Traição



Traição


Com um grito, Sharn correu para o lado do marido e, delicadamente, ajudou-o a se erguer. Ele ficou de pé, atordoado, segurando com força o cinturão vazio e destruído.
Um desespero cego tomou conta de Jarred. O que temia aconteceu. O inimigo triunfara.
Um riso baixo e zombeteiro se fez ouvir atrás deles. Prandine encontrava-se parado na soleira da porta. Sua túnica longa e negra o fazia parecer mais alto e magro do que nunca e era como se uma máscara tivesse caído de seu rosto. A expressão grave e séria havia desaparecido. Agora, a ganância e o triunfo lhe iluminavam o olhar e a crueldade lhe retorcia os lábios finos.
— Então, Jarred, você ressuscitou dentre os mortos para tentar interferir mais uma vez — ele murmurou rispidamente. — Mas você chegou tarde. Breve, muito breve, Deltora irá se curvar diante da sombra de meu senhor.
Uma raiva descontrolada tomou conta de Jarred. Ele investiu contra Prandine, a espada apontada para seu coração. Em um instante, a espada ficou incandescente. Jarred deixou-a cair com um grito de agonia, a mão queimada e coberta de bolhas.
— Você foi um tolo em vir até aqui — disparou Prandine. — Tivesse ficado onde estava, eu continuaria a acreditar que você estava morto e que não representava perigo. Agora, você está perdido, como seu rei idiota, a bonequinha de porcelana que chamam de rainha e o pirralho que ela carrega.
De dentro da túnica, ele tirou uma longa e fina adaga, a ponta ameaçadora lançando um brilho esverdeado.
Jarred afastou-se, lutando contra a dor na mão ferida, tentando desesperadamente pensar. Ele não queria morrer, mas sabia que teria de salvar Endon, Sharn e o bebê ainda não nascido, o herdeiro do trono de Deltora, a todo o custo.
— Somos muitos contra você, Prandine — ele avisou em voz alta.
— Enquanto estiver lutando com um de nós, os outros poderão escapar.
— Jarred se perguntou se Prandine se daria conta de que esse não era somente um desafio, mas também um recado para Endon. "Enquanto eu o distraio, pegue Sharn e corra!"
Mas Prandine riu outra vez e fechou a porta atrás de si com um pontapé.
— Não haverá luta — ele escarneceu, dando um passo à frente.
— Nessa lâmina, há um veneno mortal. Um pequeno arranhão e o fim não tardará a chegar. Assim como ocorreu com sua mãe e seu pai, rei Endon.
— Assassino! Traidor! — Endon vociferou, empurrando Sharn para trás de si. — Você traiu seu rei e seu reino!
— Este não é meu reino — rosnou Prandine. — Minha lealdade, como a lealdade dos conselheiros-chefes antes de mim, sempre foi dedicada a outro lugar e a um mestre muito maior.
Ele fitou Endon com desprezo.
— Você é o último de uma linhagem de bufões reais, rei Endon. Aos poucos, roubamos o poder de sua família até que todos se transformassem em nada além de marionetes que obedeciam às nossas ordens. E então, finalmente, chegou o momento certo para tirar-lhes sua última proteção.
Prandine apontou um dedo esquelético para a corrente emaranhada nas mãos de Endon.
— Finalmente, a maldita obra do ferreiro Adin foi desfeita. O Cinturão de Deltora não existe mais.
— As pedras preciosas não podem ser destruídas — Endon afirmou, os lábios descorados. — E levá-las além das fronteiras de Deltora significa a morte.
— As pedras foram espalhadas em lugares distantes e estão escondidas onde ninguém ousaria procurá-las — Prandine sorriu com crueldade. — E, seja como for, quando você e seu futuro pirralho estiverem mortos, encontrá-las será inútil.
O aposento escureceu, e trovões rugiram fora da torre. O olhar de Prandine brilhou, triunfante.
— O Senhor das Sombras está chegando — ele avisou com desprezo.
Encolhida de encontro à parede, Sharn gemeu baixinho. Então, ela pareceu ouvir algo. Moveu-se em direção à janela aberta e olhou para fora, não para o céu escuro, mas para baixo, para o chão abaixo da torre. No momento seguinte, saltou para trás e cobriu a boca com a mão, como se quisesse abafar um grito.
— O que foi? — resmungou Prandine, ríspido, repentinamente alerta.
— Nada — Sharn balbuciou, sacudindo a cabeça. — Eu me enganei. Não há ninguém ali.
"Ah, Sharn, até mesmo uma criança poderia adivinhar que você está mentindo!" Jarred pensou, desesperado. "Graças a você, quem quer que seja que tenha vindo ajudar está perdido.”
— Fiquem onde estão ou ela morre já! — rosnou Prandine para os dois homens enquanto atravessava o aposento.
— Não olhe para fora! Não há ninguém ali! — ela gritou novamente, encolhendo-se quando ele a alcançou.
— Pois veremos — Prandine resmungou. Ele passou a cabeça e os ombros pela janela aberta.
Sharn, num movimento inesperado, agachou-se atrás dele, agarrou-lhe os joelhos, puxou suas pernas para trás e para cima e empurrou-o sobre o parapeito.
Jarred e Endon, paralisados de susto, ouviram os gritos do inimigo enquanto este mergulhava em direção ao solo duro, muitos metros abaixo. Ambos olharam fixamente para o pequeno vulto que voltava da janela para encará-los.
— Muitas vezes, no grande saguão, observei pequenos palhaços perturbarem os maiores atingindo-os por baixo — Sharn contou com calma. — Achei que o truque também poderia funcionar aqui.
— O que... o que você viu da janela? — Jarred gaguejou.
— Nada. Justamente como eu disse a ele. Mas eu sabia que ele não acreditaria em mim. — Sharn sacudiu a cabeça. — E eu sabia que ele se inclinaria para fora. Por que ele teria medo de uma bonequinha de porcelana como eu?
Jarred fitou-a com verdadeira admiração e, então, voltou-se para Endon.
— Você tem tanta sorte com sua mulher quanto eu tenho com a minha — ele elogiou.
Endon assentiu com um gesto lento. Ele parecia atordoado.
Trovões ressoaram fortemente lá fora, ameaçadores como um animal zangado. Nuvens negras com bordas escarlates aproximavam-se da torre.
— Precisamos correr para o túnel — Jarred disse, ansioso. — Vamos, corram!
Vozes assustadas ecoavam no palácio quando os três desceram correndo as escadas. As pessoas estavam despertando para as sombras e o terror.
— Eu provoquei isso — gemeu Endon, quando alcançaram a porta da capela. — Como posso abandoná-los?
— Você não tem escolha, Endon. Sua família precisa sobreviver ou Deltora ficará nas mãos de Voldemort para sempre — Jarred o persuadiu, ofegante.
Ele empurrou Endon e Sharn para o interior da capela e fechou a porta atrás deles.
— Vamos direto para a ferraria — avisou, correndo para a entrada do túnel.
— Precisamos fugir da cidade e encontrar um lugar para nos esconder — Sharn disse.
Mas as mãos de Endon apertaram-se ao redor da confusa massa de aço que um dia fora o Cinturão de Deltora.
— Não posso fugir e me esconder! — ele explodiu. — Preciso encontrar as pedras preciosas e recolocá-las no Cinturão. Sem elas, estou de mãos amarradas, e Deltora está perdida.
Fitando o rosto preocupado de Sharn, Jarred segurou o braço do amigo.
— As pedras precisam ser encontradas, mas não é você que deve procurá-las, Endon — ele disse com firmeza. — Voldemort estará procurando por você. Você deve ficar escondido e esperar.
— Mas e se eu morrer antes que o Cinturão esteja completo novamente? — Endon argumentou, desesperado. — Ele somente irá reconhecer o verdadeiro herdeiro de Adin. Ele irá brilhar somente para mim.
Jarred abriu a boca para falar, mas pensou melhor. Em breve, Endon acabaria por perceber que ele perdera toda a confiança que o povo depositava nele. O Cinturão de Deltora jamais brilharia para ele outra vez.
— Não se esqueça, meu querido — Sharn murmurou, aproximando-se dele. — Nosso filho também será um herdeiro de Adin.
Endon fitou-a, boquiaberto. Ela ergueu o queixo, orgulhosa.
— Se Voldemort pode ser paciente, nós também podemos — ela afirmou. — Nós nos esconderemos dele por ora, mas não será por temermos por nossas vidas, como ele irá pensar. Será para manter nosso filho em segurança e para nos prepararmos para o futuro. Os anos passarão e é possível que morramos, Endon — Sharn continuou, afagando-lhe o braço com carinho. — Mas nosso filho viverá depois de nós, recuperará o reino e o livrará da maldade.
O coração de Jarred encheu-se de emoção diante de tanta coragem. E, nesse momento, ele também encontrou ânimo para enfrentar o que deveria fazer.
Endon puxara Sharn para perto de si.
— Você é mesmo uma dádiva preciosa — ele murmurou. — Mas você não entende. Sem o Cinturão, nosso filho não conseguirá derrotar Voldemort. As pedras preciosas...
— Um dia, as pedras serão encontradas — Jarred interrompeu. Eles se afastaram um do outro para fitar o amigo.
— Continuaremos a discutir esse assunto na ferraria — ele recomendou, rapidamente. — Por ora, lembrem-se de que, agora que Prandine está morto, ninguém sabe que vocês têm um amigo fora do palácio. Voldemort não suspeitará que um humilde ferreiro possa representar uma ameaça para ele.
— Você vai agora procurar as pedras? — Endon sussurrou.
— Eu não teria êxito, não mais do que você — Jarred retrucou com um gesto negativo. — Os servos de nosso inimigo estarão vigiando os esconderijos das pedras, atentos a sinais de que elas possam estar em perigo. Daqui a alguns anos, porém, Voldemort começará a acreditar que está em segurança e a vigilância será afrouxada. Então, e somente então, a busca poderá começar.
Jarred estendeu a mão sã para Endon.
— Depois de hoje, é possível que não nos encontremos mais nesta vida, meu amigo — ele disse em voz baixa. — Estaremos bem longe um do outro, e quem poderá dizer o que irá nos acontecer nos perigosos dias que nos esperam? Mas, um dia, as pedras serão encontradas e o Cinturão de Deltora será restaurado. Isso será feito.
Endon tomou a mão de Jarred entre as suas e inclinou a cabeça. Então, de repente, as paredes da capela tremeram, como se o palácio tivesse sido atingido por um vento muito forte.
— Precisamos ir! — Sharn gritou, alarmada.
Ao ajudá-la a entrar no túnel, Endon voltou-se para Jarred.
— Você diz que devemos correr, que devemos nos esconder, mas para onde poderemos ir? — ele indagou com a voz trêmula.
— Juntamente com Voldemort, virá uma época de confusão e trevas — Jarred respondeu, pessimista. — Muitas pessoas estarão perambulando pelo reino, os vizinhos deixarão de se ver e a vida não será a mesma de antes. A confusão irá nos ajudar.
— Você pensou num lugar? — Endon sussurrou.
— Talvez — o amigo murmurou. — Será perigoso, mas, se você estiver disposto, vale a pena arriscar.
Endon nada mais perguntou e seguiu a mulher para o interior do túnel. Jarred entrou depois dele e puxou o ladrilho de mármore de volta ao lugar sobre sua cabeça, para que ninguém pudesse imaginar para onde teriam ido.
Assim que a última luz da capela desapareceu e a escuridão o envolveu, Jarred pensou em Anna e sentiu uma dor no coração.
A vida que levavam era difícil, mas eles eram felizes. Agora, tudo aquilo chegara ao fim. Medo e preocupação se aproximavam — longos anos de espera em que Deltora sofreria sob o jugo de Voldemort.
Somente o tempo poderia dizer o que aconteceria então.


N/A: Mais um capitulo postado

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