A ferraria



A ferraria

Mais tarde, Jarred mal conseguiu lembrar como se arrastou pela vala, tropeçando num emaranhado de ervas daninhas e arbustos espinhosos do outro lado da estrada. Ele não sabia o que o havia guiado à ferraria, onde, por fim, caiu desmaiado no chão.
Talvez ele tivesse visto o brilho do fogo, talvez tivesse ouvido o bater do martelo no metal incandescente, e o som lhe tivesse lembrado as lições com Endon. Ou talvez o espírito de Adin estivesse olhando por ele, pois Crian, o ferreiro, obstinado e destemido, provavelmente era o único homem em Del que o acolheria.
Crian ergueu-o e ajudou-o a entrar na pequena casa atrás da ferraria. A seu chamado, uma garota de rosto bondoso veio correndo. Seus olhos estavam repletos de perguntas, mas ela se manteve em silêncio, enquanto ajudava Crian a dar água e pão a Jarred e a lavar-lhe os cortes e arranhões. Eles tiraram suas roupas rasgadas e sujas, deram-lhe uma longa camisola e acomodaram-no numa cama estreita.
E Jarred dormiu.
Quando acordou, o grande martelo batia outra vez no metal, a garota cantava na cozinha e o sol se punha. Dormira o dia inteiro.
Ele encontrou uma muda de roupa aos pés da cama. Jarred as vestiu, arrumou a cama e saiu devagar.
Crian se encontrava trabalhando na ferraria. O velho homem se virou e fitou-o sem falar.
— Agradeço sua bondade, do fundo do coração — Jarred disse, desajeitado. — Vou embora agora, pois não quero lhe causar problemas. Mas, se os guardas do palácio vierem à minha procura, eu lhe imploro para não contar que estive aqui. Eles lhe dirão que tentei matar o novo rei, mas isso é mentira.
— Pois é uma pena — respondeu o velho homem sombrio, retomando seu trabalho. — Muitos em Del lhe agradeceriam se o tivesse feito.
Jarred prendeu a respiração. Então, as coisas estavam nesse pé. O rei não era amado, mas odiado. E não era de surpreender. Até onde sabiam essas pessoas, ele vivia no luxo atrás dos altos muros do palácio, enquanto elas sofriam. Elas não compreendiam que ele não tinha idéia de seus problemas.
— Os guardas não virão — afirmou o velho homem sem se voltar. — Joguei suas roupas sobre os rochedos no mar e vi quando as encontraram. Eles acreditam que você se afogou.
Jarred não soube o que dizer. Notou que Crian tinha terminado a ferradura na qual estivera trabalhando. Sem pensar, apanhou as pesadas tenazes ao lado da fornalha e deu um passo à frente. Crian o fitou surpreso, mas deixou-o apanhar a ferradura e mergulhá-la no barril que se encontrava ao lado. A água chiou e borbulhou enquanto o ferro esfriava.
— Você já fez esse trabalho antes — o velho homem deduziu.
— Um pouco — Jarred confirmou com um gesto. Com cuidado, tirou a ferradura da água e colocou-a ao lado.
— Estou velho — Crian disse, observando-o. — Meu filho, cujas roupas você está usando, foi morto há três anos. Sua amada esposa morreu antes dele, quando a filha deles nasceu. Agora, Anna é tudo o que me resta. Levamos uma vida simples, mas sempre temos comida na mesa. E continuaremos a ter, enquanto eu tiver forças.
Ele fitou as mãos de Jarred, macias e claras, com unhas longas e arredondadas.
— Você poderia ficar aqui, garoto. Mas teria de trabalhar duro para ganhar seu sustento. Acha que pode fazê-lo?
— Posso, sim — Jarred respondeu com determinação.
Nada lhe daria mais prazer do que ficar. Gostara do velho ferreiro. Gostara da calma e doce Anna. Além do mais, ali estaria perto do palácio. Nada poderia fazer por Endon naquele momento, a não ser ficar vigilante. E ele jurara que era isso que faria.
Prandine pensava que ele estava morto e provavelmente não contaria o fato a Endon. Seria melhor Prandine deixar o rei acreditar que Jarred ainda estava vivo e que era perigoso. Se temesse pela própria vida, Endon estaria mais disposto a fazer exatamente o que lhe ordenassem.
Um dia, porém, Endon poderia perceber que seu amigo estava certo afinal, Jarred pensou. Um dia, ele poderá me chamar. E, se isso acontecer, estarei preparado.
Então, estava combinado. Jarred conseguiu uma tesoura e cortou as longas tranças, que não deixavam dúvidas de que vinha do palácio. E, depois disso, todos os dias, trabalhou na ferraria.
Ele já sabia como trabalhar o ferro e o aço quentes para fabricar espadas e escudos esmerados. Agora, tinha de aprender a produzir objetos mais simples, como ferraduras, machados e lâminas de arado. Isso ele conseguiu rapidamente e, à medida que seus músculos se enrijeciam e suas mãos delicadas ficavam ásperas, ele assumia cada vez mais as tarefas do ferreiro.
Havia muito trabalho na ferraria, mas, mesmo assim, Crian e Anna eram pobres. Jarred logo descobriu que isso ocorria porque a maioria das pessoas em Del era ainda mais pobre e não podia pagar muito pelo trabalho do ferreiro. Alguns nem tinham condições de pagar. E Crian os ajudava mesmo assim, dizendo que pagassem quando pudessem.
No segundo dia, Jarred percebeu que tudo o que ele e Endon haviam aprendido sobre a vida fora do palácio era mentira. A cidade era um lugar de fome, doenças e sacrifícios. Do outro lado de seus muros, terríveis bestas estranhas e bandos de ladrões andavam à espreita. Durante muitos anos, nenhuma notícia tinha vindo das cidades e vilas espalhadas pelo país.
Muitas pessoas estavam enfraquecidas pela fome. No entanto, dizia-se que, às altas horas da noite, carroças fortemente vigiadas, carregadas de alimentos e bebidas, passavam pela cidade e subiam até os portões do palácio. Ninguém sabia de onde elas vinham.
— De algum lugar distante, eu acho — Crian resmungou, enquanto se sentavam diante do fogo, na segunda noite. — Esses luxos não podem ser encontrados aqui.
— Dizem que Deltora já foi um país de paz e fartura — Anna acrescentou. — Mas isso foi há muito tempo.
— O novo rei nada sabe a esse respeito — Jarred gritou. — O velho rei também não sabia. Vocês deveriam ter contado a ele...
— Contado a ele? — Crian grunhiu, zangado. — Nós fizemos isso diversas vezes! — Ele girou na cadeira e tirou uma velha caixa de estanho da prateleira e a jogou na direção de Jarred. — Abra-a! — ordenou.
Jarred ergueu a tampa da caixa. Dentro dela, havia vários rolos de pergaminho com bordas douradas. Confuso, ele tirou um deles e abriu-o:
“ O Rei agradece sua mensagem. Ele atenderá seu pedido quando for oportuno.
Alton ”



Jarred franziu a testa, devolveu o bilhete à caixa e retirou outro. Os dizeres eram exatamente os mesmos. O mesmo ocorreu com o outro que examinou, e com o seguinte. A única diferença no quarto bilhete era o fato de se referir à "rainha" e estava assinado "Lília". Jarred lembrou-se de que a rainha Lília era a mãe de Alton.
Ele procurou entre os bilhetes. Havia centenas deles, todos exibindo o selo real. Alguns eram muito mais antigos e assinados por nomes reais que ele lembrava ter ouvido nas aulas de história.
— Eles são todos iguais — Crian disse, observando-o ler um após o outro. — A única diferença entre eles é o nome na parte inferior. Foram enviadas mensagens ao palácio durante séculos, implorando por ajuda. E esses malditos bilhetes foram tudo o que o povo recebeu em troca. Nada foi feito. Nada!
A dor e a raiva fizeram a garganta de Jarred contrair-se.
— O rei Alton, pelo menos, nunca recebeu suas mensagens, Crian — ele disse, tão calmamente quanto possível. — Acho que o conselheiro-chefe impediu o rei de vê-las. Um homem chamado Prandine.
— O rei assinou as respostas e colocou nelas o selo real — Crian ressaltou com frieza, batendo o dedo na caixa. — Assim como a mãe dele e o avô, antes dele.
— Manda a Norma, a tradição, que cada conselheiro-chefe prepare todas as respostas para que o rei assine — Jarred exclamou. — O velho rei assinava e selava tudo o que Prandine colocava à sua frente.
— Então ele não passava de um tolo e um fracote! — Crian retrucou, áspero. — E não há dúvidas de que o filho também é. Endon será tão inútil para nós quanto o pai. — Ele sacudiu a cabeça. — Temo por Deltora — Crian murmurou. — Estamos tão fracos agora que, se fôssemos invadidos pela Terra das Sombras, nada poderíamos fazer para nos proteger.
— O Senhor das Sombras não vai invadir, vovô — Anna o tranqüilizou. — Não enquanto o Cinturão de Deltora nos proteger. E nosso rei guarda o Cinturão. Pelo menos isso ele faz por nós.
Jarred sentiu um calafrio de medo, mas ele não podia contar à Anna que estava enganada. Se ela descobrisse que o rei não usava o
Cinturão e que o deixava ficar trancado sob os cuidados de terceiros, ela perderia a última de suas esperanças.
"Oh, Endon", ele pensou, ao deitar-se naquela noite. "Só posso comunicar-me com você se essa for sua vontade. Você está sendo muito bem vigiado, porém pode me contatar. Vá até a árvore oca. Leia meu bilhete. Envie um sinal. "
A partir desse momento, todos os dias, antes de começar a trabalhar, Jarred observava a árvore que se erguia contra a nuvem nebulosa na colina. Ele olhava com atenção e procurava o brilho da flecha dourada do rei no topo. O sinal de que Endon precisava dele.
Mas muito, muito tempo se passou antes que o sinal viesse. E, então, era tarde demais.









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