Os Lírios da vida



O interior do círculo era mal-iluminado. As pontas douradas das flechas dos lírios em botão conferiam o único toque colorido ao local. Tudo o mais era marrom-escuro ou verde e sem brilho.
Harry e Rony se encontravam de pé, indefesos diante do cavaleiro. Eles não podiam se mover, não conseguiam lutar, tampouco correr.
Gorl ergueu a espada ainda mais alto.
"Devo me preparar para morrer", Harry pensou. Mas ele só conseguia se lembrar do Cinturão ao redor de seu corpo. Se ele fosse morto ali, o Cinturão ficaria esquecido juntamente com seus ossos. As pedras nunca seriam colocadas nele. O herdeiro do trono de Deltora nunca seria encontrado. O reino continuaria sob o domínio da Sombra para sempre.
"Isso não pode acontecer!", ele pensou, exaltado. "Mas o que posso fazer?"
E, então, ele ouviu Rony começar a falar.
— Você usa a armadura de um cavaleiro, Gorl — Rony disse. — Mas você não é um verdadeiro cavaleiro. Você não luta com seus inimigos de forma honrada.
"As coisas já não estão difíceis o bastante, Rony?" Harry pensou, aterrorizado. "Por que se arrisca, irritando-o ainda mais?"
Gorl, porém, hesitou, a grande espada oscilando em sua mão.
— Preciso proteger os Lírios da Vida — ele argumentou, carrancudo.
— Soube qual era meu destino assim que vi o néctar dourado gotejando de suas pétalas, há muito tempo.
— Mas você não estava sozinho quando o viu, não é mesmo, Gorl? - Rony indagou, a voz forte e ousada. — Você não teria vindo sozinho numa busca nas Florestas do Silêncio. Você tinha companheiros.
"Ele está tentando desviar a atenção de Gorl de nós", Harry imaginou, compreendendo de repente. "Ele espera que o domínio de Gorl sobre nós diminua, caso ele comece a pensar em outros fatos. "
— Gorl, o que aconteceu aos seus companheiros? — Rony prosseguiu.
O cavaleiro inclinou a cabeça para o lado, como se tivesse sido golpeado por Rony.
— Meus companheiros... meus dois irmãos... correram na direção dos Lírios e... — ele balbuciou. — E...
— E você os matou!
A voz de Gorl transformou-se num lamento alto e forte.
— Tive de fazê-lo! — ele se defendeu. — Não podia dividir os Lírios com eles! Eu precisava de uma taça cheia só para mim. Eles deviam ter percebido isso.
Ele abaixou a cabeça e começou a caminhar no círculo, resmungando consigo mesmo.
— Enquanto meus irmãos lutavam comigo e tentavam salvar-se, os Lírios murcharam e o néctar se perdeu na lama. Mas não me desesperei. Os Lírios eram meus, só meus. Tudo o que eu teria de fazer era esperar que florescessem outra vez.
O coração de Harry deu um salto ao sentir que as mãos de ferro que conduziam a vontade de Gorl afrouxavam a pressão, deixando que ele voltasse a se mover livremente. A idéia de Rony estava funcionando. A mente de Gorl agora se encontrava muito longe deles. Ele olhou o companheiro e constatou que este desembainhava a espada.
Gorl havia voltado as costas para eles e golpeava as folhas e caules das trepadeiras retorcidas com a mão coberta pela armadura. Parecia ter esquecido que havia mais alguém com ele.
— Quando os novos brotos nasceram na lama, ergui esses muros ao redor deles para protegê-los dos intrusos — ele murmurou. — Fiz um bom trabalho. As trepadeiras nunca teriam crescido tão fortes sem meus cuidados.
Rony fez um sinal silencioso para Harry e, juntos, começaram a rastejar na direção de Gorl, as espadas preparadas. Ambos sabiam que só teriam uma chance. Não podia ser uma luta justa. Precisavam tomar o cavaleiro de surpresa e matá-lo, antes que ele os sujeitasse novamente à sua vontade. Do contrário, eles estariam perdidos, como tantos outros antes deles.
Gorl falava consigo mesmo, enquanto golpeava as trepadeiras.
— Cortei os galhos das árvores que ousaram resistir às minhas trepadeiras — ele murmurou. — Alimentei-as com os corpos dos inimigos, homens, mulheres, pássaros e animais, quem quer que ousasse aproximar-se. Assim, mantive meus tesouros em segurança. Esperei muito tempo para que florescessem. E, certamente, minha hora está próxima.
Rony investiu para a frente com um grito vigoroso. Sua espada atingiu o alvo — o espaço fino e escuro entre o capacete do cavaleiro e a armadura que protegia o corpo — e ele empurrou-a com força.
Contudo, Harry constatou com horror que o cavaleiro não caiu. Com um rosnado baixo, ele se virou, tirou a espada de Rony da nuca e atirou-a para o lado. E, então, enquanto Harry gritava atônito e assustado e golpeava a armadura inutilmente, a mão coberta de metal lançou-se como uma cobra na direção de seu amigo e apanhou-o pelo pescoço, fazendo-o ajoelhar-se.
— Morra, ladrão! — ele gritou com desprezo. — Morra devagar! — E mergulhou a espada no peito dele.
— NÃO! — Harry exclamou.
Através de uma névoa rubra de aflição e terror, ele viu Gorl puxar a espada e chutar Rony para o solo, com um grunhido de desdém. Viu o homem grande gemer em agonia, a vida se esvaindo nas raízes das trepadeiras. Então, viu o cavaleiro virar-se para ele e sentiu o poder de ferro de sua vontade tomar conta de todo o seu ser.
Paralisado, Harry esperou pela morte quando Gorl ergueu a espada manchada de sangue outra vez.
E então...
— GORL! GORL!
O grito vinha de cima, tão alto e selvagem quanto o de um pássaro.
Gorl atirou a cabeça para trás num movimento brusco, olhando para cima com um grunhido furioso e atônito.
Harry também olhou para cima e, assustado, viu que Jasmine estava lá. Ela balançava no topo de uma das imensas árvores e espiava para baixo por uma brecha no teto de trepadeiras. Kree pairava sobre a cabeça dela, as asas negras estendidas como que protegendo-a.
— Você transformou um lugar bom em algo maligno com sua inveja e seu rancor, Gorl! — Jasmine gritou. — Você dominou e escravizou as árvores e matou os pássaros, só para guardar algo que não lhe pertence. — Com sua adaga, ela começou a golpear as trepadeiras que cobriam a clareira. Folhas esfarrapadas começaram a cair como uma neve verde.
Gorl ergueu os braços com um rugido furioso. Harry sentiu as pernas livres quando o cavaleiro dirigiu toda a sua força para cima, na direção da nova intrusa.
— Corra, Harry ! — Jasmine gritou com voz estridente. — Para o centro! Agora!
De cima, veio um forte som de objetos se quebrando e se rasgando. Harry saltou para um local seguro e atirou-se na lama no centro da clareira, no exato momento em que a terra às suas costas tremeu com um barulho poderoso que ecoou como o estrondo de um trovão.
Harry permaneceu deitado e quieto por um tempo que lhe pareceu muito longo, os olhos bem fechados, a cabeça girando, o coração martelando no peito. Então, finalmente, ele se deu conta de um leve tamborilar em suas costas e de uma sensação de calor. Ofegante, ajoelhou-se com esforço e se virou.
Há muito acostumado à escuridão, Harry semicerrou os olhos por causa do sol forte que vinha do céu aberto e invadia a clareira. O teto de trepadeiras havia sido destruído, e folhas e caules ainda caíam como chuva. No local em que ele e Gorl se encontravam somente há alguns minutos, estava a razão do estrago: um enorme galho caído. E debaixo dele, esmagada, estava a armadura dourada.
Harry olhou fixamente ao redor, incapaz de acreditar no que acontecera tão repentinamente. O Cinturão ficou mais quente de encontro à sua pele. Ele olhou para baixo e viu a espada de Gorl estendida bem à sua frente. De um modo quase distraído, Harry a apanhou. O topázio em seu punho brilhava como ouro. Então, ele pensou, como se estivesse sonhando, que a primeira pedra que deveria ser encontrada era o topázio, símbolo da lealdade.
De repente, sua mente se desanuviou. Procurou com o olhar e encontrou a figura imóvel e pálida de Rony, deitado à beira da clareira. Ergueu-se de um salto e correu até ele; ajoelhou-se ao seu lado e chamou-o pelo nome.
Rony não se moveu. Ele ainda respirava, mas muito debilmente. O terrível ferimento em seu peito ainda sangrava. Harry abriu a jaqueta e a camisa do companheiro, tentando limpar o ferimento e estancar a hemorragia com sua capa. Precisava fazer algo, mas sabia que seria em vão. Era tarde demais.
Ele mal ergueu o olhar quando Jasmine saltou para baixo e se pôs a seu lado.
— Rony está morrendo — ele lamentou. Sentia uma dor imensa no peito. Uma terrível sensação de perda, solidão e desperdício.
— Harry! — ele escutou Jasmine chamar. Mas não se moveu. — Harry, olhe!
Ela puxava-lhe o braço. Relutante, ele ergueu a cabeça.
Jasmine fitava fixamente o centro da clareira, uma expressão de espanto no rosto. Harry virou-se para descobrir o lhe chamava a atenção.
Os botões dos Lírios da Vida estavam florescendo. As flechas douradas abriam-se sob a luz do sol, que lhes fora negada por tanto tempo. Agora, pareciam trombetas douradas com as pétalas alegremente estendidas, absorvendo a luz. E, do centro das trombetas, fluía um néctar dourado e abundante, derramando-se num fluxo contínuo de aroma adocicado sobre a lama escura.





N/A: Mais um capitulo postado...

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.