O rei



Parte 1 — O Cinturão de Deltora
O rei



Jarred encontrava-se despercebido no meio da multidão que abarrotava o grande saguão do palácio. Recostado no pilar de mármore, ele piscou os olhos, cansado e confuso.
Era meia-noite. Ele fora despertado de seu sono por gritos e um repicar de sinos. Vestiu-se e juntou-se à multidão de nobres que corriam na direção do saguão.
— O rei está morto — as pessoas sussurravam. — O jovem príncipe será coroado imediatamente.
Jarred mal conseguia absorver a notícia. O rei de Deltora, com sua barba longa e trançada e suas compridas túnicas douradas, morrera devido à misteriosa febre que o mantivera preso ao leito nas últimas semanas. Nunca mais sua voz grave e retumbante seria ouvida nos corredores do palácio. Nunca mais ele se sentaria, rindo, no salão de banquetes.
O rei Alton estava morto, assim como, antes dele, sua esposa, a rainha. A febre levara ambos. E agora...
"Agora, Endon será o rei", Jarred pensou. Sacudiu a cabeça, tentando forçar-se a acreditar no fato. Ele e Endon eram amigos de infância, mas a diferença que os separava era imensa!
Endon, filho do rei e da rainha, era o príncipe de Deltora. E Jarred era o filho de um fiel servo que morrera a serviço do rei quando Jarred tinha apenas quatro anos de idade.
Jarred fora dado a Endon como companhia para que o jovem príncipe não se sentisse só. Eles cresceram juntos, como irmãos. E juntos faziam suas tarefas na sala de aula, provocavam os guardas e convenciam os cozinheiros a lhes dar guloseimas. Juntos brincavam nos amplos e verdes jardins.
As outras crianças que viviam no palácio, filhos e filhas de nobres e servos, ficavam em seus aposentos e nas áreas reservadas a eles. Como era costume no palácio, Jarred e Endon jamais os viam, exceto no grande saguão, em dias de festa. Contudo, os dois garotos faziam o que podiam para se divertir.
Eles tinham um esconderijo secreto, uma árvore enorme e oca próxima aos portões do palácio. Ali se escondiam da velha e implicante Min, a ama-seca, e Prandine, o conselheiro-chefe do rei, um homem alto e carrancudo com quem ambos antipatizavam.
Juntos, praticavam arco-e-flecha e jogavam um jogo chamado "mirar alto", em que o vencedor era o primeiro a atingir a forquilha mais alta da árvore oca.
Eles inventaram um código secreto e o usavam para transmitir mensagens, piadas e avisos um ao outro, debaixo do nariz de seus mestres, Min ou Prandine.
Jarred, por exemplo, se escondia na árvore oca porque Min queria que ele tomasse uma dose do óleo de fígado de bacalhau, que ele detestava. Thiago passava e jogava um bilhete para o amigo onde ele pudesse apanhá-lo.

“ nel ão váel pa elra ael cozel inhel a minel est elá lelá “


A mensagem parecia não fazer sentido e ninguém que a apanhasse por acaso seria capaz de adivinhar seu significado. Porém o código era simples.
Para decodificar a mensagem, bastava escrevê-la em seqüência, eliminando as letras "EL" sempre que aparecessem.
NÃOVÁPARAACOZINHAMINESTÁLÁ
Depois, bastava separar as letras e formar palavras que fizessem sentido.
NÃO VÁ PARA A COZINHA. MIN ESTÁ LÁ.
À medida que Endon e Jarred cresciam, sobrava menos tempo para brincadeiras. Seus dias eram ocupados por tarefas e afazeres.
Grande parte de seu tempo era gasto aprendendo a Norma, as milhares de leis e costumes adotados pela família real. A Norma regia suas vidas.
Eles ficavam sentados, Endon, pacientemente, e Jarred, nem tanto, enquanto seus longos cabelos eram trançados e entrelaçados com um cordão dourado, segundo a Norma. Eles passavam horas aprendendo a martelar o metal incandescente para transformá-lo em espadas e escudos. O primeiro rei de Deltora tinha sido ferreiro, e fazia parte da Norma dar continuidade a essa arte.
Todo final de tarde, eles tinham uma preciosa hora de lazer. A única coisa que não tinham permissão de fazer era escalar o alto muro que cercava os jardins do palácio, ou atravessar os portões e ir à cidade logo adiante, pois o príncipe de Deltora, assim como o rei e a rainha, nunca se misturava às pessoas comuns. Essa era uma parte importante da Norma.
Era uma parte que, às vezes, Jarred se via tentado a quebrar. Endon, porém, tranqüilo, submisso e obediente, lhe implorava, ansioso, para nem ao menos pensar em subir no muro.
— É proibido — ele dizia. — Como se não bastasse, Prandine já o considera uma má influência para mim, Jarred. Foi o que ele disse a meu pai. Se você quebrar a Norma, vai ser mandado embora. E eu não quero que isso aconteça.
Tampouco era o que Jarred queria. Ele sabia que sentiria muita falta de Endon. E para onde iria se tivesse de deixar o palácio? Aquele era o único lar que conhecera. Assim sendo, domava a curiosidade, e a cidade distante continuava um mistério tanto para ele quanto para o príncipe.
O som das trombetas de cristal interrompeu os pensamentos de Jarred. Ele se voltou, como todos os demais, para o fundo do saguão.
Endon entrava no aposento, caminhando entre as duas fileiras de guardas reais vestidos com uniformes azul-claros adornados de dourado.
"Pobre Endon ", Jarred pensou. "Ele está sofrendo. "
Desejou poder estar ao lado do amigo para confortá-lo, porém não fora convocado. Foi o conselheiro-chefe Prandine que se postou à direita, em seu lugar.
Jarred fitou-o com desagrado. O conselheiro parecia ainda mais alto e magro do que o habitual. Ele usava uma longa túnica roxa e levava o que parecia uma caixa coberta de tecido dourado. Enquanto caminhava, sua cabeça se projetava para a frente, fazendo-o parecer uma enorme ave de rapina.
O olhar de Endon encontrava-se turvado pelo sofrimento, e ele parecia muito pequeno e pálido em sua espessa jaqueta prateada, cujo colarinho alto era adornado de jóias. Mas ele mantinha a cabeça ereta, como tinha sido ensinado a fazer.
Durante toda a vida, fora treinado para aquele momento.
— Quando eu morrer, você, meu filho, será rei — o pai lhe dissera inúmeras vezes. — Não falhe ao seu dever.
— Não falharei, meu pai — Endon respondia, obediente. — Farei o que é correto, quando o momento chegar.
Contudo, nem Jarred, nem Endon imaginaram que esse momento chegaria tão rápido. O rei era tão forte e saudável que parecia que viveria para sempre.
Endon atingira a frente do saguão e subia os degraus para a plataforma. Quando chegou ao topo, voltou-se e encarou a multidão de rostos.
— Ele é tão jovem — uma mulher próxima a Jarred murmurou a uma vizinha.
— Sshh — advertiu a outra. — Ele é o legítimo herdeiro. — Enquanto falava, olhou nervosamente na direção de Jarred. Ele não a reconheceu, mas concluiu que ela o conhecia e temia que ele contasse a Endon que a amiga fora desleal. Rapidamente, desviou o olhar.
Agora, porém, as trombetas de cristal soavam novamente, e um leve e excitado murmúrio se fazia ouvir na multidão.
Prandine pousou sua carga numa pequena mesa ao lado do trono. Ele afastou o tecido dourado, revelando uma caixa de vidro; abriu-a e dela retirou um objeto brilhante e reluzente.
Era o Cinturão Mágico de Deltora. A multidão deixou escapar um suspiro sibilante, e Jarred prendeu a respiração. Ele ouvira falar do Cinturão desde a mais tenra infância, mas nunca chegara a vê-lo.
E ali estava ele, com toda a sua beleza e mistério, o antigo objeto que, por milhares de anos, livrara Deltora da invasão pelo maquiavélico Voldemort, que dominava a região além das Montanhas.
Entre os magros dedos de Prandine, o Cinturão parecia tão delicado quanto um pedaço de renda, e as sete enormes pedras preciosas dispostas em toda a sua extensão pareciam maravilhosos ornamentos. Mas Jarred sabia que o Cinturão era feito do mais forte aço e que cada uma das pedras representava um papel especial na magia que protegia Deltora.
Havia o topázio, símbolo da lealdade, dourado como o sol quando se põe. Havia a ametista, símbolo da verdade, roxa como as violetas que cresciam às margens do Rio Del. Representando a pureza e a força, havia o diamante, claro e brilhante como o gelo. Em nome da honra, havia a esmeralda, verde como a grama viçosa. Havia o lápis-lazúli, a pedra celestial azul-escura pintalgada de prata, como o céu noturno. Havia o rubi, representando a felicidade, vermelho como o sangue. E a opala, símbolo da esperança, brilhando com todas as cores do arco-íris.
A multidão pareceu prender a respiração quando Prandine se curvou para prender o Cinturão à cintura de Endon. Os dedos do conselheiro mexiam desajeitados no fecho, e ele estava bem afastado de Endon. Ele parecia quase receoso, Jarred pensou curiosamente. "Por que seria?"
Então, de repente, a presilha se fechou, e a pergunta foi respondida. Prandine saltou para trás, ouviu-se um estalido e, ao mesmo tempo, o Cinturão pareceu ficar envolto em uma explosão de luz.
As pedras preciosas brilharam como fogo e iluminaram o saguão com um arco-íris radiante. As pessoas gritaram e se viraram, cobrindo os olhos.
Endon, com os braços erguidos, parecia oculto pela luz cintilante e dardejante. Ele não era mais um garoto de olhar triste. O Cinturão Mágico o reconhecera como o legítimo herdeiro do trono de Deltora. Ele, apenas ele, poderia agora usar seus mistérios, sua magia e seu poder.
Porém será que Endon os usaria? Jarred se perguntou, de repente. O pai dele os usara? Fizera ele algo além de seguir as normas impostas anos atrás?
Ele observou as chamas emitidas pelas pedras preciosas se extinguirem lentamente e se transformarem num rubor hesitante. Observou, também, o jovem rei tirar o Cinturão e entregá-lo a Prandine, e o conselheiro, agora sorrindo, guardá-lo na caixa de vidro.
Jarred sabia o que aconteceria ao Cinturão em seguida. Conforme a Norma, ele seria levado de volta ao quarto mais alto, na torre do palácio. A porta do aposento seria trancada com três fechaduras de ouro. Três sentinelas vestidos com uniformes dourados montariam guarda do lado de fora.
E então... a vida continuaria como sempre. Prandine e os demais funcionários do governo tomariam todas as decisões reais que afetariam o reino.
O rei compareceria a cerimônias e banquetes, riria dos palhaços e acrobatas no grande salão, praticaria arco-e-flecha e o ofício de ferreiro. Ficaria sentado durante horas, enquanto seus cabelos, e um dia sua barba, seriam trançados. Assinaria documentos sem fim e os selaria com o anel que ostentava o brasão real. Ele seguiria a Norma.
Dentro de alguns anos, desposaria uma jovem escolhida para ele por Prandine, com certeza a filha de uma das nobres famílias que também passara a vida dentro dos muros do palácio. Eles teriam um filho que tomaria o lugar de Endon quando este morresse. E esse filho também usaria o Cinturão apenas uma vez, antes de ele ser novamente guardado.
Agora, pela primeira vez na vida, Jarred se perguntou se aquilo era uma boa idéia. Pela primeira vez, perguntou-se como e por que motivo o Cinturão havia sido feito. Pela primeira vez, começou a duvidar se era sábia a decisão de deixar tal poder guardado inutilmente no aposento da torre, enquanto o reino que deveria proteger ficava do lado de fora de altos muros, invisível.
Ele escapou despercebido do grande saguão e subiu correndo as escadas que levavam à biblioteca do palácio. Aquela visita também era uma primeira vez para ele. Jarred nunca gostara de estudar.
Mas havia fatos de que devia se inteirar, e a biblioteca provavelmente era o único lugar em que os encontraria.



N/A: Primeiro capitulo postado...

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