Capitulo 6



Capitulo 6

Gina descobriu que Potter era um homem de palavra. Durante o resto do dia, e todo o dia seguinte, ambos só conversaram sobre assuntos profissionais.
Não que ele tivesse se retraído ou se mostrado distante. Ao contrário: acompanhou-a o tempo todo em que esteve no shopping transmitindo o programa, e afastava os fãs mais afoitos que se aproximavam demais para pedir um autógrafo ou uma camiseta.
Potter parecia até ter se divertido bastante. Circulou várias vezes pelas lojas durante os intervalos, conversou com o engenheiro de som que os acompanhava e cuidou para que Gina tivesse sempre um copo de refrigerante a seu lado.
Com os outros, ele era o mesmo. Mas, com ela, Potter havia mudado. Só se aproximava para uma conversa fria e impessoal e não a tocou nem de leve. Em resumo: tratava-a como Gina pensara que preferia ser tratada. Um relacionamento puramente profissional.
Enquanto ele agia com naturalidade, oferecendo-se até para pagar-lhe um hambúrguer depois do programa, antes que voltassem para a rádio, Gina não conseguia ocultar o desapontamento.
Foi Althea quem a acompanhou na cabine nas duas noites seguintes e monitorou os telefonemas. Gina não entendia por que, mas a ausência de Potter e seu súbito silêncio a entristeciam.
Refletindo sobre o que acontecia, concluiu que poderia tratar-se de uma nova tática de Potter. Ignorando-a talvez quisesse obrigá-la a tomar a iniciativa de se reaproximar. Pois enganava-se. Gina pôs no ar o mais novo sucesso de Bob Seger e fechou o microfone.
Queria que o relacionamento entre eles se mantivesse em termos estritamente profissionais e era isso o que Potter estava fazendo. Porém, não precisava se empenhar tanto.
Com certeza, o que houvera entre eles, ou o que quase houvera, não significara muito para ele. Tanto melhor. Ficava mais fácil esquecê-lo sabendo que Potter não lhe dava tanta importância. A última coisa que precisava na vida era um policial milionário e sedutor.
Pena que não conseguisse passar cinco minutos que fosse sem pensar em Potter...
Enquanto Gina lidava com a mesa de controle, Althea se distraía fazendo palavras cruzadas. Nunca se importara em ficar horas parada num mesmo lugar desde que tivesse algo com que exercitar a mente. Já Gina Weasley, constatou, era bem diferente. A garota era uma pilha de nervos e não sabia relaxar. Preenchendo os quadrinhos com sua caligrafia precisa, Althea reconheceu que Potter era o homem ideal para uma mulher assim. A seu lado, Gina aprenderia a viver melhor.
Naquele momento, via-se que ela estava ansiosa para iniciar uma conversa. Mas, não uma conversa qualquer. Althea notara seu desapontamento ao deparar com ela em lugar de Potter na porta da emissora.
“Ela deve estar curiosa, querendo saber onde está Potter”, pensou Althea mordendo a ponta da caneta.
Como mera espectadora, a situação lhe parecia divertida. Potter também andava muito calado nos últimos dias. Pelo que soube, ele havia feito um levantamento mais detalhado do passado de Gina e descobrira fatos que o perturbaram. Fatos de cunho pessoal, com certeza; de outra forma, teria lhe revelado a descoberta.
Porém, mesmo sendo colegas há tanto tempo, ambos respeitavam a privacidade do parceiro, evitando a todo custo qualquer pergunta mais íntima. Quando estivesse disposto, Potter a procuraria naturalmente para discutirem o caso.
De repente, Gina empurrou a cadeira para trás:
- Vou buscar um café. Quer também?
- Nick não lhe traz uma xícara todas as noites?
- Esta é sua noite de folga.
- Quer que eu vá buscar o café?
- Não. - Sua agitação era indisfarçável. - Tenho quase sete minutos até que a fita termine e preciso esticar as pernas.
- Tudo bem.
Gina foi até o corredor e notou que Snape, o faxineiro, já havia passado por lá. O assoalho brilhava como espelho, e as xícaras de louça, já lavadas, estavam todas empilhadas. O cheirinho silvestre de desinfetante pairava no ar.
Enchendo duas xícaras, virou-se com uma em cada mão e viu o vulto de um homem parado junto à porta. Assustada, gritou de medo e deixou as duas xícaras caírem no chão.
- Srta. Weasley?
Snape aproximou-se, hesitante.
- Oh, meu Deus! - Gina apertou uma das mãos sobre o peito. - Pensei que você já tivesse ido embora!
- Eu... - Ao ver Althea vir correndo pelo corredor com uma arma em punho, o faxineiro ergueu as mãos, apavorado. - Eu não fiz nada. Juro que não!
- A culpa foi minha. - disse Gina tocando-lhe o braço de leve. - Eu não sabia que havia alguém por aqui a esta hora, e quando me virei... - Desolada, cobriu o rosto com as mãos. - Sinto muito; ando um pouco assustada.
- O Sr. Harrison trouxe uns amigos para almoçarem hoje no escritório. - Snape explicou, fitando-a com olhos muito arregalados. - Havia muitos pratos e demorei mais para terminar a faxina.
- Me desculpe, Snape. Também devo tê-lo assustado bastante. - E olhou ao redor. - Sujei todo o assoalho que já estava limpo,
- Não tem importância. - ele garantiu, já mais calmo, vendo Althea guardar o revólver. - Eu limpo outra vez. A senhorita vai tocar muitos sucessos dos anos 50 no programa de hoje? São os meus favoritos.
- Claro. Vou dedicar um deles especialmente para você.
Snape abriu um sorriso radiante:
- Vai falar meu nome no ar?
- Claro que sim. Agora, preciso voltar à cabine. - Gina voltou depressa para a cabine e ficou feliz por ver que Althea permanecia lá fora. Gostava de um pouco de solidão.


O susto servira para lhe mostrar em que estado de nervos estava nos últimos dias. O melhor era se dedicar ainda com mais afinco ao trabalho e esquecer os problemas. Quando Althea entrou na cabine trazendo outro café, encontrou Gina convidando os ouvintes a permanecerem ligados em mais uma freqüência de sucessos:
- Agora, vou tocar uma série de dez sucessos sem interrupção e o primeiro será dedicado ao meu grande amigo Snape, que não perde um só programa. Vamos juntos voltar ao ano de 1958 e ouvir o inigualável Jerry Lee Le wis com Great Balis of Fire.
Desligando o microfone, ensaiou o sorriso amarelo e voltou-se para Althea:
- Me perdoe, sim?
- Eu provavelmente teria reagido da mesma forma se estivesse no seu lugar. - Althea estendeu-lhe uma das xícaras. - Estas últimas semanas não têm sido fáceis para você, não é?
- Terríveis, eu diria.
- Não se preocupe. Vamos conseguir pegá-lo.
- Espero que sim. - Gina pegou um disco e procurou a faixa que pretendia tocar. - Por que escolheu a carreira de policial?
- Eu queria me destacar em alguma coisa e consegui me sair bem nesta profissão.
- Você é casada?
- Não. - Althea não sabia onde Gina pretendia chegar. - A maioria dos homens não se aproxima de mulheres que sabem manejar uma arma. - Então, resolveu se abrir: - Você deve estar imaginando que existe algo entre mim e Potter, não?
- Confesso que sim. - Gina ergueu uma das mãos pedindo silêncio, anunciou a canção seguinte e tornou a fechar o microfone. - Vocês dois combinam muito bem.
Pensativa, Althea tomou uns goles de café e sentou-se.
- Para ser franca, numa imaginei que você tivesse essa mentalidade retrógrada e machista. Eu e Potter formamos uma dupla de trabalho, mas não dormimos juntos.
- Não foi isso que eu pensei! - Gina exclamou, ultrajada, pondo-se de pé. Porém, diante do sorriso ameno de Althea, voltou atrás. - Pensei, sim. - E sorriu também: - Você já deve estar acostumada com este tipo de suspeita, não é?
- Tanto quanto você. - respondeu Althea, apontando para a mesa de controle. - Ambas ocupamos cargos tidos pela maioria como tipicamente masculinos.
O pouco que tinham em comum ajudou Gina a se descontrair na presença da policial.
- Havia um colega de rádio em Richmond que pensava que eu estava ansiosa para... dar umas voltinhas com ele.
Althea riu.
- E como você conseguiu se livrar dele?
- Durante meu programa, anunciei que ele estava disponível, solteiríssimo e ansioso para conhecer outras garotas. As interessadas deviam ligar para a estação durante o programa dele. - Gina sorriu ao recordar o episódio. - Nunca mais ele me aborreceu. - Ligando o microfone, anunciou a atração seguinte: os pedidos telefônicos.
Após uma breve previsão do tempo, deu a hora certa e anunciou o sucesso seguinte. Então, tirou os fones de ouvido.
- Acho que Potter não desistiria tão facilmente.
- Não mesmo. Ele é um bocado teimoso. Aliás, prefere ser chamado de paciente, mas para mim, aquilo é teimosia. Quando quer uma coisa, luta até o fim.
- Já percebi.
- Ele é uma excelente pessoa, Gina. Se não estiver interessada, é melhor que seja bem clara. Potter pode ser teimoso, mas jamais seria inconveniente.
- Há uma grande diferença em não estar interessada e não querer estar.
- Entendo o que quer dizer. Ouça, espero não estar sendo indiscreta, mas gostaria de lhe fazer uma pergunta.
- Claro.
- Por que você diz que não quer se interessar?
Gina escolheu um outro disco e o acrescentou à pilha dos selecionados.
- Porque ele é um policial.
- Então, se Potter fosse um vendedor você se interessaria?
- Sim. Não. - Suspirando, resolveu ser bem sincera para com Althea: - Seria mais fácil. Além disso, já fracassei no único relacionamento sério que tive na vida.
- Foi a única culpada pelo divórcio?
- Oitenta por cento da culpa foi minha, sem dúvida. - revelou entre uma música e outra. - Prefiro me preocupar com meu trabalho e o futuro de minha irmã.
- Você não é do tipo que se satisfaça com uma vidinha monótona e cômoda.
- Pode ser que não. - afirmou olhando para o telefone. - Mas, no momento, é o que mais quero.
Althea a admirava. Gina era uma mulher de fibra e levava adiante seu trabalho mesmo sob um insuportável estado de tensão. Ainda assim, enfrentava o próprio medo, melhor do que os sentimentos que começava a alimentar com relação a Potter.
Sim. Não havia dúvidas de que ela estava apaixonada, porém, via-se que não sabia como agir diante de tal situação, que provavelmente lhe era inédita.
Calada, Altnea viu-a vacilar antes de atender ao primeiro telefonema. Contudo, engolia o medo e atendia aos ouvintes com a simpatia de sempre. Com todos tinha uma conversa breve, amigável e atendia a seus pedidos com satisfação.
Potter entrara em sua vida para protegê-la e não para ameaçá-la; contudo, ela o temia. Suspirando, Althea indagava-se por que a chegada de um homem era capaz de transtornar a vida da mais autoconfiante das mulheres...
Se um dia se apaixonasse por alguém, o que vinha conseguindo evitar até aquele momento, acharia uma maneira de racionalizar seus sentimentos e mantê-los sob controle.
De repente, ouviu uma ligeira diferença no tom de voz de Gina e não foi preciso olhá-la para saber quem estava do outro lado da linha. De pé, respirou fundo e murmurou:
- Mantenha-o na linha o mais que puder. Faça-o falar.
Gina afastava o fone do ouvido, pois descobrira que desta forma se sentia menos intimidada pelas ameaças terríveis que o sujeito lhe fazia. Por outro lado, mantinha os olhos fixos no relógio que marcava o tempo transcorrido, e ficou satisfeita ao ver que já o mantinha na linha há mais de um minuto.
Com muito esforço, conseguia fazer-lhe perguntas, mesmo que não obtivesse as respostas. E cuidava para manter sempre a voz inalterada para não lhe dar o gosto de saber que a amedrontava.
Esta noite, esforçava-se para não ouvi-lo e prestava toda atenção no relógio.
- Eu não o magoei. - disse. - Nunca lhe fiz nenhum mal.
- Para mim, não. Para ele. - o sujeito respondeu com voz sibiliante. - Ele está morto por sua causa.
- Mas de quem você está falando? Se me disser o nome...
- Você terá de lembrar sozinha. Quero ouvi-la dizer o nome dele antes que eu a liquide.
Gina fechou os olhos e contou até trinta enquanto ele descrevia o modo como pretendia matá-la.
- Você devia amá-lo muito. Ele deve ter sido muito importante.
- Ele era tudo para mim. Tudo que eu tinha. Ele era jovem, tinha a vida toda pela frente. Mas você o magoou, o traiu, agora vai me pagar na mesma moeda. Sua vida pela dele.
Assim que ele cortou a ligação, Gina ligou o microfone e anunciou o próximo sucesso com voz inalterada. Então, ignorando as luzes piscantes dos telefones, acendeu um cigarro e deu uma tragada.
- Eles conseguiram localizá-lo. - Althea desligou o telefone e pousou uma das mãos no ombro de Gina. - Eles finalmente conseguiram. Você se saiu muito bem esta noite, Gina.
- É. - Agora, era só vencer os últimos setenta minutos de programa. - Acha que a polícia vai pegá-lo?
- Saberemos daqui a pouco. É a primeira chance que temos, portanto vamos torcer para que tudo dê certo.


Gina já não suportava mais aquele tormento e não via a hora de tudo terminar. Althea guiava com cuidado pelas ruas desertas da cidade, e a música suave do rádio as entretinha. A polícia havia conseguido descobrir de onde tinha sido dado o telefonema. Mas, o que isso significaria em termos práticos? Que descobririam o nome do tal sujeito? Que o prenderiam em flagrante?
Se tivesse uma oportunidade, faria questão de conhecê-lo pessoalmente. Olharia-o bem dentro dos olhos e tentaria encontrar algum elo de ligação entre ele e seu passado. Só assim descobriria o motivo de tanto ódio.
Ao virarem a esquina, Gina viu o carro de Potter estacionado em frente à sua casa. Ele estava de pé na calçada, o casaco desabotoado. A noite, apesar de estrelada, estava fria e de longe Gina pôde ver a nuvem de vapor que o hálito dele formava.
Ansiosa desceu logo do carro, e Potter aguardou que ela se aproximasse pela passagem da casa.
- Vamos entrar. - disse-lhe, bastante sério.
- Quero saber de tudo. - Gina exigiu. Porém, fitando-o, reconheceu a decepção estampada em seus olhos verdes. - Não conseguiram pegá-lo...
- Não.
Potter olhou para Althea, que entendeu a mensagem e manteve o autocontrole.
- O que houve?
- Ele ligou de um telefone público a alguns quilômetros da estação de rádio, porém não deixou nenhuma impressão digital.
Gina mordeu o lábio inferior:
- Quer dizer que voltamos ao ponto de partida?
- Não é bem assim. - Potter segurou-lhe as mãos procurando transmitir-lhe mais confiança. - Ele cometeu o primeiro erro e não tardará a cometer outros.
Apreensiva, Gina olhou por sobre o ombro através da janela. O tal sujeito podia estar lá fora naquele instante, oculto nas sombras, observando-a.
- Gina, sente-se. Procure descansar um pouco.
- Eu estou bem. - Só queria ficar sozinha no escuro de meu quarto, nada mais. - Agora, se me dão licença, eu preferia ficar só. Althea, obrigada pela carona.
Ambos se entreolharam e se despediram, atendendo ao apelo dela.
- Entendo o que Gina deve estar sentindo. - disse Althea, já no jardim.
Potter queria gritar, esmurrar a parede para dar vazão àquela frustração terrível, porém limitou-se a olhar para a porta fechada.
- Ela não quer me deixar ajudá-la.
- Não, não quer. - Althea viu a luz do quarto de Gina acender. - Quer que eu peça uma radiopatrulha à central?
- Não; eu vou ficar por aqui.
- Seu horário de serviço já terminou, Potter.
- Ainda assim, prefiro ficar.
- Quer companhia?
- Não, obrigado. Você também precisa descansar. - Althea hesitou e sugeriu:
- Vamos nos revezar. Você fica com o primeiro turno, enquanto eu durmo.

De pé junto à janela do quarto, Gina observou a camada fina de neve que recobria o gramado. Na Geórgia, as azaléias já deviam estar florescendo. Era a primeira vez em anos que sentia saudade de casa... Tristonha, perguntava-se se havia cometido um erro ao ter deixado todas aquelas lembranças para trás.
Soltando as cortinas, afastou-se da janela mais preocupada com outros assuntos. Vira o caro de Potter estacionado em frente à casa.
Pensando nele, arrumou-se com mais vagar e cuidado do que o normal. Continuava achando um erro envolver-se com ele, porém, agora, já era tarde para voltar atrás.
Ao vestir o suéter de cashemere lilás, alisou-o sobre os quadris admirando-se no espelho. A malha, de mangas amplas e corte moderno, tinha sido um presente de Deborah e combinava muito bem com o fuseau preto colante. Para completar, escolheu um par de brincos prateados em formato de estrela.
Potter a esperava sentado no sofá da sala com o jornal do dia numa das mãos e uma xícara de café na outra. A camisa estava toda amassada pela noite dormida dentro do carro.
Gina sorriu para si mesma. Nunca conhecera alguém com tal capacidade de adaptação. Quem o visse ali no sofá pensaria que Potter passara todas as manhãs de sua vida naquela sala, na sala da casa dela, com o jornal nas mãos.
- Bom dia. - ele a cumprimentou com tranqüilidade. Um tanto constrangida, Gina aproximou-se dele sem saber se deveria desculpar-se.
- Deborah me deixou entrar.
Ela assentiu e arrependeu-se de não ter vestido uma calça com bolsos, pois não sabia o que fazer com as mãos.
- Você passou a noite toda aí fora?
- Faz parte do meu serviço.
- Foi obrigado a dormir no carro?
- Estou acostumado.
- Desculpe-me. - pediu Gina sentando-se na beirada da mesinha de centro, em frente ao sofá. - Eu deveria ter imaginado que você não iria embora. Poderia tê-lo deixado entrar. Acho que...
- Você estava aborrecida, Gina. - Potter lhe estendeu a xícara de café. - E com toda razão.
- E verdade. - Gina provou a bebida e estranhou o excesso de açúcar. - Eu estava certa de que vocês conseguiriam pegá-lo ontem à noite e mal via a hora de encarar esse sujeito, de saber quem ele é. Mas quando chegamos aqui e você nos deu a má notícia... Preferi me isolar para não falar no assunto.
- Tudo bem, eu entendo. - Gina deu um sorriso tenso: - Por que tem de ser tão gentil comigo? - Potter estendeu uma das mãos e tocou-lhe o rosto.
- Você se sentiria melhor se eu gritasse, ficasse bravo?
- Talvez. - Gina não resistiu e segurou-lhe a mão com ternura. - Acho mais fácil brigar do que ser razoável.
- Já percebi. Alguma vez já teve vontade de tirar um dia inteiro só para descansar e se distrair?
- Não.
- O que acha de fazermos isso hoje?
- Eu tinha pensado em fazer a contabilidade da casa e chamar um encanador. A pia da cozinha está pingando. - Então, pousou as mãos inquietas sobre os joelhos. - Preciso lavar a roupa de cama e fui convidada para ser a discotecária de uma festa hoje à noite. Eles estão completando quinze anos de formados e vão se reunir numa discoteca da cidade. Bill e Jim vão me substituir na rádio.
- Eles já tinham me contado.
- Essas festas são muito divertidas. Talvez... - Potter havia posto a xícara vazia de lado e agora segurava-lhe as duas mãos entre as suas. - Você não gostaria de me acompanhar?
- Está me convidando para ir a uma festa com você? Assim como se fôssemos namorados?
- Eu estarei trabalhando e... - Gina começou e calou-se. - Sim, estou.
- Está bem. A que horas passo para buscá-la?
- Às sete. Preciso chegar cedo para pôr tudo em ordem.
- Então, passo às seis. Assim, poderemos jantar antes.
- Bem, é que... - Vacilou, porém aceitou. - Está combinado. Potter, preciso lhe dizer uma coisa. Minha opinião não mudou e continuo não querendo me envolver.
- Tudo bem.
- Acho que devemos ter em mente que somos pessoas muito diferentes. Um relacionamento mais profundo entre nós não poderia dar certo.
- Mas, afinal: trata-se de um romance ou de uma transação comercial?
Potter riu e Gina franziu a testa.
- Acho que não é exatamente um romance. Nem um namoro.
- Por quê?
Curvando-se para frente, ele deslizou-lhe um dedo pelo lábio inferior, enquanto lhe acariciava as maçãs do rosto. Sempre carinhoso, segurou-lhe uma das mãos e beijou-lhe a palma úmida.
- Porque um namoro tem outras implicações e...
- Era só isso que você queria me falar?
- Não. Quer parar um pouco?
- Vai ser difícil.
Gina teve de rir diante do tom dele.
- Então, faça o possível, está bem? Não consigo raciocinar.
- Fico lisonjeado. - ele brincou, porém se conteve.
- Estou falando sério.
- Eu também.
- Ontem à noite, quando fui para o quarto, fiquei com muito medo. A voz dele não me saía da lembrança e não consegui esquecer todas aquelas ameaças terríveis que ele sempre repete. Então, comecei a pensar em você. - Fazendo uma pausa, respirou fundo e encheu-se de coragem para continuar: - E quando pensei em você, consegui esquecer tudo o mais. O medo passou.
Potter apertou-lhe as mãos com mais força e viu os lábios de Gina tremerem ligeiramente. Seus olhos, no entanto, o encaravam de modo direto e corajoso. Ele percebeu que ela esperava para ver qual seria sua reação, para saber o que ele diria. Porém, jamais poderia saber que naquele exato instante Potter abandonava qualquer temor e entregava-se de corpo e alma àquela paixão.
Contudo, se lhe revelasse o que sentia, Gina não acreditaria. O melhor seria convencê-la com gestos e atitudes.
Levantou-se com vagar, trouxe-a consigo e aninhou-lhe a cabeça em seu peito, abraçando-a. Gina estremeceu em seus braços desfrutando daquele gesto amigo, que a comoveu.
Era o que mais queria naquele momento: um abraço amigo, reconfortante. Nada de palavras ou promessas. Apenas o momento, a emoção.
- Potter?
- Sim? - ele perguntou, virando o rosto só o suficiente para beijar-lhe os cabelos.
- Para ser franca, não me importo que seja sempre tão gentil comigo. - E foi mais adiante: - Senti sua falta estes dias.
- Ouça. - Agora, era a vez de ele respirar fundo. Seu coração parecia querer saltar-lhe pela boca. - Preciso dar uns telefonemas e depois vou dar uma olhada na pia da cozinha, está bem?
- Está ótimo.


Duas horas depois, Gina estava perdida num mar de papéis e contas que cobriam a mesa. Suas contas não conferiam com o extrato do banco e era preciso encontrar o erro.
Paciente, reviu todas as contas pela enésima vez até, finalmente, encontrar a diferença. Depois de conferir os números, guardou o extrato bancário e começou a fazer os cheques para os pagamentos do mês.
Primeiro foi o da prestação da casa. Era a primeira vez que deixava de pagar aluguel para morar no que era seu. Ter uma casa era ao mesmo tempo motivo de satisfação e segurança para ela e Deborah.
Tendo nascido numa família de classe média, cuja renda provinha do salário de sua mãe, uma policial, e de seu pai, um advogado a serviço do governo, aprendera a controlar os próprios gastos, equilibrando o orçamento. Sempre estudara em escolas particulares, porém nunca tivera um carro novo.
Finalmente, depois de tantos anos de carreira, as coisas começavam a melhorar, e sua primeira providência fora comprar uma casa.
- Gina?
- O quê? Oh! - Virando-se, ela o viu parado na porta do escritório com os cabelos completamente molhados. As mangas da camisa haviam sido enroladas até os cotovelos, mas a calça estava toda respingada. Gina não conteve um riso. - Minha nossa!
- Já consertei a pia.
- Ah, já?
- Já.
Gina mordeu o lábio inferior e conteve o riso ao ver que Potter mantinha a testa franzida. Não queria ferir seu ego masculino.
- Bem... Já que me prestou esse favor, o mínimo que posso fazer é oferecer-lhe um almoço. O que acha de um sanduíche de pasta de amendoim e geléia? Sinto muito, mas é só o que sei fazer. Sua única opção é atum enlatado. - Deixando as contas de lado, ela levantou-se da mesa. - Meu Deus, você está todo molhado.
Potter mostrou-lhe as mãos encardidas, pensou bem e não resistiu: esfregou-as no rosto dela.
- Ei!
Gina esquivou-se e riu a valer, surpreendendo-o. Seduzindo-o. Potter já tinha ouvido aquele riso descontraído pelo rádio, mas era a primeira vez que ela lhe dirigia um riso assim grave, rouco, excitante...
- Venha. Vamos pôr a camisa na máquina de lavar enquanto almoçamos.
- Daqui a pouco.
Ele continuou a segurar-lhe o queixo exercendo leve pressão para puxá-la para perto. Quando seus lábios pousaram nos dela, Gina não protestou nem se retraiu. Suspirando, ela os entreabriu para recebê-lo, e suas línguas se tocaram de modo íntimo.
- Acho que você tem razão. - murmurou.
- No quê?
Ela ergueu um dos braços e tocou-lhe os cabelos claros das têmporas. Há tempos não era capaz de um gesto tão... atrevido.
- É tarde demais para voltar atrás.
- Gina... - Potter segurou-lhe os ombros e seus olhos adquiriram um brilho intenso, quase primitivo. - Gina, vamos para a cama.
Gina fechou os olhos e balançou a cabeça. Porém, por um segundo, Potter viu-os refletir o mesmo brilho que havia nos seus.
- Dê-me um pouco mais de tempo, sim? Não se trata de um joguinho. É que me sinto insegura e preciso pensar. - Então, ela abriu os olhos e confessou: - Você é o tipo de homem pelo qual eu jurava que jamais me apaixonaria.
- Por que não se abre comigo? - ele pediu entrelaçando-lhe os dedos nos seus.
- Agora não. - ela respondeu, beijando-lhe uma das mãos. - Ainda não estou pronta para me abrir. No momento, só quero aproveitar estes instantes de paz, de normalidade. Não vou atender ao telefone nem à porta. Vou pôr sua camisa para lavar e preparar um sanduíche, está bem?
- Perfeito. - Potter beijou-lhe a testa. - É o convite mais gentil que já recebi nos últimos tempos.




Aviso galera: não tive tempo para responder aos comentários, por isso prometo que respondo a todos eles no próximo. Abraços.

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