CAPÍTULO DEZ



CAPÍTULO DEZ


 


A primeira coisa que Gina fez foi informar o parente mais próximo sobre a morte de Lobar. Depois de fazer isso, passou alguns minutos pensando sobre o conceito de família. Eles nem se importaram. O rosto da mulher na tela do tele-link permanecera impassível. Era como se Gina estivesse lhe comunicando a morte de um estranho, e não do filho que ela colocara no mundo e criara. Agradeceu pelas informações, com toda a educação, não fez perguntas e concordou que os restos mortais do filho fossem despachados para casa, assim que liberados.


Eles lhe dariam, a mãe declarara, um enterro cristão e decente.


Gina imaginou que ela faria a mesma coisa pelo cão da casa.


O que será que calcificara os seus sentimentos a esse ponto? Perguntou-se Gina. Se é que havia algum sentimento, para começar. O que fazia uma mãe demonstrar tanta dor, como a mãe de Alice fizera, e outra receber a notícia da morte do filho sem derramar uma lágrima sequer?


O que será que sua própria mãe sentira quando ela nasceu? Será que ela ficara feliz ou simplesmente sentira alívio ao ver que a intrusa que morara em seu corpo por nove meses finalmente fora despejada dali?


Gina não tinha lembrança alguma de sua mãe, nem mesmo a recordação difusa de uma presença feminina em sua infância. Lembrava-se apenas do pai, do homem que a arrastara de um lugar para outro e a mantinha trancada em quartos sujos. O homem que a estuprara. E as lembranças dele, depois de tantos anos sendo negadas, eram agora muito mais claras.


Talvez o destino de algumas pessoas fosse o de viverem sem família, pensou. Ou simplesmente conseguir sobreviver a ela. Por se ver tomada por pensamentos sombrios, foi com sentimentos conflitantes que Gina ligou para a Dra. Minerva, a fim de marcar uma consulta. Depois de intimidar sua secretária, obrigando-a a encaixá-la em um dos horários do dia seguinte, pegou a bolsa, chamou Hermione pelo comunicador e saiu.


Não deixou de reparar a expressão de cautela no rosto da auxiliar ao parar o carro na porta do prédio de Selina, mas ignorou o fato. Estava começando a chover. Era uma garoa estranha e fria que caía de um céu que subitamente se tornara escuro e pesado. O vento soprava com força, assobiando ao longo dos desfiladeiros representados pelas ruas, e parecia morder os pedaços de pele que encontrava descobertos.


Do outro lado da calçada, um homem rumava para leste, encurvado sob um guarda-chuva preto. Subitamente se virou e entrou em uma loja onde se via uma caveira sorridente e as palavras “O Arcano” pintadas na porta.


- Um dia perfeito para fazermos uma visita à empregadinha de Satanás. - Hermione fez uma expressão, obviamente falsa, de quem estava se divertindo e, disfarçando, acariciou um galhinho de erva-de-são-joão que enfiara no bolso. Era o conselho que sua mãe lhe dera para protegê-la de magia negra. A intrépida Hermione descobrira que acreditava em bruxas, afinal.


Passaram pela mesma rotina da segurança, só que dessa vez a espera foi maior e mais desagradável, pois a chuva começou a apertar. Terríveis raios em forma de forcado golpeavam o céu e pareciam ter dentes vermelhos nas pontas. Gina olhou para cima, e então se virou para a assistente. Seu sorriso foi duro e frio quando ela confirmou:


- É... um dia perfeito!


Ao entrar, deixaram um rastro molhado no piso da portaria, depois no elevador e no saguão do apartamento de Selina Cross. Dessa vez, foi Alban quem as recebeu.


- Tenente Weasley, - disse e exibiu a mão, maravilhosamente esculpida e enfeitada por um único anel de prata ricamente trabalhado - sou Alban, companheiro de Selina. Infelizmente, ela está meditando. Não me sinto à vontade para perturbá-la.


- Deixe-a meditar. Você serve, por ora.


- Bem, então, entrem e sentem-se, por favor. - Seus modos eram sofisticados, levemente formais, e não combinavam com a roupa colante de couro preto que usava, e que deixava seu torso totalmente à mostra. - Querem beber alguma coisa? Um pouco de chá, talvez, para afastar o frio? Aconteceu uma mudança brusca e interessante no tempo.


- Não, não queremos nada. - Gina achou que era preferível uma dose de Zeus a qualquer coisa preparada naquele lugar.


O ar sombrio do ambiente combinava com o resto, decidiu Gina. A luz indefinida, o chiado da chuva e o chacoalhar das janelas pelo vento. Então ali estava Alban, com seu lindo rosto de poeta e corpo de deus guerreiro. Um perfeito anjo caído.


- Gostaria de saber onde você se encontrava na noite passada, entre três e cinco horas da manhã.


- Três e cinco horas da manhã? - Ele piscou, como se estivesse com dificuldades para traduzir as palavras. - Na noite passada... ou na madrugada de hoje, melhor dizendo. Ora, eu estava aqui. Acho que voltamos do clube um pouco depois das duas, e ainda não saímos de casa hoje.


- Nós?


- Selina e eu. Tivemos um encontro de bruxos, que acabou por volta de três da manhã. Abreviamos um pouco o fim da cerimônia, pois Selina não estava se sentindo bem. Normalmente continuamos recepcionando os convidados depois do evento, ou então seguimos em frente com um grupo menor, em rituais privados.


- Mas não fizeram isso na noite passada.


- Não. Como disse, Selina não estava se sentindo bem e fomos para a cama cedo. Cedo para nós. - explicou ele com um sorriso. - Somos criaturas noturnas.


- Quem participou do encontro de bruxos?


O sorriso de Alban se desfez e ele assumiu uma expressão séria, quase calculada, argumentando:


- Ora, tenente, religião é um assunto privado. Mesmo nos dias de hoje, gente como nós é perseguida. Nossos membros apreciam a discrição.


- Mas um dos seus membros foi assassinado sem a mínima discrição, ontem à noite.


- Não! - Ele se levantou lentamente, mantendo a mão apoiada no braço da poltrona, como se tentasse manter o equilíbrio. - Sabia que alguma coisa horrível devia ter acontecido. Selina parecia tão perturbada... - Respirou fundo, como se para preparar o corpo e a mente. - Quem foi?...


- Lobar. - Foi Selina quem disse o nome da vítima, ao mesmo tempo em que entrava por uma passagem em arco, muito estreita. Estava terrivelmente pálida e os olhos de gata pareciam sombrios. Usava o cabelo preto solto e um decote profundo que exibia boa porção do busto generoso. - Foi Lobar. - repetiu. - Acabei de ver na névoa. Alban!... - Pressionou a mão sobre a cabeça, balançando o corpo para a frente.


- Tremendo show! - murmurou Gina ao ver Alban correr através da sala para amparar Selina e abraçá-la com carinho. - Você viu na névoa? - Gina jogou a cabeça para o lado. - Isso é muito útil... talvez eu também devesse dar uma olhada nessa névoa, para ver se consigo enxergar quem cortou a garganta do rapaz.


- Não vai aparecer nada na névoa para você, a não ser a sua ignorância. - Apoiada em Alban, Selina caminhou muito devagar até o sofá. Sentou-se, fazendo o manto farfalhar, e levantou a mão para seu companheiro, dizendo: - Estou bem...


- Meu amor. - Ele tomou-lhe a mão, levando-a aos lábios. - Vou lhe trazer um calmante.


- Sim, sim, obrigada.


Ela abaixou a cabeça e colocou-a entre as mãos quando ele se retirou sem fazer barulho. Ah, como era difícil segurar o sorriso de gata e não ver as imagens do ritual, tão gloriosas que continuavam a aparecer, repassadas em sua cabeça junto com as lembranças do sacrifício e do sangue.


Só ela e Alban saberiam avaliar a excitação e o poder proporcionados pelo momento em que Lobar foi oferecido ao Mestre.


Apenas ela conseguiria compreender por inteiro a emoção de ter oferecido aquele sacrifício com as próprias mãos. Seu corpo estremeceu com um prazer denso, provocado pela lembrança. O modo como os olhos de Lobar haviam se encontrado com os dela, a forma como o cabo do athame se moldara, frio e firme, à sua mão. E então o sangue quente que jorrara como uma fonte, quando ela o usou.


Imaginando o choque e a fúria que Gina devia ter sentido ao encontrar Lobar tão cuidadosamente posicionado junto à entrada de seu próprio santuário, Selina quase soltou um riso abafado. Pressionou os dedos contra os lábios, como se estivesse sufocando um soluço.


Alban era um gênio, pensou, pois só mesmo um verdadeiro gênio poderia ter criado uma ironia tão maravilhosa.


- As visões podem ser uma bênção ou uma maldição. - continuou, com a voz fraca, como se estivesse exausta. - Prefiro pensar nelas como bênçãos, embora me causem tamanha dor. A perda de Lobar é terrível!


- Que grande atriz você é, hein?...


A cabeça de Selina se levantou de repente e seus olhos brilharam mais de ódio do que de dor.


- Não deboche dos meus sentimentos, Weasley. Você acha que poderes como os meus fazem com que eu não sinta as coisas? Pois eu as sinto, as experimento. Eu sangro! - acrescentou e, com um movimento rápido como um raio, enfiou uma das unhas compridas e letais na palma da própria mão. Sangue surgiu de imediato, escuro e vermelho.


- Não era preciso fazer uma demonstração. - disse Gina, com toda a calma. - Eu sei que você sangra. Lobar também, com certeza!...


- Sua garganta. Sim, foi isso mesmo o que eu vi na névoa. - Esticou a mão na direção de Alban, que chegava de volta trazendo uma vasilha rasa, de prata. - Mas eu vi mais, algo além disso... - E pegou a tigela, levando-a lentamente até os lábios. - Mutilação... Ah, como eles nos desprezam!


- Eles?


- Os que fazem magia branca... os fracos.


Pegando um pedaço de pano preto em seu bolso, entregou-o a Alban. Ele levantou a mão ferida de Selina e levou-a até seus lábios. Depois, com invejável eficiência, amarrou-lhe o pano em volta da palma, fazendo o sangue estancar. Selina sequer se dignou a olhar para ele.


- Eles... os que vêem nosso Mestre com ódio - continuou - e praticam a magia dos tolos.


- Então, na sua opinião, trata-se de um assassinato com razões religiosas?


- Claro! Não tenho dúvidas a respeito disso. - Acabou de tomar o líquido calmante e colocou a vasilha de lado. - Você tem, tenente?


- Tenho muitas dúvidas sim; enfim, sou obrigada a investigar tudo do modo antiquado. Não posso ligar para o diabo, a fim de pedir conselhos. Lobar esteve aqui na noite passada?


- Sim, até pouco antes das três. Logo a seguir, ele ia receber a marca... - Selina suspirou, passando as unhas pintadas de vermelho para cima e para baixo no braço de Alban. - Um de seus últimos atos na vida foi unir seu corpo com o meu.


- Então você fez sexo com ele ontem à noite...


- Sim. Sexo é um fator importante em nossos rituais. Eu o escolhi, ontem à noite. - Ela tornou a estremecer ao lembrar que a escolha fora dela, e a façanha de matá-lo também. - Alguma coisa deveria ter me alertado do que estava para acontecer.


- Um pássaro, talvez. Um pássaro grande e preto. - Levantando uma sobrancelha, Gina analisou o rosto de Alban. - Quer dizer que não há problema algum para você, Alban, ficar assistindo enquanto outros homens fazem sexo com a sua... companheira? Quase todos os homens são um pouco territoriais e possessivos. E talvez escondam ressentimentos prejudiciais.


- Não acreditamos em monogamia. Achamos isso um conceito limitado e tolo. Sexo é prazer, e não colocamos limites em nossos prazeres. Sexo consensual em um lar particular ou em um clube licenciado para isso não é contra as suas leis, tenente. - disse e sorriu. - Estou certo de que você mesma o pratica.


- E você gosta de ficar olhando, Alban?


- Isso é um convite? - Levantou as sobrancelhas. Ao ouvir o risinho que Selina não conseguiu segurar, chegou mais perto dela e pegou sua mão. - Viu só?... Você já está se sentindo melhor.


- Seu pesar passou rápido, não foi, Selina?


- Tem que ser assim! - concordou ela, balançando a cabeça para Gina. - A vida é para ser vivida. Vá procurar quem fez isso e talvez o encontre. A punição do nosso Mestre, porém, é maior e mais terrível do que qualquer castigo que você possa inventar.


- Seu Mestre não faz parte dos meus interesses. Assassinato sim. Já que vocês eram tão ligados ao falecido, talvez me deixem dar uma olhada pelo apartamento.


- Consiga um mandado e será bem-vinda. - O calmante tornara seus olhos um pouco nublados, mas sua voz estava bem forte quando ela se levantou. - Você é mais tola do que imaginei a princípio, se acredita que eu possa ter alguma coisa a ver com isto. Lobar era um dos nossos. Era leal. É contra a nossa lei fazer mal a um membro leal da seita.


- Ele conversou comigo ontem à noite, em uma cabine privativa do clube. A névoa lhe mostrou as coisas que ele me contou, Selina?


- Você vai ter que procurar outras águas para pescar, Weasley. - Seus olhos mudaram e se tornaram ainda mais sombrios. - Estou cansada, Alban. Acompanhe-as até a porta. - Saiu como se deslizasse, passando novamente sob a porta em arco.


- Não há nada que possamos fazer para ajudá-la, tenente. Selina precisa repousar agora. - Olhou para o portal por onde ela saíra, com preocupação nos olhos. - Tenho que ir cuidar dela.


- Ela o treinou muito bem, não foi? - Com um leve desdém na voz, Gina se levantou, perguntando: - Você também sabe fazer truques, Alban?


Com ar entristecido, ele balançou a cabeça, dizendo:


- Minha devoção a Selina é muito pessoal. Ela tem poderes, e os poderosos têm necessidades. Eu as satisfaço, e sou grato por isso. - Caminhando de volta até o saguão, abriu a porta. - Gostaríamos de pegar o corpo de Lobar assim que ele for liberado. Realizamos uma cerimônia especial para nossos mortos.


- A família dele também, e ela vem antes de vocês.


 


- Quais os dados que temos a respeito desse tal de Alban? - quis saber Gina no momento em que elas colocaram o pé na rua, sob a chuva que se tornara muito forte. - Praticamente nada. - Hermione entrou no carro e na mesma hora começou a se sentir mais à vontade. Sabia que era tolice alimentar a esperança de jamais precisar voltar àquele prédio, mas mesmo assim torcia por isso. - Ele não tem antecedentes e quase nenhum passado. Talvez tenha outro nome de nascença além desse, mas não consegui achar nada.


- Mas há mais. Sempre há mais...


Nem sempre, pensou Gina, tamborilando no volante com os dedos impacientes. Uma vez ela investigara outra figura suspeita e também não encontrara quase nada a respeito de seu passado. E o suspeito também tinha um nome forte e imponente. Harry Potter.


- Torne a procurar. - ordenou a Hermione, saindo com o carro. - Engraçado, não é? - continuou, enquanto Hermione começava a pesquisar no computador do carro. - Quase não há movimento aqui neste quarteirão, mas quando viramos a esquina... - Ao fazer isso, foi atingida por uma cacofonia ruidosa e tranqüilizadora dos muitos veículos que se movimentavam lentamente pela chuva. Pessoas davam corridas rápidas pelas calçadas, fugindo da chuva, seguiam pelas passarelas rolantes e se amontoavam para se proteger sob marquises. Dois vendedores ambulantes atuavam em esquinas opostas, encurvados sob toldos precários, e trocavam olhares insatisfeitos um com o outro.


- As pessoas possuem instintos dos quais nem elas mesmas têm noção. - Ainda um pouco desconfortável, Hermione olhou para trás, como se esperasse que alguma coisa não exatamente humana pudesse estar se arrastando atrás delas. - Aquele edifício tem uma energia muito pesada.


- É só um monte de tijolos e vidros, Hermione.


- Sim, mas os lugares costumam assumir a personalidade das pessoas que moram neles.


Um carro virou a esquina na frente delas, buzinando com estardalhaço para o mar de pedestres que atravessavam a rua, garantidos pelo sinal de “siga”. Insultos verbais e gestos obscenos foram trocados entre o motorista e os pedestres, e alguém cuspiu no chão.


Vapores subiam das grades de ventilação do metrô, formando nuvens sujas. A névoa se juntava à fumaça fedorenta que vinha de uma carroça de churrasquinhos, obviamente ilegal, que tentava abrir caminho pela massa compacta de gente molhada. Acima do nível da rua, uma passarela aérea estremeceu e parou de deslizar de repente, provocando uma enxurrada de xingamentos e reclamações dos usuários.


Mais ao alto, um dirigível para turistas transmitia, a todo o volume, uma gravação onde eram exaltadas as vantagens e maravilhas de se viver em um ambiente urbano.


Hermione respirou fundo como se quisesse se limpar por dentro, satisfeita por se ver de volta às ruas da Nova York arrogante e cheia de gente que ela compreendia tão bem.


- Veja a casa de Harry, por exemplo. - continuou ela, com sua teoria sobre o astral dos prédios. - É grande, elegante e intimidadora, mas também sexy e misteriosa. - Estava ocupada demais lidando com o computador para perceber o olhar divertido que Gina lhe lançou. - Agora, a casa dos meus pais: é toda aberta, acolhedora, mas um pouco confusa.


- E quanto à sua casa, Hermione? Como é que ela é?


- Temporária. - respondeu Hermione, sem pestanejar. – Weasley, esse computador do seu carro não está cooperando muito... não estou conseguindo enviar a requisição dos dados para o... - Parou de falar ao ver Gina se inclinar e dar um soco forte no painel, junto da tela. Uma imagem apareceu tremendo e vacilando, como se estivesse com medo. - Ah, melhorou!... - decidiu Hermione, pedindo dados sobre Alban.


 


Alban... não tem outro nome nem sobrenome. Nasceu em 22 de março de 2020, em Omaha, estado de Nebraska.


 


- Engraçado, - interrompeu Gina - ele não tem cara de quem foi alimentado com leite fresco e mingau de farinha de milho. - O computador continuou, parecendo soluçar:


 


Identidade... número 31666-LRT-99. Pais desconhecidos. Estado civil: solteiro. Não há informações sobre profissão. Não há dados financeiros.


 


- Interessante. Pelo jeito, ele está vivendo como parasita de Selina. Dados criminais, todos os registros.


 


Sem registros criminais.


 


- Grau de instrução?


 


Desconhecido.


 


- Nosso rapaz apagou ou conseguiu alguém que apagasse todas os seus registros. - disse Gina a Hermione. - Você não consegue chegar quase aos quarenta anos sem gerar mais dados do que esses. Ele tem contatos importantes em algum lugar...


Ela ia precisar de Neville, pensou com mau humor. Neville poderia vasculhar os arquivos, mesmo os apagados, para conseguir dados adicionais. Em vez de recorrer a ele, porém, ia ser novamente obrigada a pedir a ajuda de Harry, envolvendo-o ainda mais no caso.


- Droga! - Estacionou o carro na porta da loja Busca Espiritual e franziu a testa ao ver a placa que dizia “Fechada”. - Vá dar uma olhadinha, Hermione. Talvez Isis esteja lá dentro.


- Você tem uma sombrinha ou uma capa?


- Está tentando ser engraçada? - Gina arqueou uma sobrancelha.


Hermione simplesmente soltou um suspiro, abriu a porta do carro e saiu correndo pela calçada. Patinando nas poças d’água e enfrentando a chuva forte, olhou para dentro da loja, pela vitrine. Tremendo um pouco, voltou, balançando a cabeça ensopada, e deu um gemido quando Gina moveu o polegar, indicando o apartamento que ficava sobre a loja. Resignada, Hermione seguiu, com dificuldade, pela lateral do prédio, subiu um lance de escadas com degraus muito barulhentos e alguns momentos depois estava de volta, com a roupa encharcada e pingando.


- Ninguém atende. - disse a Gina. - Não há sistema de segurança, a não ser o galhinho de erva-de-são-joão, aparafusado por uma verruma acima da porta.


- Ela tem um apanhado de verrugas preso na porta? Isso é nojento!


- Eu não disse apanhado de verrugas, e sim aparafusado por verruma! - Apesar do uniforme encharcado e os cabelos pingando, Hermione não agüentou e soltou uma boa gargalhada. - É uma planta... erva-de-são-joão. - Com o mesmo ar divertido, enfiou a mão no bolso e pegou o seu raminho. - Como esse aqui. É para proteção. Ele nos resguarda do mal.


- Você carrega plantas dentro do bolso, policial?


- Agora carrego. - confirmou Hermione, guardando a plantinha. - Quer um pouco?


- Não, obrigada. Prefiro confiar na minha arma para me resguardar do mal.


- Pois eu não tiro esse raminho do bolso.


- Se para você isso funciona... - Gina olhou em volta. - Vamos dar uma entradinha naquele café ali do outro lado da rua. Talvez eles saibam nos informar por que a loja está fechada em plena manhã de um dia de semana.


- Talvez preparem um café decente. - comentou Hermione, e deu dois espirros, um atrás do outro. - Se eu pegar um resfriado forte, vai ser de amargar! Levo semanas para ficar boa quando me resfrio.


- Talvez você precise de uma plantinha que afaste os germes comuns. Pode carregá-la por aí, junto com a outra. - e deixando o assunto morrer, Gina saltou do carro, digitou o código para trancar o veículo, atravessou a rua em uma corrida curta e entrou no Café Olé.


Até que o toque mexicano na decoração do lugar não era mau, decidiu. As cores vibrantes, especialmente o laranja, criavam uma atmosfera ensolarada mesmo em um dia feio como aquele. Talvez ficasse longe, em estilo, da generosa vila que Harry possuía na Costa Oeste do México, mas até que havia um charme peculiar ali, com suas flores de plástico e os touros em papel machê. Uma agitada música mariachi fluía pelos alto-falantes.


Talvez devido à chuva, ou por causa do ambiente, o fato é que havia uma multidão ali dentro. Ao olhar em volta, porém, Gina notou que as pessoas que lotavam o lugar, sentadas às mesas, não estavam devorando pratos de tortilhas. A maioria dos clientes, encurvada sobre pequenas xícaras, consumia algo que cheirava a café de soja requentado.


- O campeonato de beisebol está quase acabando, não está, Hermione?


- Beisebol? - Hermione tornou a espirrar. - Acho que sim... Meu esporte predileto é futebol.


- Hã-hã... acho que há um jogo importante rolando, uma semi-final ou algo assim. E um monte de grana vai mudar de mãos por aqui.


Hermione estava começando a sentir as vias respiratórias congestionadas, um mau sinal, mas a cabeça ainda estava funcionando, e ela compreendeu o que Gina dissera.


- Você acha que essa loja é fachada para encobrir uma casa de apostas?


- Só um palpite... talvez possamos usá-lo. - Foi na diagonal, atravessando o salão até o balcão, onde viu um sujeito com cara de poucos amigos. Baixo, moreno e com olhar desconfiado.


- Quer algo para comer aqui ou é para viagem?


- Nenhum dos dois. - começou ela, mas demonstrou piedade ao ouvir Hermione fungar. - Um café para minha acompanhante. E algumas respostas.


- Café eu tenho... - girou o corpo para servir um líquido denso e escuro em uma xícara pouco maior do que um dedal -... respostas, não.


- Talvez fosse melhor ouvir as perguntas antes.


- Dona, estou com a casa cheia. Sirvo café. Não tenho tempo para papo furado. - Largou a xícara sobre o balcão e já estava se preparando para sair da frente delas, mas Gina o agarrou pelo pulso.


- Quanto a casa está pagando para as apostas no jogo de hoje? - perguntou ela.


Os olhos dele se moveram com rapidez para a direita e a esquerda antes de se fixarem em Gina. Então notou Hermione e o uniforme que vestia.


- Não sei do que a senhora está falando, dona.


- Sabe sim, e se eu e minha auxiliar resolvermos ficar aqui por uma ou duas horas, seus negócios vão escorrer pelo ralo. Pessoalmente, estou cagando e andando para eles, sejam quais forem. Mas eu poderia começar a me interessar, de repente. - Ainda segurando o pulso do homem com firmeza, Gina virou a cabeça e olhou fixamente para dois dos homens sentados na ponta do balcão.


Levou menos de dez segundos para eles resolverem ir tomar café em outro lugar.


- Quanto tempo você aposta que vai levar para eu esvaziar todo o salão?


- O que quer de mim? Já paguei a minha contribuição deste mês. Estou limpo.


Gina o largou. Ficou aborrecida ao descobrir que ele contava com a cobertura da polícia. Isso não a deixou surpresa, apenas chateada.


- Não vou interferir com nada do que rola por aqui, a não ser que você me irrite. Conte-me tudo a respeito da loja do outro lado da rua... a Busca Espiritual.


Ele bufou e pareceu relaxar. Ela não estava atrás dele, então. Sentindo-se mais disposto a cooperar, tornou a encher a xícara de Hermione e, em seguida, pegou um trapo, começando a limpar o balcão. Afinal, ele gerenciava um estabelecimento limpo.


- Quer saber a respeito da bruxa? Ela nunca vem aqui. Não bebe café, se é que me entende.


- A loja está fechada hoje.


- Está? - Apertou os olhos para tentar olhar pela vidraça, através da chuva. - Isso não é comum.


- Qual foi a última vez em que a viu?


- Merda, deixe ver... - Coçou a nuca. - Parece que eu a vi ontem. Foi na hora de fechar?... Sim, foi isso mesmo! Ela fecha às seis horas, e eu estava lavando os vidros da frente. É preciso lavar os vidros todo dia nesta cidade. A sujeira parece pular da rua para grudar nas janelas.


- Aposto que sim. Então ela fechou a loja às seis horas. E depois?


- Saiu com o cara com quem ela mora. Foram caminhando pela rua. Não usam transporte público.


- E não tornou a vê-la hoje?


- Agora que mencionou o fato, acho que não. Ela mora em cima da loja, sabe? Quanto a mim, moro do outro lado da cidade. “Vida pessoal e negócios não se misturam”, esse é o meu lema.


- Alguém ligado a ela já veio aqui alguma vez?


- Não... alguns clientes, certamente. E alguns dos meus vão até lá em busca de algum feitiço. Convivemos bem, e ela nunca me trouxe problemas. Chegou até mesmo a trazer um presente de aniversário para a minha mulher. Um lindo bracelete com pedras coloridas. É meio caro aquele troço, mas as mulheres bem que gostam de um brilho...


Deixou o trapo de lado e ignorou o pedido de um cliente que pediu café na ponta do balcão.


- Escute, ela está encrencada? Pelo que sei, ela é legal... Meio esquisita, talvez, mas não faz mal a ninguém.


- O que sabe a respeito da moça que costumava trabalhar lá? Uma jovem, com dezoito anos mais ou menos. Loura...


- A assustada? Claro, eu costumava vê-la entrar e sair da loja. Vivia olhando para trás por sobre o ombro, como se estivesse com medo de alguém pular em cima dela por trás gritando “Boo!”


Pois alguém fez isso, pensou Gina.


- Obrigada. Se reparar que Isis voltou, dê uma ligada para mim. - Colocou um cartão sobre o balcão, junto com algumas fichas de crédito para pagar o café.


- Tudo bem... não gostaria de vê-la em apuros. Ela é legal, apesar de pirada. Ei!... - Levantou os dedos quando Gina já se virava para ir embora. - Falando em gente pirada, vi um cara muito doido, anteontem, quando estava fechando a loja.


- Que tipo de doido?


- Era só um cara... bem, talvez fosse uma mulher. Não deu para ver, porque ele estava todo coberto por um manto preto, com capuz e tudo. Ficou ali parado junto do meio-fio, do lado de cá da calçada, e olhando para a casa dela, do outro lado. Ficou ali em pé um tempão, só olhando... fiquei até arrepiado! Fechei a loja e saí andando na outra direção. Andei o dobro do caminho até o ponto do ônibus na outra rua, mas não gostei do jeitão esquisito dele. E sabe da maior? Quando olhei para trás, não havia mais ninguém lá, só um gato. Muito bizarro... uma doideira, não acha?


- É... - murmurou Gina -... doideira.


- Eu também vi um gato. - disse Hermione, quando elas caminhavam de volta para o carro. - Estava na calçada, quando Alice foi morta.


- Tem um monte de gatos pela cidade.


Mas Gina se lembrou do que vira na rampa. Tinha pêlo brilhoso, todo preto e um ar de mau.


- Vamos tornar a procurar por Isis mais tarde. Quero conferir uma coisa com o médico-legista, antes de dar declarações para a mídia. - continuou Gina, digitando um código na maçaneta para abrir o carro enquanto ouvia Hermione espirrar mais uma vez. - Talvez ele tenha alguma coisa para o seu resfriado lá no necrotério.


- Prefiro passar em uma farmácia, se você não se importar. - reagiu Hermione, esfregando a mão sob o nariz. - Não quero o dr. Morte tratando de mim, a não ser que seja absolutamente necessário.


 


Já de volta em sua sala, enquanto Hermione foi colocar um uniforme seco e se encher de remédios que não exigiam receita e haviam lhe custado uma fortuna, Gina analisava o relatório da autópsia de Lobar.


Acertara a hora da morte ao fazer o relatório preliminar, bem como a causa. Também, descobrir a causa não representava muita coisa, refletiu, pois era difícil alguém deixar de reparar um corte profundo como aquele, com um metro de largura, além da cratera no peito. E olhe só, quem diria?... Havia traços de um alucinógeno, um estimulante e um bloqueador mental, todos ilegais, em sua corrente sangüínea.


Então ele morrera sexualmente saciado e doidão. Gina imaginava que algumas pessoas diriam que isso não era um mau negócio. Por outro lado, a maioria delas nunca sentiu uma faca rasgando a sua garganta.


Pegou a arma lacrada e a olhou com atenção. Não havia impressões digitais, é claro, e ninguém esperava que houvesse. Também não havia sangue, a não ser o da vítima. Observou o cabo preto, todo entalhado com símbolos e letras que não significavam nada para ela. Parecia antiga e rara, mas ela duvidava muito de que esse fato pudesse ajudá-la a descobrir o dono. O comprimento da lâmina estava dentro dos limites da legalidade, e um punhal daquele tipo não exigia registro.


Mesmo assim, ela ia conferir em antiquários, cutelarias e, ela imaginava, lojas de artigos de bruxaria. Aquilo ia demorar só algumas semanas, pensou, contrariada, e provavelmente não levaria a lugar algum.


Já que ela ainda tinha vinte minutos antes de enfrentar a mídia, virou-se para o computador e começou a pesquisar. Mal se conectara e começara a informar ao sistema as características da arma quando Neville entrou na sala e fechou a porta.


- Ouvi dizer que você teve um despertar desagradável nessa madrugada.


- Foi... - O estômago de Gina se contorceu, não pela lembrança do que fora deixado em sua casa, mas por saber que ia ter de pesar cada palavra para conversar com Neville. - Esse não é o tipo de pacote que gosto de receber.


- Precisa de ajuda no que está pesquisando? - Sorriu, com o rosto cansado. - Estou atrás de trabalho, para me manter ocupado.


- Está tudo sob controle, mas se eu precisar, aviso você.


Ele foi até a estreita janela da sala dela e voltou para a porta. Parecia exausto, pensou Gina. Tão cansado. Tão triste...


- Como foi o lance? Você conhecia o cara?


- Não exatamente. - Ah, Deus, como é que ela ia fazer? - Havia conversado com ele uma vez, ao investigar um caso no qual estava trabalhando, mas o papo não deu em nada. Talvez ele soubesse mais do que estava contando. Agora, vai ser difícil descobrir ao certo. - Respirou fundo, odiando a si mesma. - Acho que foi alguém querendo indiretamente atingir a mim, ou a Harry. A maioria dos tiras consegue manter o próprio endereço oculto das pessoas. Eu não... - Encolheu os ombros.


- É o preço que está pagando por ter se apaixonado por uma celebridade. Está feliz, Gina? - perguntou, de forma inesperada, virando-se para avaliar a expressão dela.


- Claro. - Gina se perguntou se o ar de culpa estava estampado em sua testa como um luminoso em néon.


- Ótimo, então. Ótimo. - Voltou a passear pela sala, balançando o pacote de amêndoas açucaradas que sempre trazia no bolso e já não tinha apetite para curtir. - É difícil ter este emprego e manter uma vida pessoal decente ao mesmo tempo. Frank conseguiu.


- Eu sei.


- O velório de Alice é hoje à noite. Você vai lá?


- Não sei, Neville. Vou tentar.


- Estou arrasado, Weasley, arrasado de verdade. Minha esposa está com Brenda agora. Ela está devastada, simplesmente devastada! Não podia mais ver aquilo, por isso vim até aqui. Só que não estou conseguindo me concentrar em nada.


- Por que não volta para casa, Neville? - Gina se levantou, estendeu a mão e pousou-a em seu braço. - Simplesmente vá para casa. Talvez você e sua mulher devessem viajar por alguns dias. Você tem folgas e pode usá-las. Fuja de tudo isso.


- Talvez... - Seus olhos, com duas olheiras imensas, ficaram sem expressão. - Como é que se pode fugir de uma coisa que nos acompanha o tempo todo?


- Olhe, Harry possui um lugar muito legal no México. É fabuloso lá!... - Ela estava sem jeito, desesperada para agradá-lo, e sabia disso. - Tem uma vista inacreditável e a casa é toda equipada. Só podia ser mesmo. - Conseguiu dar um sorriso. - Afinal, pertence a Harry. Posso arrumar tudo com ele e você pode ir para lá. Leve sua família...


- Levar a família. - repetiu devagar, achando a idéia quase tranqüilizadora. - Talvez eu aceite. Parece que nunca temos tempo para passar com a família. Vou pensar no assunto. - decidiu. - Obrigado.


- Não é nada, a casa é de Harry e está lá sem ninguém usar. - Ela se virou para a mesa com a cabeça longe, sem conseguir enxergar nada à sua frente. - Agora desculpe, Neville. Tenho que me preparar para a entrevista coletiva.


- Claro. - Forçou um sorriso para ela. - Sei o quanto você adora isso. Depois eu a aviso se nós resolvermos ir para esse lugar que você ofereceu.


- Sim, por favor. - Ficou olhando para a tela, até ela apagar. Cumprira as ordens, lembrou a si mesma... fizera o que era certo.


Por que, então, estava se sentindo uma traidora?


 


 


 


 

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