Amigos até a morte



Amigos Até A Morte


Com um riso trêmulo, Jarred curvou-se para erguer o rei.
— Endon! Eu também não o reconheci. Levante-se, pelo amor de Deus!
Ao fixar o olhar no amigo, a vista se acostumando lentamente à luz, constatou que não era de surpreender que não o tivesse reconhecido.
O garoto magro e solene que deixara para trás há sete anos transformara-se num homem. Endon ficara tão alto e encorpado quanto o próprio Jarred. Sua túnica espessa e de gola alta estava cravada de minúsculas pedras preciosas que brilhavam na luz. Seus olhos tinham um contorno preto, e os cílios haviam sido pintados de azul, conforme o costume do palácio. Os cabelos longos e a barba haviam sido trançados e entrelaçados com um fio dourado. Endon desprendia um odor de perfume e especiarias. Para Jarred, que ficara tanto tempo longe do palácio e de seus hábitos, ele parecia estranho e horripilante.
Jarred percebeu que Endon também o fitava fixamente e, de repente, conscientizou-se de seus trajes de operário, suas botas grosseiras, sua barba áspera e seus cabelos desalinhados. Sentiu-se deselegante e desajeitado e virou-se para ocultar o constrangimento.
Ao fazê-lo, finalmente se deu conta de que estava na capela. Um dos ladrilhos de mármore que circundavam a plataforma elevada no centro havia sido empurrado para o lado, deixando um buraco escuro no espaço que ocupara.
— Apenas a família real conhece o túnel que atravessa a colina. Ele deve ser usado somente em momentos de grande perigo — Jarred ouviu o rei informar delicadamente. — O rei Brandon o idealizou quando o palácio foi construído. Meu pai contou-me sobre ele quando eu era muito jovem, como meu avô contou a ele, com palavras que até mesmo uma criança lembraria. Há uma rima para entrar no palácio e outra para sair dele. É um segredo muito bem guardado. Nem mesmo os conselheiros-chefes o conhecem.
Jarred não respondeu. Ele ergueu o olhar para a plataforma e viu que alguém estava deitado ali. Era o corpo de uma velha mulher. As mãos maltratadas pelo trabalho estavam cruzadas sobre o peito. A face enrugada estava tranqüila sob a luz bruxuleante das velas que a rodeavam.
— Min! — ele sussurrou. Seus olhos queimaram com lágrimas inesperadas ao olhar a velha ama-seca que cuidara dele na infância. Ele não a vira por vários anos, mas pensara nela com freqüência. Era difícil acreditar que estava morta.
— Sabe, ela tem um filho adulto — Endon murmurou. — Ele vivia no palácio, mas nunca o conheci. Perguntei sobre ele quando soube que Min havia morrido. Disseram-me que ele fugiu, escapou pelos portões durante um banquete. Ele tinha medo, Jarred. Min deve ter-lhe contado o que ouviu. Ele sabe que ela foi assassinada...
— Assassinada? — Jarred sufocou um grito. — Mas... O rosto de Endon estava retorcido pelo sofrimento.
— Ela me procurou em meus aposentos. Eu estava saindo para ir ao banquete em comemoração ao sétimo ano de meu reinado — ele murmurou. — Ela estava preocupada. Estivera trabalhando em seu quarto de costura e, por acaso, ouviu sussurros do lado de fora que a assustaram. Ela me disse que havia inimigos no palácio e que um grande mal iria nos atingir aquela noite.
— Não lhe dei ouvidos — Endon contou, baixando a cabeça. — Pensei que ela tivesse adormecido durante o trabalho e que tudo não passasse de um sonho. Dei risada de seus temores e a mandei embora. Uma hora depois, ela estava morta. Ela caiu do topo da escadaria que conduz até o saguão no andar de baixo. Dizem que foi um acidente, mas...
— Mas você não acredita nisso — Jarred concluiu a frase para o amigo, enquanto olhava tristemente para o rosto pálido e imóvel de Min. — Você acha que ela foi morta porque sabia demais.
— Sim — Endon retrucou em voz baixa. — E minha mulher acha o mesmo.
— Então, você se casou — Jarred comentou, fitando-o. — Eu também.
— Isso é bom — Endon murmurou educadamente, com um meio sorriso. — Espero que você seja tão feliz no casamento quanto eu. Minha mulher, a rainha, chama-se Sharn. Nunca nos falamos antes do casamento, mas, a cada ano que passa, gosto mais dela. Nosso primeiro filho irá nascer no final do verão.
— E o nosso, no início do outono — Jarred informou.
Fez-se um momento de silêncio, e ambos refletiram sobre as mudanças que sete anos haviam causado. Então, Endon fitou Jarred diretamente nos olhos.
— É bom vê-lo outra vez, meu amigo — ele confessou com brandura. — Tenho sido cruelmente punido por ter acreditado que você poderia me trair. Senti muito sua falta.
E, de repente, toda a estranheza entre os dois desapareceu. Jarred estendeu a mão e apertou a de Endon com entusiasmo.
— Amigos até a morte fomos quando crianças, e amigos até a morte seremos sempre — ele afirmou. — Você sempre soube disso no fundo de seu coração, pois me chamou quando os problemas surgiram. Eu queria apenas que o chamado tivesse vindo antes. Receio que tenhamos muito pouco tempo.
— Então, Min estava certa — Endon sussurrou. — Há algo maligno aqui.
— E tem havido durante muito tempo — Jarred confirmou. — E agora...
Ambos se viraram subitamente, as mãos nas espadas, ao ouvirem a porta atrás deles se abrir.
— Endon, já amanheceu — uma voz chamou delicadamente.
— Sharn! — Endon exclamou. Ele correu ao encontro da jovem e bela mulher que se esgueirava para dentro da capela. Como ele, estava ricamente vestida, e os cabelos brilhantes estavam presos no alto da cabeça. Havia profundas olheiras sob seus olhos, como se tivesse ficado acordada a noite inteira.
Ela sufocou um grito e deu um passo para trás quando viu Jarred.
— Não tenha medo, Sharn — Endon a tranqüilizou. — É somente Jarred.
— Jarred! Você veio! — ela exclamou, o rosto cansado abrindo-se em um sorriso de alívio.
— Eu vim — Jarred assentiu. — E vou fazer o que puder para ajudá-los a lutar contra os problemas que surgiram no reino. Mas precisamos agir depressa. Precisamos ir imediatamente à torre para que Endon possa recuperar o Cinturão de Deltora.
— Jarred, eu... eu não posso — Endon balbuciou pálido. — A Norma...
— Esqueça a Norma, Endon! -Jarred replicou, impaciente, correndo para a porta. — Eu lhe disse isso uma vez e você não me deu atenção. Não cometa o mesmo erro novamente. O Cinturão é a única proteção de Deltora. O povo precisa que você o use. E acho que ele corre perigo, grande perigo.
Como Endon continuava imóvel, ainda hesitante, Sharn tomou-lhe o braço.
— Você é o rei, Endon — ela disse com calma. — Seu dever para com Deltora é muito maior do que o dever de obedecer à Norma. Vamos juntos à torre.
E, finalmente, Endon assentiu com um gesto de cabeça.
— Muito bem — ele concordou. — Nós vamos. Juntos.
Eles subiram as imensas escadarias, passaram pelo primeiro andar, pelo segundo, pelo terceiro e, assim, chegaram ao aposento da torre. Eles procuraram mover-se em silêncio, mas não viram ninguém. Ainda era muito cedo e, embora os cozinheiros tivessem dado início às suas tarefas nas cozinhas do andar térreo, poucas pessoas estavam circulando no palácio.
Quando alcançaram o último lance de degraus, Jarred já pensava que tudo iria dar certo. Ele subia ansiosamente, seguido de perto por Endon e Sharn. Eles chegaram ao topo e, então, pararam abruptamente.
A porta da sala da torre estava escancarada, os três trincos de ouro quebrados. No chão, do lado de fora, os três guardas jaziam mortos no mesmo lugar em que haviam caído, as espadas ainda presas nas mãos.
Jarred ouviu um grito sufocado atrás dele. Endon passara correndo por ele e entrara no aposento. Ouviu-se, então, um único grito angustiado. E, depois, o silêncio.
O coração de Jarred pareceu revirar-se no peito. Lentamente, ele e Sharn seguiram o rei.
O pequeno aposento circular estava mergulhado no silêncio e um cheiro repulsivo pairava no ar. O céu, que se via pelas janelas abertas, estava coberto por uma agressiva luz vermelha, enquanto o sol, que acabara de surgir, espiava por entre uma espessa cortina de nuvens. A caixa de vidro que abrigava o Cinturão de Deltora fora quebrada em mil pedaços.
Endon estava ajoelhado entre os fragmentos cintilantes. O Cinturão, ou o que restara dele, encontrava-se no chão à sua frente. O rei o apanhou. Pendendo debilmente de suas mãos, havia se transformado em uma corrente emaranhada e inútil de aço cinzento. Os medalhões haviam sido quebrados e retorcidos. As sete pedras preciosas haviam desaparecido.


N/A: Mais um capitulo postado.

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