Harry



Harry

Harry correu para casa pelas ruelas de Del e passou por casas iluminadas firmemente fechadas para a noite. Ele corria tão rápido e silenciosamente quanto um gato, o coração retumbando no peito.
Era tarde, muito tarde. Ele tinha de se apressar, mas sabia que o mais leve ruído poderia traí-lo.
Era proibido estar nas ruas após o pôr-do-sol. Essa era uma das leis mais severas de Voldemort, e entrara em vigor no dia em que ele tomara posse de Del, há mais de dezesseis anos. A penalidade para quem a infringisse era a morte.
Harry penetrou numa rua longa e estreita que atravessava a parte da cidade em ruínas. Ela exalava um cheiro úmido e decadente. As pedras sob seus pés eram limosas e traiçoeiras.
Ele já estivera fora depois do pôr-do-sol antes, mas não por tanto tempo e nunca tão longe de casa. Ele desejou, do fundo do coração, ter sido mais cuidadoso. O pensamento de que seus pais estariam esperando por ele, preocupados, percorreu-lhe a mente como um raio.
— Você tem a tarde livre, meu filho — o pai lhe dissera ao terminarem a refeição do meio-dia. — Seu décimo sexto aniversário é uma data especial. Sua mãe e eu queremos que você se divirta e comemore com os seus amigos.
Harry encheu-se de alegria. Nunca antes fora liberado no meio de um dia de trabalho. Geralmente, tinha de estudar à tarde.
Ele sempre se sentira injustiçado, pois era o único entre os amigos que tinha lições para fazer. Por que aprender a ler e escrever? Por que aprender matemática e história e preocupar-se em decifrar charadas? De que serviam tais coisas para um ferreiro?
Seus pais, porém, insistiam em que as aulas continuassem e, resmungando, Harry obedecia. Agora estava acostumado às coisas como eram, o que, porém, não significava que gostasse delas. Uma tarde livre era o melhor presente que poderia imaginar.
— À noite, haverá outro presente. E... assuntos que precisamos discutir em família — o pai dissera, trocando olhares com a mãe.
Harry fitara seus rostos sérios com uma breve curiosidade. — Que assuntos? — quis saber. A mãe sorriu e sacudiu a cabeça.
— Falaremos disso à noite, Harry — ela disse, empurrando-o com delicadeza para a porta. — Por ora, aproveite seu dia livre. Mas não se meta em encrencas. E não se esqueça da hora, eu lhe imploro. Esteja em casa bem antes do pôr-do-sol.
Harry prometeu com prazer e correu. Saiu da casa, atravessou a ferraria onde ajudava o pai todas as manhãs e passou por Rony, o mendigo esfarrapado e paspalhão que ficava sentado todos os dias no portão e dormia no quintal da ferraria à noite. Atravessou a estrada que conduzia ao palácio na colina e transpôs com dificuldade os campos cobertos de ervas daninhas, mais ao longe. Então, correu alegremente até alcançar o mercado, onde pôde se perder nos aromas e sons da cidade barulhenta e fervilhante.
Ele encontrou um de seus amigos, depois outros, mais tarde outros três. Alegremente, juntos, perambularam por seus locais preferidos. Não tinham dinheiro para gastar, mas se divertiam mesmo assim, importunando os barraqueiros nos mercados, correndo para cima e para baixo pelas ruas estreitas e sombrias, enganando os Comensais, procurando moedas de prata nas sarjetas entupidas e inundadas. Então, em um pedaço de terra coberto de vegetação não longe dos muros do palácio, eles encontraram algo melhor do que prata: uma velha árvore retorcida, coberta de pequenos frutos redondos e vermelhos.
— Maçãs! — Harry reconheceu. Ele provara uma maçã certa vez, quando era muito pequeno. Naqueles dias, ainda existiam alguns grandes pomares na cidade. Maçãs e outras frutas podiam ser compradas nos mercados, mas eram muito caras. Anos atrás, porém, todas as frutas de Del foram declaradas propriedade de Voldemort, não importava onde crescessem as árvores que as produziam.
Por algum motivo, aquela árvore havia sido esquecida e não havia guardas à vista.
Harry e os amigos colheram tantas maçãs quantas puderam carregar e desceram até os túneis de esgoto nos subterrâneos da cidade para comê-las sem serem vistos. As frutas eram pequenas e manchadas, mas eram doces. Foi um banquete, ainda mais apreciado por saberem que tinha sido roubado do odiado Voldemort.
Uma hora antes do pôr-do-sol, os amigos de Harry o deixaram e correram para casa. Harry, contudo, não estava disposto a desperdiçar sua última hora de liberdade. Permaneceu no silêncio e na obscuridade dos esgotos, explorando e pensando.
Ele pretendia ficar somente alguns momentos, mas descobriu um pequeno túnel que saía do principal e que ia, tinha certeza, na direção do palácio na colina. Rastejou por esse novo túnel até onde ousou e retornou, prometendo a si mesmo que iria até mais longe em outro dia. Mas, quando finalmente subiu à superfície, constatou que o tempo havia voado. A noite caíra.
E, agora, ele estava em perigo.
Harry parou de correr quando dois Comensais viraram a esquina à sua frente e começaram a caminhar em sua direção. Eles conversavam e ainda não o tinham ouvido, visto ou sentido o seu cheiro. Mas quando o fizessem...
Ele prendeu a respiração, olhando desesperadamente para eles e procurando um meio de escapar. Muros altos subiam de cada lado de onde se encontrava, lodosos e cobertos de musgo. Ele nunca conseguiria escalá-los sem ajuda. Tampouco podia voltar e correr. Fugir significava morte certa.
Harry percorrera as ruas de Del toda a sua vida e, muitas vezes, se viu em perigo. Ele se orgulhava de suas muitas e felizes escapadas no passado, pois era rápido, ágil e ousado. Mas tinha bom senso também, o suficiente para saber que não podia correr por toda a extensão daquela rua sem ser apanhado.
Cada Comensal carregava um estilingue e um estoque do que o povo de Del chamava de "bolhas". As bolhas eram ovos de prata cheios de um veneno causticante. Elas se rompiam em contato com o alvo, e os Comensais sabiam atirá-las com força e precisão mortais, mesmo no escuro. Harry tinha visto muitas vítimas das bolhas caírem, retorcendo-se em agonia, e sabia que não queria arriscar-se a ter o mesmo fim.
No entanto, se ficasse onde estava, os Comensais o encontrariam e ele acabaria morrendo mesmo assim. Pela bolha ou pela adaga, ele morreria.
Harry colou-se ao muro, parecendo uma sombra, sem ousar mover um músculo. Os Comensais caminhavam em sua direção, cada vez mais perto...
"Se ao menos eles se virassem!", pensou, agitado. "Se ao menos algo os distraísse!" Então, ele teria uma chance.
Não rezou por um milagre, pois não acreditava neles. Naqueles dias, poucos cidadãos de Del acreditavam. Assim, ficou assombrado quando, um segundo depois, ouviu-se um tumulto na esquina atrás dos Comensais. Eles giraram nos calcanhares e começaram a correr na direção do ruído.
Mal acreditando em sua sorte, Harry virou-se para correr. Então, com um choque, sentiu algo tocar-lhe o ombro. Surpreso, viu que se tratava de uma corda, uma corda que pendia do alto do muro. Quem a jogara?
Não havia tempo para perguntas ou dúvidas. Em questão de segundos, subiu por ela para salvar a sua vida. Não parou para tomar fôlego até alcançar o alto do muro e balançar-se para atingir uma grande árvore do outro lado. Ofegante, encolheu-se entre dois galhos e olhou ao seu redor.
Estava só. A corda havia sido presa com firmeza ao redor do tronco da árvore, mas não havia sinal de quem a jogara sobre o muro.
Os Comensais ainda não estavam visíveis, mas Harry podia ouvi-los nas proximidades, discutindo enquanto procuravam a origem do barulho que tinham ouvido. Ele tinha quase certeza de que nada encontrariam. Estava convencido de que a pessoa que atirara a corda também tinha jogado uma pedra para distraí-los. Era isso que ele faria se estivesse tentando salvar um amigo.
Um amigo? Harry mordeu o lábio, puxando a corda rapidamente para cima. Até onde sabia, todos os seus amigos se encontravam em suas casas, em segurança. Quem poderia saber que ele estava em perigo?
Remoeu o assunto por um momento e, então, sacudiu a cabeça. "Isso não é importante agora", disse a si mesmo. "O importante é chegar em casa antes que alguma outra coisa aconteça."
Ele desamarrou a corda, enrolou-a e pendurou-a ao ombro. Cordas como aquela eram valiosas.
Desceu ao solo em silêncio e forçou a vista para enxergar na escuridão. Lentamente, reconheceu o contorno do objeto mais próximo. Era um velho torno de oleiro quebrado e caído de lado, na grama.
Com um estremecimento, percebeu que se encontrava no quintal de quem havia sido o maior oleiro da cidade. Passara milhares de vezes diante da casa queimada, das janelas quebradas e da porta marcada a ferro quente com o símbolo de Voldemort.


A marca indicava que a mão de Voldemort pousara sobre a olaria. Agora, era um lugar sem vida, que nunca mais deveria ser usado ou mesmo ocupado. Havia muitos edifícios e símbolos como aquele naquela parte da cidade. Ali viveu um grupo que tentou resistir a Voldemort e que tramou para derrubá-lo. Ele, porém, descobriu, como sempre conseguia quando se tratava de segredos desse tipo.
Harry abriu caminho entre as enormes pilhas de potes quebrados cobertos de ervas daninhas. Passou pelos dois grandes fornos onde os potes eram cozidos, agora apenas montes de tijolos em ruínas. Quase tropeçou em algo enterrado na grama, um cavalo de madeira esmagado pelo pé de um Comensal há muito tempo.
Ao chegar à frente do edifício, Harry tremia e respirava com dificuldade. Não com medo agora, mas com uma repentina e profunda ira.
"Por que seu povo tinha de sofrer dessa maneira? Por que ele tinha de andar furtivamente na própria cidade como um criminoso, com medo de ser marcado, preso ou morto?"
Ele saiu para a rua deserta e olhou para o palácio na colina, doente de ódio. Pois, até onde podia lembrar, o palácio tinha sido o quartel-general de Voldemort. Os amigos lhe contaram que, antes dele, ali vivera o rei de Deltora em meio ao luxo e, nessa época, o palácio estava quase escondido por uma névoa pálida e tremeluzente. Mas, com a chegada de Voldemort, a névoa desapareceu totalmente. Agora, o palácio podia ser visto com clareza.
Embora os pais de Harry o tivessem obrigado a estudar a história de Deltora desde seu princípio, pouco lhe contaram sobre a época que antecedeu seu nascimento. Eles pareciam ter medo de falar a respeito, afirmavam que Voldemort tinha espiões em todo lugar e que era melhor ficar em silêncio. Entretanto, os amigos de Harry não tinham receio e lhe haviam contado muitas coisas.
Eles lhe contaram que o último rei, como os governantes antes dele, não se importava com o povo e nada fez em seu favor. A única tarefa do rei Endon tinha sido guardar o mágico Cinturão de Deltora, mas ele fora fraco, preguiçoso e descuidado. Ele permitira que o Cinturão fosse roubado e abriu o caminho para Voldemort.
O rei estava morto, contaram seus amigos. "O que é ótimo", pensou Harry cruelmente, enquanto corria novamente para casa. "O rei merecia morrer pelo sofrimento que trouxe ao povo.”
Ele alcançou os campos e começou a correr, agachando-se o máximo que podia e escondendo-se no capim alto. Alguns minutos mais e estaria em segurança. Ele já podia ver as luzes de sua casa, piscando fracamente a distância.
Ele sabia que enfrentaria problemas por estar tão atrasado e que lhe fariam perguntas sobre a corda que carregava. Com sorte, contudo, sua mãe e seu pai ficariam tão aliviados por vê-lo que logo o perdoariam.
"Pelo menos, eles não podem me mandar para a cama sem jantar", Harry pensou, satisfeito, caminhando depressa pela rua na direção da ferraria. Eles haviam dito que tinham um assunto a discutir com ele à noite.
Por alguns instantes, perguntou-se qual seria esse assunto e sorriu com a lembrança de como os pais pareceram sérios quando falaram a respeito.
Ele amava muito a ambos, e não havia ninguém mais comum, tímido e tranqüilo do que Jarred e Anna, da ferraria. Jarred mancava visivelmente desde que se ferira ao cair de uma árvore, quando Harry tinha dez anos. Mas, mesmo antes disso, ele e Anna viviam uma vida muito reclusa. Eles pareciam se satisfazer em ouvir as histórias dos viajantes que paravam na ferraria, em vez de ver a vida por si mesmos.
Harry nasceu somente após o período de sofrimento e terror que marcara a chegada de Voldemort. Apesar disso, ele sabia que muitos na cidade haviam lutado e morrido, e que muitos outros haviam fugido aterrorizados.
Jarred e Anna não fizeram nenhuma dessas coisas. Enquanto ao redor deles reinava a confusão e o pânico, permaneceram em sua cabana e obedeceram a todas as ordens dadas a eles, nada fazendo que pudesse atrair a ira do inimigo. E, quando o pânico terminou, e a mais completa miséria se instalou na cidade, reabriram as portas da ferraria e recomeçaram a trabalhar, lutando apenas para sobreviver em seu mundo novo e destruído.
Aquilo era algo que Harry jamais teria conseguido fazer. Ele não podia compreender tal comportamento. Estava convencido de que tudo o que os pais sempre quiseram da vida era ficar longe de problemas, a todo o custo. Ele tinha a profunda certeza de que nada que eles tivessem a dizer poderia surpreendê-lo.
De modo que foi somente alívio que o invadiu ao atravessar os portões da ferraria, evitar Rony, o mendigo, que caminhava lentamente para seu abrigo no canto do quintal, e transpor correndo a porta da cabana. As desculpas estavam na ponta da língua, e a lembrança do jantar preenchia sua mente.
Mal sabia ele que, antes que uma hora se passasse, tudo iria mudar para ele.
Mal sabia ele que estava prestes a ter a maior surpresa de sua vida.



N/A: MAis um capitulo postado


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