Capítulo I



“Oferecem-se acomodações e sustento, em moradia senhorial, a família de dois ou três membros no máximo, respeitável, de boa educação, que possa encarregar-se da instrução de três crianças. O solar é admiravelmente situado numa das mais belas regiões florestais da Áustria.


Cartas à posta-restante para N. –M., Düfelden.


Exigem-se as melhores referências.”


 


O professor Granger abaixou um pouco o jornal, que aproximara de seus olhos devido a miopia. No semblante fino, fanado pelos anos, atribulações e sofrimentos físicos, os olhos claros se tornaram pensativos, de uma doçura um pouco melancólica, que bem revelava a alma de Adrian Granger, o seu temperamento amável, afetuoso, calmo, mas um tanto fraco, facilmente abalável pelas provações da vida. Alma encantadora e mística, apaixonada pela reminiscência e por lendas antigas, capaz de se sacrificar pelo dever sem a menor queixa, mas muito pouco inclinada a reagir e lutar.


Quando adolescente, freqüentava a Universidade de Viena, onde, apesar de muito querido, foi atormentado pelos colegas, que escarneciam de sua brandura e modos pacíficos, sem entretanto refugirem[1] à sedução dessa criatura sorridente e afável, generosa até a prodigalidade, que sabia acalmar com um simples olhar os mais ferozes contendores e não conhecia meio de recusar auxílio, moral ou material, a quem lhe pedisse.


Quando homem, conquistara o coração de Jane Campbell, filha de um de seus professores. O contraste de temperamentos estabelecera a simpatia entre esses dois serem bem diferentes. Jane, natureza decidida, dotada de grande energia, conseguiu salvar da ruína a fortuna dos Granger; a generosidade por vezes intempestiva do professor foi um pouco reprimida pela inteligência ponderada e a delicada bondade de Jane. Formaram um lar feliz, mas um dia repentina enfermidade levou-lhe a companheira idolatrada, deixando-o com dois filhos, dos quais o mais velho tinha dez anos.


Pai carinhoso e devotado, não quis separar-se das crianças e deu-lhes uma governanta, que cuidava ao mesmo tempo de administrar a casa e da educação dos pequenos. O meigo professor, entretanto, logo viu a sua fortuna sofrer vários golpes, devidos primeiramente à governanta, pouco escrupulosa, e em seguida aos falsos amigos, parasitas sem brio, cujos artifícios não percebeu. Esses golpes foram tantos e tão profundos que um dia Adrian Granger, fatigado, constrangido a abandonar a cátedra, verificou com estupefação e terror que os seus recursos eram apenas suficientes para viver muito modestamente com os dois filhos.


Foi um rude golpe para aquele homem já fisicamente abatido. Caiu doente, sendo admiravelmente tratado pela filha, Hermione, “o meu tesouro”, como ele a chamava. Assim que entrou em convalescença, deixou a confortável casa que ocupara até então, indo instalar-se num pequeno apartamento. A saúde precária só lhe permitia dar algumas lições, cuja renda vinha auxiliar a manutenção do pequeno lar, muito bem administrado por Hermione, que parecia ter herdado as qualidades de sua mãe.


Viviam assim os três, muito dignos na pobreza, visitados apenas por alguns amigos dos maus dias. A mais dolorosa prova era a enfermidade de Alexis, irmão de Hermione, que uma paralisia das pernas reduzia quase à imobilidade. O médico havia declarado que o clima de Viena lhe parecia desfavorável para o doente e que o ar puro e sadio do campo, principalmente o das florestas, conseguiria, senão a cura, pelo menos notável melhora. Desde então o professor e a filha procuravam meios para tentar esse tratamento com um mínimo de despesas.


Teria encontrado Adrian Granger, inesperadamente, a solução desse problema na última página do jornal?


Voltando-se para a porta deixada entreaberta, chamou:


— Hermione!


Ouviu-se um ruído de cadeira que se recua; alta e esbelta apareceu a jovem à entrada do quarto contíguo.


No seu simples vestido caseiro, Hermione Jane Granger apresentava figura notavelmente elegante. Sem possuir absoluta regularidade de traços, era, entretanto, mais do que bela, devido ao encanto profundo de sua fisionomia altiva e meiga, e ao contraste dos cabelos achocolatados de ondas brilhantes com os olhos do mais puro mel, em que se refletia a sua alma ardente e pura.


— O que houve papai? — perguntou ela com interesse.


— Olhe, leia isto, minha filha.


A moça pegou o jornal e leu no lugar indicado; depois fitou o pai com ar interrogador.


— Pensei que isso, talvez, pudesse nos convir, Hermione.


— É verdade, uma região florestal seria um lugar perfeito. Mas precisamos de informações mais seguras.


— Escreverei hoje mesmo. Alexis parece muito fatigado; desejo sair o mais depressa possível deste pequeno apartamento, onde ele não tem o ar puro necessário.


Uma ruga de inquietação se formou na fronte alvíssima de Hermione.


— Sim, papai, ele perde o viço neste lugar. E certamente também para o senhor o campo fará imenso bem.


— É o que penso. Você mesma, minha filha, também sentirá os seus bons efeitos. Você se cansa, se abate, para cuidar de seu irmão e de mim, este pobre ser inútil!


Hermione inclinou-se para ele e, numa carícia, com os braços rodeou-lhe o pescoço; seus lábios beijaram a fronte sulcada de rugas.


— Papaizinho querido, se o senhor soubesse como são doces esses deveres, como sua filha se sente feliz em cercá-lo de cuidados e carinhos! E como desejaria fazer mais ainda!


O olhar de Adrian Granger pousou no lindo rosto inclinado para ele.


— Sei que você é a melhor das filhas. Sei que ama o seu pobre pai, sempre fraco e doente. Mas eu desejaria tanto vê-la sossegada e feliz, livre dessas ocupações vulgares, para que pudesse desenvolver a bela inteligência com que Deus a dotou...


Um alegre sorriso entreabriu os lábios de Hermione.


— E eu, querido pai, só peço uma dádiva: continuar a servir ao senhor e Alexis, ser amada por ambos e conservar a coragem e atividade com que Deus me gratificou. Com isso e enquanto possuir a fé cristã, a sua Hermione nunca será infeliz. Bom, vou ver a minha sopa que está derramando no fogo!


Correu para a cozinha. O professor levantou-se, murmurando com enternecimento:


— Sempre alegre!... e tão corajosa! Ah, meu Deus, como foste bom em me dar Hermione!


Dirigiu-se para o cômodo vizinho, a sala de jantar que servia também de salão. Num divã, junto da janela, estava estendido um rapazinho de uns quinze anos. À entrada do professor, Alexis voltou para ele os olhos claros, muito grandes para o rosto emagrecido, que sobressaíam na palidez mate de sua pele, num semblante juvenil singularmente atraente, pela beleza melancólica e mais ainda pela expressão de sofrimento resignado.


— Sente-se melhor, meu querido filho? — perguntou o professor, acariciando-lhe a espessa cabeleira achocolatada e anelada.


— Um pouco melhor, papai.


— Eis uma coisa que talvez se possa arranjar para nós, Alexis. O que você diz? — acrescentou Adrian Granger depois que o filho leu o anúncio.


— Quem sabe, papai... O senhor vai escrever?


— Agora mesmo.


Após haver redigido uma carta para o endereço indicado, voltou para junto do filho. Alexis folheava um maço de velhos pergaminhos e, ao vê-lo aproximar-se, disse pensativo:


— É extraordinário que o senhor nunca tenha procurado saber as origens de nossa família. Parece-me, entretanto, que poderia encontrar na Polônia alguns indícios.


— Comecei a fazer algumas pesquisas, mas foi justamente na época em que sua mãe morreu e, desanimado, deixei tudo lá. Sei somente que não existe mais nenhum Granger na Polônia russa e que esse nome está mesmo completamente esquecido. Sem dúvida os nossos ancestrais vieram já há alguns séculos estabelecer-se na Áustria. Entretanto, é na verdade singular que não tenhamos nenhum documento da nossa família. Meu pai dizia sempre que éramos de estirpe nobre. Mas, enfim, isso de bem pouco nos serviria!


— Sim, papai. Contudo eu gostaria de saber quem foram os nossos avós e conhecer a sua história. Sinto grande prazer em folhear documentos antigos, como estes, e naturalmente os de nossa família devem interessar-me ainda mais do que os outros.


— Ah! Você é bem meu filho! — disse alegremente o professor tomando a mão de Alexis — Na sua idade eu tinha os mesmos gostos; amava como você os estudos e principalmente o do passado. Meus colegas me apelidaram de “Pai Pergaminho”. De fato, nada me fazia mais feliz do que folhear papéis veneráveis, testemunhas desse passado que me atraía invencivelmente; que me atrai sempre, devo confessá-lo. Esquece-se um pouco do presente, nem sempre muito alegre.


— É verdade, nem sempre... — murmurou com tristeza Alexis, levantando melancolicamente os olhos para o céu.


 


*****


 


Alguns dias mais tarde o professor recebia a resposta de N. –M., a qual, numa letra feminina, especificava as condições requeridas: estar apto para instruir crianças de onze a treze anos; apresentar as melhores referências e ter hábitos modestos e pacíficos. Oferecia um apartamento de quatro peças grandes, confortáveis, alimentação simples e sadia, fogo à vontade para aquecimento dos aposentos e o uso de um parque para passeios. Em troca pedia quatro horas de ensino e a correção das lições.


 


“Se as condições lhe convêm”, acrescentava, “procure informar-nos a respeito da religião a que pertence e indicar as pessoas a quem possamos nos dirigir para as referências. Depois disso, fá-lo-emos conhecedor da nossa moradia.”


 


— Quanto mistério, não acha, papai? — disse Hermione quando tomou conhecimento da carta, escrita em estilo elegante, mas demasiadamente conciso. — Sempre essas iniciais...


— A missivista não quer, sem dúvida, sujeitar o seu nome à curiosidade de qualquer um. É muito natural. Vê-se que parece ser exigente quanto à questão de honorabilidade e isso é um bom sinal.


— Por esse lado nada temos a temer. Quanto às outras condições também podemos preencher sem dificuldades. O senhor ou eu poderemos dar as lições e ainda restará muito tempo livre. O senhor, meu pai, poderá trabalhar na sua História da Polônia e eu poderei ocupar-me com o nosso lar. A situação será agradável, certamente, mas é preciso obter mais esclarecimentos.


O professor respondeu à correspondente desconhecida, dando-lhe os pormenores pedidos e indicando pessoas de honorabilidade incontestada a quem ela poderia dirigir-se para as referências.


Quinze dias se passaram sem nenhuma resposta, quando uma manhã o carteiro entregou a Hermione um envelope com um brasão e uma coroa de conde. O sobrescrito fora traçado pela mão da mesma pessoa que enviara a carta anterior.


— Eis a resposta, papai — disse a moça entrando na sala de jantar, onde o professor explicava a Alexis um texto grego.


Adrian Granger abriu pressuroso o envelope e leu alto:


 


“Senhor Professor,


As referências me satisfizeram inteiramente e o senhor me parece preencher todas as condições exigidas por mim para aqueles que virão habitar sob meu teto. Se o senhor está decidido, participe-me. Poderei recebê-lo em Runsdorf, nossa residência. O senhor gozará de inteira liberdade foras das horas de lição.


Espero sua resposta definitiva.


Receba, senhor professor, etc.


Narcissa


Condessa de Malfoy


Castelo de Runsdorf, Düfelden”.


 


— Oh, oh! É da alta aristocracia! — disse o professor — Os Malfoy são de velha e nobre árvore, de estirpe quase principesca. E, então, que dizem meus filhos?


Hermione replicou:


— Digo, papai, que por nossa vez devemos tomar informações. É preciso saber um pouco o que valem esses Malfoy, por mais nobres que sejam.


— Você tem razão, minha prudente Hermione. Mas a quem nos dirigir?


— O solar de Nunsthel, do qual o seu amigo Arthur Weasley é administrador, não se acha nos arredores de Düfelden?


O professor bateu na testa.


— Muito bem! Já encontramos o que necessitávamos! Vou escrever-lhe pedindo resposta rápida, a fim de não fazer esperar essa nobre senhora.


Alguns dias mais tarde chegava uma carta do administrador ou, mais exatamente, de seu filho, que lhe servia de secretário.


 


“Papai, num acidente de carro, fraturou o braço”, escrevia Ronald Weasley. “De outro modo, senhor professor, ele não me teria cedido o prazer de responder à sua carta, que muito agradavelmente o surpreendeu, fazendo-o entrever a possibilidade de o ter mais perto dele, pois o domínio de Nunsthel confina com o de Runsdorf.


Como o senhor conjeturou, estamos de fato em condições para informá-lo sobre os Malfoy.


Runsdorf é uma antiqüíssima residência, muito ampla, de aspecto severo, admiravelmente situada numa encosta a dez quilômetros de Düfelden. Ao passo que nós aqui, em Nunsthel, gelamos durante o inverno, Runsdorf goza de temperatura mais suave, graças à posição privilegiada. Além disso, está cercada pela floresta, o que lhe propicia um ar tonificante, certamente muito adequado para o seu querido doente.


O parque é muito grande; há um século os domínios dos condes de Malfoy ocupavam grande parte da região. Pouco a pouco, porém, foram perdendo o seu patrimônio, absorvido pelas prodigalidades dos senhores de Runsdorf, que levavam faustosa existência. Hoje, resta aos descendentes apenas a moradia senhorial e algumas terras sem importância.


Entretanto, os Malfoy parecem ainda possuir grande riqueza. Levam vida de grandes senhores e não perderam um pingo do imenso orgulho de casta. Sua reputação, porém, é irrepreensível e julgo que o senhor pode, sem o menor temor, aceitar a oferta que lhe fizeram.


Pessoalmente, não conheço a condessa, porque o senhor deve calcular que um plebeu, embora seja filho de funcionário particularmente estimado por Sua Alteza o Arquiduque Dumbledore, não tem a honra de ser admitido em Runsdorf. A arrogância dessa família será, talvez, o único ponto difícil para o senhor. Mas, conservando altivamente as distâncias, penso que não terá nenhum aborrecimento a temer, pois os Malfoy são pessoas corteses e de boa educação.


Dizem, aliás, que a condessa é muito bondosa, sob a sua aparência altiva. Há uma jovem de dezoito anos, um rapazinho e duas meninas de uns doze anos. Mas não esqueçamos o mais importante: Sua Senhoria o Conde Draco Malfoy, o filho mais velho da condessa, atual senhor de Runsdorf e outras terras, para empregar a antiga fórmula.


Repito-o: é uma família respeitável, que vive muito retirada, exceto quanto a algumas recepções da aristocracia e reuniões faustosíssimas[2] que de vez em quando se realizam em Runsdorf. Acredito que ficará muito bem nessa velha residência, senhor professor. Diga-nos, então, se decidirá e, uma vez em Runsdorf, não se esqueça dos seus amigos de Nunsthel, que esperarão impacientes a sua visita.


Permita-me apresentar minhas respeitosas homenagens à Srta. Hermione, que conheci menina em Viena, agora que sou um rapaz turbulento e desajeitado? Talvez ela se recorde de mim.”


 


— Oh! Muito bem! — disse Hermione rindo — Um ruivinho, magrelo e desengonçado, mas muito bom rapaz.


— Ele tem por quem puxar. Seu pai é um coração de ouro. E, com isso, que bela inteligência, que distinção de maneiras! Afinal, que decidimos, meus filhos?


— Parece-me que nessa carta nada é de natureza a nos fazer hesitar — respondeu Hermione — Como diz o Sr. Weasley, apenas teremos que não melindrar o orgulho dos Malfoy, colocando-nos em nosso lugar e assim também salvaguardando a nossa dignidade. Que diz, Al?


— Sou de sua opinião, Mione. Nunsthel será para nós uma agradável vizinhança e o senhor, papai, ficará contente por encontrar novamente seu amigo.


— Vamos, a sorte está lançada! — declarou o professor com um suspiro de alívio — Vou escrever à condessa e, dentro de quinze dias, estaremos a caminho de Runsdorf.


 




[1] Refugir – (v. i.) Fugir novamente; retroceder; refluir; (v. t. i.) procurar escapar; eximir-se; furtar-se; (v. t. d.) evitar; desviar-se de. Conjuga-se como fugir.


[2] Vem de Fausto que, nesse caso indica Riqueza ostensiva, luxo, pompa, luzimento.

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