimentos, Johnny daria o primeiro e longo passo para fora da realidade no instante em que o filme captasse sua imaginação. Não havia nada que gostasse mais do que mergulhar na ação projetada na tela. Raramente importava se fosse a primeira vez que via o filme, ou se estaria visitando o velho amigo pela vigésima vez, ele sempre se sentia em casa, no cinema. Mas, naquela noite, não conseguia nem acompanhar a seqüência da aventura.
Estava ligado demais da mulher ao seu lado para se desligar da realidade...
A sala estava fria, quase gélida. Mas o perfume da pele de Virginia era quente.
Ela não prendeu o fôlego, não levou nenhum susto, nem se agarrou a ele. Ao contrário, mantinha os olhos fixos e atentos, pegando de vez em quando um punhado de pipocas no recipiente de plástico, que se esvaziou rapidamente.
Em determinado momento, ela realmente deixou escapar o ar por entre os dentes e agarrou o braço do assento entre eles. Num gesto protetor, Johnny cobriu-lhe a mão com a sua. Virginia não olhou na direção dele, mas virou a palma da mão para cima e entrelaçou os dedos nos dele.
Não podia evitar, Virginia pensou. Afinal, não era feita de pedra. Era uma mulher de carne e osso, que achava o homem ao seu lado extremamente atraente. “E delicado, que diabos”. Havia algo de inegavelmente delicado em sentar no escuro do cinema e ficar de mãos dadas.
E que mal haveria nisso?
Ela estava sendo muito cuidadosa quando estavam sozinhos, certificando-se de que as coisas não corressem depressa demais.
O lado bom de tudo aquilo era que estava gostando de trabalhar com ele, ajudando-o em suas pesquisas. Não apenas porque ele era uma companhia divertida, com uma inteligência e talento que ela respeitava, mas também porque isso lhe dava a oportunidade de explicar as coisas à sua própria maneira.
E, é claro, Johnny não acreditava em nenhuma palavra.
“Mas isso não Importa”. - Virginia disse a si mesma. Parou de prestar atenção ao filme quando o braço de Johnny roçou levemente no seu, provocando-lhe uma sensação de calor. Afinal, ele não precisava acreditar para absorver os conhecimentos dela e escrever uma boa história. Embora isso a deixasse desapontada, num nível profundo. Se ele acreditasse, e aceitasse, teria sido tão confortante.
Trecho do próximo capítulo:
Johnny poderia ter recusado. Mas sabia que o homem que não saísse do carro e tomasse a mão que lhe era oferecida ainda não nascera. Atravessaram o gramado, afastando-se da casa onde a única luz reluzia e penetraram nas sombras místicas e no silêncio murmurante do bosque de ciprestes. O luar adejava por entre as árvores, desenhando estranhas figuras com os galhos retorcidos no chão macio da floresta. Uma brisa muito leve sussurrava através das folhas e o fez pensar na harpa que Virginia tinha na saleta de estar.
Nota da Autora: Meus amigos, o que vocês estão achando da fic? Virginia e Johnny estão se dando bem até certo ponto... Mas parece que vai dar certo, não parece? bjuxxx
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