Cuidado !



Cuidado!



Muitas horas depois, invadido pela sensação de estar vivendo um sonho, Harry caminhava em direção ao Leste pela estrada que levava para longe de Del. Rony andava a seu lado, silencioso, ereto e forte, uma pessoa totalmente diferente da ruína humana desajeitada e resmungona que assombrava os portões da ferraria desde que Harry conseguia se lembrar.
Eles deixaram Del sem ser notados, arrastando-se por um buraco no muro, cuja existência Harry desconhecia, tão bem escondido estava. Agora a cidade, seus pais e tudo o que Harry conhecia estavam bem distantes e, a cada passo, ele se aproximava do local cuja mera menção do nome o fazia transpirar de medo.
"As Florestas do Silêncio despertam um terror especial em meu coração, pois elas estão próximas, e ouvi histórias sobre elas durante toda a minha vida", ele disse a si mesmo. "Mas é verdade que, à sua própria maneira, os outros lugares indicados no mapa são tão mortais quanto elas. "
Esse pensamento não o consolou nem um pouco.
Durante a primeira hora após deixar a cidade, ele caminhou com a mão na espada, o coração aos pulos. Contudo, eles não encontraram ninguém e, por um longo tempo, ele se concentrou somente em andar depressa e acompanhar os longos passos de Rony. Estava determinado a não ser o primeiro a pedir uma pausa. E, também, a não ser o primeiro a falar, embora sua cabeça fervilhasse de perguntas.
Chegaram a um ponto em que uma bifurcação à direita, na estrada principal, conduzia a uma pequena ponte de madeira e, em seguida, seguia sinuosa em direção à escuridão. Rony parou.
— Acho que esse é o caminho para Wenn Del e o mais curto para as Florestas — disse ele. — Essa curva combina com a descrição que me foi dada, mas deveria haver uma placa, e não há nenhuma.
Árvores altas cresciam ao redor deles, mas não se ouvia o farfalhar das folhas. O silêncio era pesado e total. Era como se a terra estivesse prendendo a respiração, esperando que eles decidissem o que fazer.
As nuvens se separaram por um momento, e a luz fantasmagórica da Lua brilhou sobre eles. Ao olhar à sua volta, Harry viu um minúsculo ponto branco que cintilava no chão, ao lado da estrada. Ele andou depressa até lá, ajoelhou-se e acenou para Rony.
— Está aqui — chamou, excitado, remexendo as folhas mortas. -Alguém a empurrou para cá, a fim de manter o caminho em segredo.
A placa encontrava-se caída no chão, quase coberta por folhas e pequenas plantas. Harry retirou as últimas folhas e, então, agachou-se, soltando um grito abafado quando viu o que dizia o letreiro.

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— Alguém tentou avisar outros viajantes do perigo que há neste caminho. Não há dúvidas de que a placa foi derrubada para ocultar o aviso e não o caminho — Rony murmurou.
Harry ergueu-se devagar e olhou para um ponto distante. De repente, o silêncio se abateu sobre ele, denso e pesado.
Ele percebeu que o companheiro o fitava, a testa franzida.
— Se o seguirmos, este caminho irá nos poupar um dia e meio de caminhada — Rony afirmou. — Mas talvez eu não deva levá-lo a enfrentar o perigo no início de nossa jornada.
De repente, Harry ficou muito zangado. Com Rony, por ele ter notado seu medo, consigo mesmo, por ter demonstrado medo e, acima de tudo, com o inimigo desconhecido que tão habilmente escondera a placa de advertência.
— Você não precisa mais cuidar de minha segurança, Rony — Harry disse em voz alta, chutando as folhas mortas. — Um atalho é precioso demais para ser desperdiçado. Agora estamos preparados para enfrentar as dificuldades. Ficaremos atentos ao perigo enquanto caminhamos.
— Muito bem — Rony replicou, afastando-se. — Como preferir. — Sua voz estava calma e uniforme como sempre. Harry não conseguiu decifrar se ele estava satisfeito ou desgostoso.
Eles viraram à direita, atravessaram a pequena ponte e prosseguiram. A estrada deu voltas, ficou mais estreita e escura. Arbustos altos e espessos a ladeavam de ambos os lados. Suas folhas eram grandes, macias, rijas e exibiam veios estranhos e pálidos que pareciam quase brancos em contraste com o verde-escuro.
Não haviam andado muito quando a nuca de Harry começou a formigar. Ele virou levemente a cabeça e, com o canto dos olhos, viu algo cintilar entre as folhas. Era um par de olhos vermelhos que brilhavam à luz da lua. Ele controlou o impulso de gritar e tocou o braço de Rony.
— Eu os estou vendo — Rony murmurou. — Puxe a espada, mas continue andando. Olhe para a frente. Esteja preparado.
Harry obedeceu, assustado, o corpo inteiro ardendo. Ele vislumbrou outro par de olhos e, depois, outro. E logo parecia que todo o caminho estava cercado com pontos incandescentes de luz. Mas ainda não se ouvia nenhum som.
O garoto rangeu os dentes. A mão que segurava a espada estava escorregadia por causa do suor.
— Quem são eles? O que estão esperando? — sussurrou para Rony.
Enquanto falava, algo arrastou-se na estrada atrás dele. Harry virou-se rapidamente, bem a tempo de ver uma criatura desaparecer nos arbustos, um vulto rápido, curvado e pálido que parecia ser todo braços e pernas. O garoto arrepiou-se.
— Olhe para a frente! — Rony insistiu, agarrando-o pelo braço para obrigá-lo a continuar andando. — Eu não lhe disse...
E, então, começou o zumbido.
Primeiro, o som vindo de todos os lados era suave e enchia o ar, um zumbido alto e queixoso, como se um grande bando de insetos voadores tivesse invadido a estrada de repente.
Mas não havia insetos à vista. Apenas o verde-escuro das folhas. E os olhos observadores. O som ficava mais forte a cada passo que davam, de modo que, em pouco tempo, suas cabeças ficaram cheias dele e seus ouvidos começaram a doer e chiar.
E o som aumentou ainda mais, penetrante, insuportável. Desesperados para fazê-lo cessar, eles taparam os ouvidos com as mãos, com força, e caminharam cada vez mais depressa, até que começaram a correr. Seus pés batiam no caminho interminável com um ruído surdo, suas respirações aceleraram e ficaram ofegantes, seus corações batiam como o trovão. Eles, porém, não estavam cientes de nada além da dor provocada pelo som, que só fazia aumentar, penetrando em seus cérebros e expulsando qualquer pensamento.
Eles correram, deram voltas e tropeçaram, desesperados para escapar. Mas não havia como escapar. Eles pediram ajuda, mas não podiam nem ao menos escutar a própria voz. Finalmente, caíram exaustos e ficaram deitados, contorcendo-se, indefesos na poeira.
O som cresceu até atingir um lamento agonizante de triunfo. As folhas se agitaram e farfalharam. Um grupo de criaturas pálidas, magras e de olhos vermelhos arrastou-se ao redor deles.
E, em instantes, eles estavam cobertos.
Harry despertou devagar, sem ter idéia de onde se encontrava ou quanto tempo havia passado. Havia um repicar monótono em seus ouvidos. A garganta estava sensível, e todos os músculos de seu corpo doíam.
"Estou vivo", pensou, com uma surpresa tristonha. "Como posso estar vivo?"
Esforçou-se para pensar, embora seu cérebro parecesse estar ene-voado por uma bruma espessa.
A última coisa de que se lembrava era estar correndo com Rony pelo caminho de Wenn Del, a cabeça a ponto de explodir por causa do som. Depois disso, houve somente a escuridão.
Ou teria acontecido alguma outra coisa? Ele pareceu lembrar-se de um sonho. Um sonho em que sentiu uma dor aguda e pungente em todo o corpo. Um sonho em que era cutucado e espetado por dedos finos e duros. Um sonho em que era carregado aos solavancos em ombros ossudos. Um sonho em que ouvia risos abafados e murmúrios, enquanto a noite se transformava em dia e o dia em noite, outra vez.
Um sonho terrível. Mas... tinha sido um sonho? Ou tinha sido real? Será que tudo tinha sido real?
Ele estava deitado de costas. A luz se esgueirava por entre os ramos acima dele. "Então, agora é dia", Harry pensou, sonolento. "Final da tarde, pelo que parece. Mas que tarde? Por quanto tempo fiquei inconsciente? E onde estou?"
Ouviu um gemido nas proximidades e tentou virar a cabeça. Foi somente então que percebeu que não conseguia se mover.
O pânico o invadiu. Ele tentou erguer as mãos, movimentar os pés, mas não conseguiu nem ao menos encolher um dedo.
"Como poderiam ter me amarrado dessa forma?", pensou tolamente.
E, lenta e assustadoramente, a resposta lhe veio à mente. Ele não estava amarrado. O seu corpo simplesmente se recusava a obedecer aos seus comandos.
— O que aconteceu? — gritou, aterrorizado.
— Eles nos picaram, como vespas picam lagartas, como aranhas picam moscas. — A voz de Rony estava grossa e lenta, mas Harry a reconheceu. Ele percebeu que fora o companheiro que gemera, e que este se encontrava deitado perto dele. Ambos estavam indefesos.
— As criaturas nos paralisaram. Estamos vivos, mas não podemos nos mover — a voz de Rony prosseguiu. — Eles vão voltar e, então, vai começar o banquete.
Ele gemeu outra vez.
— Fomos tolos em ignorar a placa de advertência. Eu sou o culpado. Não imaginei que haveria uma arma que não conseguiríamos vencer. Mas aquele som! Ninguém é capaz de enfrentá-lo. Não entendo por que os Comensais em Del não o mencionaram.
— Talvez eles não o conheçam. Talvez ninguém que tenha ouvido o som tenha vivido para contar a respeito — Harry concluiu.
— Conduzi você à morte, Harry.
— Não é sua culpa — o garoto o consolou, umedecendo os lábios. — Escolhemos seguir por aquela estrada juntos. E ainda não estamos mortos. Rony, onde estamos?
A resposta demorou ainda mais a ser proferida do que a anterior e, quando veio, fez o coração de Harry ser invadido pelo temor.
— Eles nos carregaram por uma longa distância — Rony falou com uma voz fraca. — Acho... acho que estamos nas Florestas do Silêncio.
Harry fechou os olhos e tentou combater a onda de desespero que o invadiu. E então um pensamento lhe assomou à mente.
— Por quê? — indagou. — Por que nos trazer para cá, um local tão distante de onde moram?
Uma nova voz respondeu.
— Porque são um prêmio grande demais para ser dado somente a Wenn. Vocês foram trazidos como oferenda ao deus deles. Wennbar gosta de carne fresca. Ele virá quando o sol se puser.
Ouviu-se um farfalhar na árvore acima. E, leve como uma borboleta, uma garota de cabelos revoltos pousou no chão, ao lado da cabeça de Harry.


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