A fuga



A fuga

Sobressaltados, Endon e Jarred se viraram. Prandine encontrava-se parado no vão da porta. Seus olhos, fixos em Jarred, faiscavam de ódio.
— Como você ousa tentar o rei a se afastar de seu dever e da Norma, serviçal? — Ele sibilou, entrando a passos largos na capela. — Você sempre teve inveja dele e agora quer destruí-lo. Traidor!
— Não! — Jarred exclamou. Ele voltou-se para Endon outra vez.
— Acredite em mim — ele implorou. — Só estou pensando em seu bem.
— Mas Endon se afastou dele, horrorizado.
Jarred mergulhou a mão dentro da camisa, a fim de apanhar o livro, mostrá-lo ao amigo e provar que tinha boas razões para dizer o que disse.
— Cuidado, majestade! Ele tem uma faca — Prandine avisou, saltando para a frente e puxando Endon para baixo de seu manto, como se quisesse protegê-lo. Ele gritou, num tom esganiçado:
— Assassino! Traidor! Guardas! Guardas!
Por um instante, Jarred ficou imobilizado. Então, ouviu o som dos sinos de advertência. Escutou gritos de alarme e passadas pesadas aproximando-se da capela com um som surdo. Ele viu o sorriso zombeteiro e triunfante de Prandine e percebeu que o conselheiro tivera a oportunidade pela qual vinha esperando: a oportunidade de se livrar dele para sempre.
Jarred soube que, se desse valor à vida, teria de fugir. Empurrou Prandine para o lado e deixou a capela, correndo como o vento. Subiu as escadas e se dirigiu aos fundos do palácio. Mergulhou nas imensas cozinhas escuras, onde os cozinheiros começavam a acender o fogo nos enormes fogões. Atrás dele, pôde ouvir os gritos dos guardas:
— Traidor! Peguem-no! Peguem-no!
Mas os cozinheiros não tentaram impedir Jarred. Como podiam imaginar que era ele que os guardas perseguiam? Aquele era o jovem amigo do príncipe, que conheciam toda a vida. Assim, eles somente observaram quando Jarred abriu a porta bruscamente e correu para fora.
A propriedade estava deserta, exceto por um homem maltrapilho que colocava restos de comida em uma carroça puxada por um cavalo. Ele não percebeu quando Jarred mergulhou sob o esconderijo proporcionado pelos arbustos espessos que cresciam ao longo dos muros do palácio.
Mantendo-se abaixado, Jarred rastejou pelos arbustos até a frente do palácio. Então correu, esquivando-se e fazendo curvas até atingir a árvore próxima aos portões, onde, nos velhos tempos, tantas vezes ele e Endon haviam se escondido de Min.
Jarred arrastou-se para dentro da árvore oca e ali ficou, encolhido e ofegante. Ele sabia que os guardas acabariam por encontrá-lo. Talvez até Endon lhes dissesse onde procurar. E, quando o achassem, seria morto. Disso ele não tinha nenhuma dúvida.
Amaldiçoou-se por sua impaciência, por assustar Endon com aquela conversa desvairada enquanto ele ainda estava confuso, cansado e sofrendo, por jogar o jogo de Prandine.
Ouviu-se um som agudo e chacoalhante não muito longe. Jarred espiou com cuidado para fora e viu a carroça de lixo mover-se ao lado do palácio na direção dos portões. O velho homem encontrava-se sentado na frente e impelia o cavalo cansado com tristes sacudidelas dos arreios.
O coração de Jarred deu um salto. Talvez aquela fosse a chance de escapar do palácio, afinal! Mas como poderia fugir e deixar Endon sozinho e desprotegido? Agora tinha certeza de que Prandine era uma criatura maligna.
"Se eu ficar, morrerei. E, então, nunca poderei ajudar Endon. Nunca. "
O pensamento o fez cair em si. Procurou lápis e papel e rabiscou um bilhete:
“ seel preel ciel sarel elde elm elim elcha meel e eelu viel rei “



Jarred escondeu o bilhete em um buraco do tronco da árvore e imaginou se o amigo o encontraria algum dia. Talvez Endon, acreditando nas acusações de Prandine, nunca voltasse àquele lugar.
Mas ele fizera o possível, e a carroça se aproximava. Em breve, passaria sob a árvore. Aquela seria sua chance.
Como fizera tantas vezes antes, subiu pelo oco da árvore e saiu pelo buraco que se abria justamente sobre o ramo mais baixo.
Dali, ele podia ver que havia guardas por toda parte, mas ele estava acostumado a se esconder. Deitou-se de bruços e grudou-se ao galho, tomando cuidado para não fazê-lo balançar.
Agora, a carroça de lixo passava por baixo dele. Jarred aguardou o momento exato e deixou-se cair com leveza na parte posterior, enterrando-se rapidamente na massa grudenta de restos até sentir que estava totalmente coberto.
Crostas de pão, cascas de maçã, queijo bolorento, ossos roídos e bolos comidos pela metade apertavam-se contra seu rosto. O cheiro quase o fez sufocar. Fechou os olhos com força e prendeu a respiração.
Podia ouvir o som das patas do cavalo e os gritos distantes dos guardas que o procuravam. E, por fim, pôde ouvir o som do primeiro par de portões de madeira se abrindo, com estrépito.
Seu coração batia forte enquanto o cavalo prosseguia. Então, ele ouviu os portões sendo fechados atrás da carroça e o segundo par se abrindo. Breve, muito breve...
A carroça continuava seu caminho, balançando e sacolejando. O segundo par de portões se fechou com um rangido. E, então, Jarred soube que, pela primeira vez na vida, ele se encontrava fora dos muros do palácio. A carroça agora descia a colina. Logo, ele estaria na maravilhosa cidade que vira tantas vezes de sua janela.
Ele teve de olhar. A curiosidade era grande demais. Devagar, ele retorceu o corpo até que os olhos e o nariz estivessem acima do monte de lixo.
De onde estava, via o palácio. Podia ver o muro e os portões. Conseguia enxergar o buraco no alto da árvore. Mas Jarred piscou, atordoado. Por que não conseguia ver as pequenas torres do palácio ou o topo das outras árvores nos jardins? Acima dos muros se via somente uma névoa brilhante.
Ele imaginou que seus olhos lhe pregavam uma peça e esfregou-os, porém a névoa não desapareceu.
Confuso, ele virou a cabeça a fim de olhar na direção da cidade. E o choque, o desalento e o horror foram tais que ele quase deixou escapar um grito. Em vez de beleza, ele viu ruínas.
Os edifícios maravilhosos estavam se desintegrando. As ruas estavam cheias de buracos. Os campos de trigo estavam secos e repletos de ervas daninhas, as árvores, subdesenvolvidas e retorcidas. Ao pé da colina, encontrava-se um grupo de pessoas magras e maltrapilhas, carregando cestos e sacolas.
Jarred começou a lutar para se livrar do lixo. Confuso, não mais se importava se o condutor da carroça podia ouvi-lo ou não, mas o velho não olhou para trás. Jarred percebeu que ele era surdo. Mudo também, sem dúvida, visto que não proferira uma única palavra, nem para o cavalo.
Jarred saltou do fundo da carroça e rolou para dentro de uma vala, ao lado da estrada. Permaneceu deitado e observou a carroça avançar até o pé da colina e parar. O velho homem fitou algum ponto distante, enquanto as pessoas maltrapilhas se aglomeravam sobre a pilha de lixo. Jarred as viu brigando pelos restos das mesas do palácio, colocando ossos velhos, crostas e cascas de legumes nos cestos e em suas bocas.
Elas estavam famintas.
Desolado, Jarred olhou para o palácio. Dali, conseguia ver apenas as pontas das pequenas torres que se erguiam acima da névoa difusa.
Talvez Endon estivesse olhando pela janela nesse momento, observando a cidade. Ele estaria vendo paz, beleza e fartura. Ele estaria vendo uma mentira. Uma mentira criada por quadros em uma tela nebulosa.
Por quantos anos teria essa mágica maligna cegado os olhos dos reis e rainhas de Deltora? E quem a criara?
Palavras do livro vieram à mente de Jarred. Ele estremeceu, temeroso.
... O Inimigo é inteligente, astuto e, no que se referia à sua ira e inveja, mil anos eram o mesmo que um piscar de olhos...
Voldemort estava atento.

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