Capitulo 3



Capitulo 3

Gina já havia recuperado a calma quando Althea e Potter chegaram a sua casa e não via motivo para tê-los chamado. Ou melhor, para ter chamado Potter.
“Foi apenas um telefonema”, dizia a si mesma caminhando entre a janela e a porta. Aquela situação já durava uma semana, tempo bastante para ter se acostumado. Se conseguisse manter o controle dando ao anônimo a impressão de não se abalar com o que ouvia, o sujeito acabaria desistindo daquela brincadeira de mau gosto.
Seu pai lhe ensinara que aquela era a melhor forma de lidar com marginais. Sua mãe, por outro lado, achava mais fácil acertar-lhes um soco fulminante no queixo. Embora Gina reconhecesse o valor das duas, achava que naquele caso a atitude passiva era a mais recomendável.
Durante o último telefonema, no entanto, admitia ter se descontrolado e acabara gritando com o tal sujeito, implorando que a deixasse em paz. Por sorte Deborah não estava em casa para ouvi-la.
Soltando os braços ao longo do corpo, sentou-se na poltrona com as costas bem retas. A mente tumultuada a impedia de refletir. Logo depois do chamado, correra para trancar as portas, desligara o rádio e fechara as cortinas. Sob a luz fraca do abajur, olhava assustada pelos quatro cantos da sala: as paredes que ela e a irmã haviam pintado, os móveis que haviam escolhido. O ambiente e os objetos que já lhe eram familiares a acalmavam.
Em pouco mais de seis meses morando ali, ambas já começavam a juntar algumas quinquilharias; coisas que nunca haviam feito nos outros lugares onde moraram anteriormente. Mas, ali, a casa não era alugada, tampouco os móveis eram emprestados. Tudo ali lhes pertencia.
Talvez fosse por esse motivo que ambas tivessem começado a enfeitar cada canto com uma peça diferente: o vaso chinês sobre a mesa de jantar, o bibelô de louça na estante. Pequenas coisinhas que transformavam uma casa num lar.
Era a primeira vez que constituíam um lar desde a morte dos pais, e Gina não permitiria que uma voz anônima do outro lado do telefone estragasse aquela felicidade.
Mas, o que fazer? Como estivesse sozinha, permitiu-se um momento de desalento e ocultou o rosto entre as mãos. Tinha de lutar. Porém, como lutar com alguém que não conhecia nem podia ver? Seria melhor tratá-lo com indiferença? No entanto, por quanto tempo conseguiria manter a farsa já que ele a perseguia até a casa?
E o que aconteceria quando ele parasse com as ameaças e partisse para a ação?
A batida brusca à porta assustou-a, fazendo-a pousar uma das mãos no peito.
“Vou fazê-la sofrer. Vou fazê-la pagar.”
- Gina, sou eu, Potter. Abra a porta. - Correndo os dedos pelos cabelos, Gina se recompôs e foi recebê-lo.
- Oi. Puxa, vocês vieram depressa. - E voltou-se para Althea: - Como vai? - Então, convidou-os a entrar e recostou-se contra a porta depois de trancá-la. - Foi bobagem tê-los chamado aqui.
- Faz parte do nosso trabalho. - explicou Althea Grayson, reparando no quanto era frágil a amardura de coragem atrás da qual Gina se escondia. - Podemos sentar?
- Claro. Me desculpe. - Gina apontou-lhes o sofá e reconheceu não estar conseguindo passar-lhes a imagem de mulher forte que tanto prezava. - Aceitam um café?
- Não se incomode conosco. - disse Potter acomodando-se no sofá bege com almofadas azuis. - Conte-nos o que aconteceu, sim?
- Anotei tudo. - Os gestos nervosos ao caminhar até a mesa do telefone para pegar o bloco denunciavam sua agitação. - É um hábito que adquiri trabalhando no rádio. Sempre que o telefone toca, já pego um lápis. - justificou.
Na verdade, porém, não queria repetir a conversa de própria voz.
- Deixe-me ver.
Potter pegou o bloco e leu o texto. Seus músculos se enrijeceram num misto de revolta e ódio, mas ele soube manter a calma aparente. Depois de terminar a leitura, passou-o para a colega.
Gina não conseguia sentar-se. De pé no centro da sala, puxava sem parar a barra da camiseta.
- Ele é bastante claro quando fala o que pensa a meu respeito e o que pretende me fazer.
- Foi a primeira vez que ele ligou para cá?
- Foi. Não sei como conseguiu o número já que meu nome não consta da lista telefônica.
Althea pôs o bloco de lado e pegou o dela, na bolsa.
- Quem sabe o número do telefone da sua casa?
- Basicamente o pessoal da rádio. - respondeu Gina, já mais calma. Responder perguntas diretas era algo simples que não lhe causava apreensão. - Deb deve tê-lo dado na escola, também. Meu advogado, Carl Donnely. Uns dois amigos de minha irmã: Joshn Holden e Darren McKinley. Algumas amigas minhas. Acho que é só. Agora, o que me preocupa é... - De repente, a porta abriu e Gina girou nos calcanhares. - Deb! - constatou entre aliviada e aborrecida. - Pensei que tivesse duas aulas esta noite.
- E tive. - Deb voltou seus lindos olhos azuis para Potter e Althea. - Vocês são da polícia?
- Deborah, você sabe que não deve matar aulas. Hoje era dia de prova.
- Pare de me tratar como criança! - Deb exclamou entregando-lhe o jornal que carregava. - Espera que eu acredite nessa sua conversa de que não há nada de errado? Diabo! Você mentiu para mim quando disse que estava tudo sob controle.
Gina viu o título estampado num canto da primeira página do jornal e jogou-o sobre uma poltrona: “Radialista da Noite Sofre Ameaças Anônimas”.
- Não era mentira. Está tudo sob controle. Só que coisas deste tipo ajudam a vender jornais, e eles exageram na notícia.
- Não é verdade.
- Já chamei a polícia. - Gina revidou no mesmo tom. - O que mais você quer?
Potter percebeu que as duas irmãs se pareciam. O formato dos olhos e da boca era igual. Porém, se Gina era do tipo sexy e atraente capaz de virar a cabeça de qualquer homem, sua irmã tinha uma beleza mais clássica e menos chamativa.
O cabelo de Deborah era curto e cacheado enquanto o da irmã caía pelos ombros numa cascata de ondas vermelhas. A mais nova usava um suéter vermelho e calça comprida preta enfiada por dentro das botas de cano reto. Já Gina usava um agasalho de ginástica já bastante surrado, com meias grossas cor de laranja.
Os gostos pareciam ser bem diferentes, mas os temperamentos eram idênticos.
E quando as irmãs Weasley discutiam, o faziam para valer.
Althea, sentada ao lado de Potter, chegou-se mais perto e murmurou-lhe baixinho:
- Acho que as duas costumam brigar com freqüência.
Potter riu. Em outras circunstâncias, adoraria presenciar a discussão até o fim.
- Em quem você aposta?
- Em Gina. - disse Althea cruzando as pernas. - Mas a irmã também promete.
Cansada do bate-boca, Deborah voltou-se para Potter:
- Já que Gina continua mentindo, me diga você o que está acontecendo.
- Ah...
- Deixe para lá. - Deb apontou para Althea. -Você.
- Somos os detetives encarregados de investigar o caso de sua irmã, srta. Weasley.
- Então, há um caso.
Ignorando o olhar furioso de Gina, a investigadora assentiu.
- Sim. A direção da rádio nos deu permissão para fazermos uma ligação entre a polícia e a linha telefônica usada no programa para que possamos localizar o autor dos telefonemas anônimos. Eu e o investigador Potter já interrogamos diversas pessoas com passagens anteriores pela polícia pelo mesmo motivo. Agora, como sua irmã recebeu um telefonema aqui na sua casa, faremos uma ligação com esta linha também.
- Aqui? Esse sujeito ligou para cá? Oh, Gina, não! - E, passada a raiva, abraçou a irmã. - Sinto muito.
- Não há nada com que se preocupar. - disse Gina ao se desvencilhar do abraço. - É verdade. A polícia se encarregará de tudo.
- Isso mesmo. - garantiu Althea já de pé. - Eu e meu colega temos muitos anos de experiência e resolveremos tudo o mais breve possível. Posso usar o telefone?
- Claro. Há uma extensão na cozinha. - informou Deborah antes que Gina respondesse. Precisava conversar a sós com a investigadora. - Vou acompanhá-la. Aceitam um café?
- Não, obrigado. - agradeceu Potter observando-a sair da sala.
A expressão de seus olhos disse mais do que mil palavras.
- Nem pense nisso! - disse Gina.
- O quê? - Potter se fez de desentendido, admirando a atitude protetora de Gina com relação à irmã mais nova. - Bem, Deborah é uma moça muito bonita.
- Você é velho demais para ela.
- Puxa, não precisava me ofender.
Gina pegou um cigarro e forçou-se a sentar no braço da poltrona.
- Além do que, você e Althea formam um belo par.
- Thea? - Mais uma vez ele não conteve o riso. Por vezes, chegava a esquecer que sua parceira de dupla era mulher. - É; dizem que sou um sujeito de sorte.
Gina cerrou os dentes. Detestava sentir-se intimidada por outra mulher. Na verdade, achava Althea bonita e elegante e chegava a invejá-la por isso.
Potter levantou do sofá e tirou-lhe o cigarro apagado da mão.
- Está com ciúme?
- Ora, que bobagem!
- Como se sente? - ele quis saber erguendo-lhe o queixo com a ponta do dedo.
- Bem. - Gina queria afastar-se, mas tinha certeza de que ele não lhe daria passagem e, caso se levantasse, talvez não resistisse ao impulso de apoiar a cabeça no ombro dele, deixando o orgulho de lado. Do que, na certa, se arrependeria. - Não quero ver Deb envolvida nesta história. Ela fica sozinha em casa à noite, enquanto eu estou trabalhando.
- Posso providenciar para que uma radiopatrulha fique estacionada na sua porta.
Gina assentiu grata.
- Detesto pensar que algum dia possa ter feito algo que a colocasse em perigo. Ela não merece sofrer.
Incapaz de resistir, ele tocou-lhe as maçãs do rosto sentindo a pele aveludada sob os dedos.
- Nem você.
Há muito tempo alguém não a tocava, ou melhor, Gina não permitia que alguém a tocasse daquela maneira e, com algum esforço, conseguiu dar de ombros.
- Ainda não pensei nessa questão. - De olhos fechados, desejou poder aconchegar o rosto contra aquela mão forte e protetora. - Preciso me arrumar para ir trabalhar.
- Por que não pede que alguém a substitua hoje?
- E deixá-lo pensar que conseguiu me amedrontar? Não, não.
- Até os super heróis descansam de vez em quando.
Gina balançou a cabeça e levantou-se. Como já esperava, Potter não lhe deu passagem, e todas as suas saídas estavam bloqueadas. Apesar da tensão, o orgulho a fez sustentar-lhe o olhar. Diabo! Fitando-a com tal intensidade, Potter notaria sua agitação.
- Você está me incomodando, Potter.
Mais um minuto, só um, e ele a teria puxado para si. Só assim conseguiria constatar até que ponto suas fantasias condiziam com a realidade.
- Ainda não viu nada, Gina Weasley. - Ela franziu os olhos:
- Já chega de ameaças por hoje.
- Não é ameaça. - Potter afirmou enganchando os dedos no bolso da calça. - É uma promessa.
Deborah achou que já tinha ouvido demais e pigarreou antes de entrar na sala.
- Eu lhe trouxe um café. - disse entregando uma xícara fumegante para Potter. - Althea me disse que você prefere puro e com açúcar.
- Obrigado.
- Vou ficar esperando o pessoal da polícia vir fazer a ligação. - anunciou desafiando a irmã a contradizê-la. Então, beijou-lhe as maçãs do rosto e avisou: - Ainda não perdi nenhuma aula este semestre. - Ao ver a expressão de Potter, explicou: - Ela quer satisfação de tudo o que faço.
- Não sei do que está falando. - retrucou Gina, afastando-se para pegar a bolsa. - Você está atrasada com as leituras das aulas de política, precisa estudar mais história americana e não perderia nada se desse uma olhada na apostila de psicologia. - Enquanto falava, tirava o casaco do armário junto à porta. - Por falar em serviço, bem que poderia lavar o chão da cozinha com uma escova de dentes e cortar mais um pouco de lenha.
Deborah caiu na gargalhada.
- Vá embora!
Gina riu e pegou na maçaneta, sem ter visto que Potter já a segurava. Assustada, olhou-o com ar de espanto:
- O que está fazendo?
- Vou pegar uma carona com você. - ele explicou e deu uma piscada para Deborah antes de se despedir.
Gina entrou no prédio da estação furiosa:
- Isso é ridículo!
- O quê? - Potter perguntou, fingindo-se de inocente.
- Não entendo por que preciso trabalhar acompanhada de um policial todas as noites. - Enquanto andava, ela tirava o casaco de uma maneira tal que o fez lembrar um toureiro agitando a capa. Sempre brava, esticou um braço para abrir a porta de uma saleta e quase tropeçou em Potter quando ela se abriu de súbito. - Puxa, Snape! Você quase me mata de susto!
- Me desculpe. - O faxineiro tinha os cabelos já grisalhos, braços magros e um sorriso franco. - Vim buscar o spray para limpar o vidro.
- Tudo bem. Ando meio assustada mesmo.
- Ouvi comentário sobre o que tem acontecido. - ele explicou pegando um pano e um balde. - Sinto muito, Gina. Se precisar de mim, é só chamar. Fico aqui na estação até a meia-noite.
- Obrigada. E então, vai ouvir meu programa hoje?
- Claro que vou.
O faxineiro sorriu e afastou-se com seus apetrechos. Potter reparou no modo como ele puxava ligeiramente a perna direita.
Gina entrou na saleta, pegou um frasco de líquido especial para limpeza de agulhas de toca-discos e deixou uma moeda sobre uma pilha de trapos.
- Para quem é esse dinheiro?
- Para Snape. - ela disse num tom seco. - Ele é ex-combatente do Vietnã.
Potter não respondeu. “Mais um furo na armadura”, pensou.
Antes de começar o programa, Gina entrou numa saleta à direita do corredor para verificar a programação selecionada para aquela noite, trocando as músicas a seu gosto. O diretor do programa havia desistido de reclamar e lhe dava liberdade para mexer na programação. Mais um motivo pelo qual ela gostava de trabalhar à noite.
- Não gosto deste conjunto. - murmurou.
- O que disse? - perguntou Potter, mais interessado na rosquinha açucarada que comia.
- Estava me referindo ao Studs. - Gina repetiu batendo o lápis na mesa. - Aposto como não vão passar do primeiro disco.
- Então, por que os radialistas o escolhem?
- Para lhes dar uma chance. - Concentrada no trabalho, ela deu uma mordida na rosquinha que ele lhe ofereceu. - Daqui a seis meses, ninguém mais vai se lembrar deles.
- Isso acontece muito no mundo do rock.
- Não é bem assim. Veja o que houve com os Beatles, Buddy Holly, Chuck Berry, Bruce Springsteen, Elvis Presley. Isso sim é rock.
Potter recostou-se contra a parede e estudou Gina por uns instantes.
- Você não ouve outro tipo de música?
Ela riu e passou a ponta da língua pelo lábio superior para retirar o açúcar.
- E existe outro tipo de música?
- Está bem, já entendi.
Gina tirou um elástico do bolso e prendeu os cabelos num rabo de cavalo.
- Que tipo de música você prefere?
- Gosto dos Beatles, Buddy Holly, Chuck...
- Bem, então, nem tudo está perdido.
- Mozart, Lena Horne, Ella Fitzgerald, B. B. King...
- Ora, seu gosto é bem eclético.
- Sou um sujeito liberal.
Gina aprumou-se por um momento:
- Potter, você me surpreende. Julguei que fosse do tipo insensível, desses que gostam de partir corações e afogar as mágoas na bebida. - E sorriu-lhe. - Bem, está na hora do programa.
Bob Williams, o locutor do horário das seis às dez, terminava seu programa. Alegre e brincalhão, tinha a voz de rapaz, embora já tivesse quase quarenta anos. Ao vê-la selecionar uns discos, Bob deu-lhe uma piscadinha.
- Hummm, a garota de voz de veludo acaba de chegar aos estúdios. - disse ao microfone, e soltou uma fita com o som vibrante das batidas de um coração. - Atenção pessoal, fique ligado porque a estrela da meia-noite começa a surgir no horizonte. O último número de hoje, será um grande sucesso do passado.
E começou a tocar Honky Tonk Woman, sucesso dos anos 60. Bob levantou-se da cadeira, afastou o microfone e friccionou os músculos das pernas.
- Olá, garota, como vai?
- Bem, obrigada. - ela afirmou pondo o primeiro disco no prato do toca-discos, com a agulha a postos.
- Li os jornais de hoje.
- Ora, você sabe como esses caras exageram.
- Gina, formamos uma verdadeira família aqui na KHIP. Se precisar de ajuda, não hesite em me pedir.
- Obrigada, Bob.
- Você é o policial, não é? - perguntou a Potter.
- Sim, sou.
- Trate de pegar logo esse lunático ou todos nós acabaremos malucos. - Bob deu um tapinha amigo no ombro da colega. - Conte comigo para o que precisar.
- Pode deixar. Obrigada.
Faltando apenas trinta segundos para entrar no ar, Gina não podia nem queria pensar no pior. Sentada na cadeira giratória, ajustou o microfone, testou a voz e mexeu no botão que abria o som.
- Boa noite, Denver. Esta é Gina Weasley falando através da KHIP, a rádio mais ouvida em todo o Estado. Seguiremos juntos até as duas da madrugada e vamos começar distribuindo um prêmio de cento e dez dólares para quem acertar o nome da música, do cantor e o ano da gravação que tocarei daqui a pouco. Nosso número é 555-5447. Fique ligado.
Já aos primeiros acordes da canção, Gina sorriu satisfeita. Recuperara totalmente o autodomínio.
- O cantor é Elton John, a música se chama Honky Cate foi gravada em... 1972! - disse Potter ali ao lado.
Gina virou-se para fitá-lo e o surpreendeu com ares de satisfação, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, o sorriso juvenil nos lábios. Nunca o vira tão bonito.
- Ora, ora, mais uma surpresa, Potter. No final do programa, lembre-me de lhe dar uma camiseta com o logotipo da rádio.
- Eu preferia ganhar um jantar.
- E eu, um Porsche. De qualquer forma... Ei! - Gina exclamou ao vê-lo segurar-lhe uma das mãos.
- Você andou roendo as unhas. - ele constatou passando um dedo pela beirada irregular das unhas curtas. É um péssimo hábito.
- Tenho vários outros.
- Entendo. Não tive tempo de trazer um livro, portanto vou ficar observando seu trabalho, está bem?
- Por que não... - Gina praguejou e apertou o botão de um dos telefones. A conversa a atrapalhava. - KHIP. E então, amigo, sabe o nome da música de hoje?
Só o sexto ouvinte a telefonar acertou todos os dados em cheio. Tentando ignorar a presença de Potter, Gina introduziu no toca fitas um cassete com os comerciais e anotou o nome e endereço do vencedor.
Mas ficava difícil concentrar-se no trabalho tendo-o ali tão perto. Perto o suficiente para poder aspirar-lhe o aroma silvestre da colônia masculina. Era um perfume másculo, que lhe trazia à mente a imagem de uma montanha coberta de pinheiros, um chalé de madeira, um quarto à meia luz...
“Que devaneio mais imbecil”, criticou-se em pensamento. Nada daquilo lhe interessava. O mais importante naquele momento era localizar o autor dos telefonemas e retomar sua rotina normal. O lado sentimental e amoroso desempenhava uma parte mínima em sua felicidade. Toda sua energia voltava-se para a busca do sucesso profissional. Este sim, lhe trazia uma profunda satisfação pessoal.
Gina mudou de posição e esticou-se para tirar um disco da prateleira cheia de compartimentos verticais. Com o movimento, sua pernas roçaram as dele, e ela pôde sentir-lhe os músculos rijos da coxa. Ocultando a agitação, Gina ergueu o olhar e o encarou num desafio. E sentiu o coração disparar ao vê-lo fixar a atenção em seus lábios úmidos.
Imediatamente um calor súbito subiu-lhe ao rosto. A música ecoava em seus ouvidos através dos fones que insistia em usar para não ter de conversar com Potter. A letra da canção falava em noites quentes de verão e na paixão de dois enamorados.
Gina afastou-se uns centímetros e, ao retomar o microfone, sua voz soou ainda mais rouca.
Já prestes a se descontrolar, Potter achou por bem levantar-se. Seu intuito fora aborrecê-la fazendo-a distrair-se para que não tivesse tempo de pensar nos telefonemas ameaçadores, que certamente se repetiriam naquela noite. Queria fazê-la pensar em outras coisas. Ou melhor, nele. Quanto mais melhor. Porém, não sabia que ao alcançar seu objetivo, teria caído no mesmo laço. Ela cheirava a noite. As flores da noite. Uma verdadeira dama da noite: secreta, insinuante. Sua voz provocante o excitava, acendia-lhe a chama do desejo. Desejo de pecar. Contudo, seus olhos tinham uma expressão de inocência verdadeiramente desconcertante. Aquela combinação de anjo e demônio, inocente e pecadora levava a maioria dos homens ao delírio.
‘‘Distância”, disse a si mesmo ao sair do estúdio sem fazer barulho. Distância e profissionalismo. Nenhum dos dois lucraria com um possível envolvimento amoroso. Seu dever era protegê-la das ameaças que vinha sofrendo e nada mais.
Sozinha, Gina fez um esforço consciente para se descontrair, esticando cada um dos músculos dos braços e das pernas. Mais calma, procurou se convencer de que aquela tensão era fruto da pressão dos últimos dias e nada tinha a ver com a presença de Potter.
Afastando os cabelos do rosto, tocou dois sucessos sem intervalo, o que lhe dava mais uns momentos de descanso. Aos poucos, Potter ia se revelando uma pessoa muito diferente do que ela imaginara. Ele lia autores sérios e sabia de cor o ano das gravações de Elton Jonh. Falava manso e raciocinava com rapidez; usava botas riscadas e um paletó de trezentos dólares.
Mas o que lhe importava aquilo tudo, perguntou-se ao pegar os discos e fitas que tocaria nos próximos vinte minutos de programa. Não estava interessada em homem nenhum. Primeiro: jamais se envolveria com um policial. Segundo: qualquer um percebia que Potter e Althea tinham um relacionamento mais profundo do que o estritamente profissional.
De olhos fechados, mergulhou no ritmo da canção lembrando-se de que era considerada uma garota de sorte. Trabalhava no que gostava e alcançara sucesso em sua profissão.
A vida, no entanto, lhe ensinara uma lição: nada durava para sempre. Os bons e maus momentos passavam, e o importante era aproveitar as fases boas ao máximo.
- Esta foi Joan Jett, nos fazendo companhia. Nossos relógios marcam onze e meia. Teremos um intervalo para as notícias oferecidas pela Wildwood Records e voltaremos em seguida com dois sucessos de Steve Winwood e Phil Collins. Esta é a KHIP, a rádio número um no coração do Colorado.
Quando Potter voltou, encontrou-a de pé, estirando-se para pegar uma fita na prateleira enquanto dançava ao ritmo de uma canção. Detendo-se do lado de fora, ele a observou ondular os quadris e sorrir para si mesma num momento de descontração.
Distraída, ela não o ouviu entrar e assustou-se quando ele pousou uma das mãos em seu ombro.
- Eu lhe trouxe um chá. Você toma muito café. Experimente. Este é de jasmim.
Gina sentiu o coração disparar numa reação que nada linha a ver com o esforço da dança.
- Não bebo água de flor.
- Ora, vamos, prove. Vai ajudá-la a se acalmar.
Ambos olharam para o relógio, que já marcava meia-noite. Aquela tinha sido a parte do programa que Gina mais gostava. No entanto agora, cada telefonema com pedidos dos ouvintes a deixava com os nervos à flor da pele.
- Talvez ele não ligue hoje, já que me telefonou em casa.
- Pode ser.
- Você não acredita nessa possibilidade, não é?
- Acho que devemos nos preparar para enfrentar o que aparecer. - ele disse, sentando-se a seu lado na cabine minúscula. - Quero que se acalme e o mantenha na linha o máximo de tempo possível. Faça perguntas; mesmo que ele não as responda.
Gina bebeu o resto do chá a contragosto e foi franca:
- Há uma coisa que gostaria de saber: por quanto tempo você ainda vai me pajear?
- Não se preocupe com isso. Você é famosa, tem recebido ameaças de morte, e a imprensa já divulgou o caso. Vou ter de fazer-lhe companhia por algum tempo, até que consigamos prender esse sujeito.
O chamado veio, como todas as noites. Ao reconhecer a voz, ela tirou a ligação do ar, tocou uma música para os ouvintes e, numa atitude inconsciente, agarrou a mão de Potter.
- Você é persistente, não?
- Quero vê-la morta. A hora já está quase chegando.
- Por acaso eu o conheço? Afinal nunca tive inimigos ocultos.
Gina fechou os olhos ao ouvi-lo dizer uma série de palavrões e apertou a mão de Potter com mais força. Ainda assim, seguiu o combinado e foi esticando a conversa.
- Puxa, você está mesmo um bocado bravo, não? Ouça, se não gosta do meu programa, é só mudar de estação ou desligar o rádio.
- Você o seduziu. - disse o homem com voz de choro e ódio. - Você o seduziu, o enganou, o iludiu. Depois o matou.
- Eu... - Suas palavras a chocaram mais do que as ofensas de baixo calão. - Quem? Não sei do que está falando. Por favor, diga...
Mas o homem desligou.
Enquanto Gina se recostava na cadeira, absolutamente sem ação, Potter entrou em contato com a polícia:
- E então? Conseguiram? Droga! - E levantou-se. - Precisariam de mais dez segundos para localizá-lo. Ele deve saber que o telefone está grampeado. - Potter assustou-se ao ouvir Nick Peters abrir a porta: - O que foi?
- Eu... eu... - o rapazinho gaguejava. - Mark disse que eu podia vir assistir ao programa. Pensei que Gina quisesse um café.
- Ela avisa se precisar. - respondeu Potter. - Acha que pode ajudá-la a terminar o programa?
- Não preciso de ajuda. - Gina alegou com voz calma. - Obrigada, Nick. - E abriu o microfone: - Essa canção Laurie dedicou ao marido, Chuck com todo amor. - O telefone continuou piscando e Gina atendeu outro telefonema: - Boa noite, qual o sucesso que quer pedir?
De fato, Gina terminou o programa sem problemas e não se opôs quando Potter ofereceu-se para levá-la até sua casa. Ao ver a radiopatrulha estacionada junto à calçada, ela suspirou aliviada, ciente de que Deborah estava bem protegida.
- Vou descer com você.
- Olhe, não é preciso. - retrucou. - Acho que já entendi o que está acontecendo.
Já na sala, ela tirou o casaco, guardou-o no armário c acendeu um cigarro. Potter permaneceu de pé.
- Ah, é? Então, me diga.
- É evidente que esse homem cometeu um engano. Ele deve estar me confundindo com outra pessoa. Só preciso convencê-lo disso.
- E como pretende convencê-lo?
- Da próxima vez que ele ligar, vou obrigá-lo a me ouvir. Potter, pelo amor de Deus, nunca matei ninguém! Só pode ser um engano!
- E quando você lhe disser o que pensa, ele vai parar para raciocinar, concordar, e lhe pedirá desculpas por tê-la incomodado. Gina, esse sujeito está fora de si, não raciocina como uma pessoa normal.
- Então, o que espera que eu faça? - ela revidou revoltada, apagando o cigarro no cinzeiro. - Tenho de fazê-lo entender que está cometendo um erro. Nunca matei nem seduzi ninguém.
- Ora, não me venha com essa conversa.
O comentário foi a gota d’água que faltava para fazê-la perder o controle de vez.
- Por acaso me julga uma mulher falsa e dissimulada? Ou pensa que sou como a aranha viúva-negra, que mata o macho depois da cópula? Não sou nada disso. Tenho uma voz bonita e só. O resto não passa de fantasia.
- Ambos sabemos que não é apenas sua voz que excita os homens, Gina. Ele também sabe.
- Pois saiba que está enganado. Meu ex-marido pode lhe confirmar o que digo.
Ele franziu os olhos:
- Você nunca tinha me dito que já foi casada.
E nem pretendera, Gina reconheceu. A fúria a fez falar mais do que devia.
- Isso foi há muito, muito tempo. Não faz diferença alguma.
- Quero que me dê o nome dele e o endereço.
- Não sei onde mora. O casamento durou apenas alguns meses. Eu tinha só vinte anos, mas parecia uma garotinha de treze.
- O nome, Gina.
- Paul Lomax. Não o vejo há oito anos, desde que nos divorciamos. - Ela caminhou até a janela e virou-se de frente para Potter. - O problema é que esse sujeito está totalmente enganado. Ele diz que seduzi e matei um homem, e ambas as afirmações são falsas.
- Mas ele acha que não.
- Pois acha errado. Não consegui fazer um homem feliz por mais de alguns meses, como seria capaz de seduzir alguém?
- Ora, você está falando bobagens.
- Potter, acha que é fácil para mim admitir que sou um fracasso na cama? - perguntou mordendo o lábio inferior. - O último rapaz com quem saí me disse que tenho água gelada nas veias em lugar de sangue. Mas nem por isso eu o matei. - E, minutos depois, admitiu com um sorriso: - Porém, cheguei a pensar no caso.
Potter riu, mas logo reassumiu o tom sério:
- Acho que já é hora de você encarar este caso e a si mesma com mais seriedade.
- Eu me levo a sério.
- Profissionalmente, sim. Sabe desempenhar seu trabalho com perfeição. Já pessoalmente... Você foi a primeira mulher que conheci capaz de admitir que não consegue seduzir um homem.
- Conheço meus limites.
- Acho que isso é sinal de covardia.
Ela ergueu o queixo:
- Ora, vá para o inferno!
Mas Potter não se deixou abater. Precisava fazê-la ver que estava enganada.
- Acho que você tem medo de se aproximar dos homens, medo de se descobrir. Talvez descubra algo que não consiga controlar.
- Ouça: agradeço seus conselhos, mas dispenso-os, sim? Seu dever é me proteger desse lunático que está me ameaçando.
Gina ia sair da sala, porém Potter a impediu, segurando-a pelo braço.
- O que acha de fazermos uma experiência?
- Experiência?
- Comigo, Gina. Você estaria segura, já que não pode nem ver um policial. Seria um teste em que não correria risco algum. - explicou segurando-lhe o outro braço. Os músculos dela tremiam, e os olhos faiscavam de raiva.
Ótimo. Por motivos que não saberia descrever, ele também estava furioso.
- Aposto dez contra um que não sentirei nada. - acrescentou, puxando-a para mais perto. - Por que não tenta provar que estou errado? - O desafio estava lançado.




Agradecimentos especiais:

Thamis No mundo ........: Que bom que gostou do primeiro capitulo, garanto que a fic é muito legal e cheia de mistério. Beijos.



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