Capitulo 1



Capitulo 1

A voz era sexy, rouca, com um ligeiro sotaque sulista. Perfeita para o rádio. Qualquer cidadão de Denver sintonizado naquela freqüência teria a impressão de que ela falava só para ele.
- Olá notívagos de todo o Colorado. São vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos e vocês ouvem a KHIP, rádio Yankee. Preparem seus gravadores para uma seqüência de cinco sucessos sem interrupção. Aqui fala Gina Weasley, e a seleção é toda dedicada a você.
Seu tom intimista e aveludado tornara-se marca registrada do horário.
Gina apertou o botão do mixador e começou a rodar o primeiro sucesso prometido. Num segundo a música preencheu o silêncio da cabine. Ela poderia ter tirado os fones do ouvido e aproveitado os vinte e três minutos e vinte e dois segundos para descansar, porém, preferia ficar ali ouvindo a canção. Seu amor pela música era apenas um dos fatores de seu sucesso no rádio.
A voz era um atributo natural, um presente de Deus. Com este dom tão especial conseguira seu primeiro emprego numa estação no interior da Geórgia, apesar de não ter nenhuma experiência anterior nem diploma universitário. O dono da rádio, no entanto, ficara impressionado com seu tom cristalino e sua disposição de trabalhar por um salário irrisório. Contratada para o período integral, trabalhava como locutora e servia, ainda, como recepcionista e datilógrafa. Uma espécie de quebra-galho da emissora.
Dez anos mais tarde, várias outras qualificações haviam se somado à voz, formando um vasto currículo. Mas o tom inconfundível e o carisma continuavam a distingui-la.
Com o progresso na carreira, nunca lhe sobrara tempo para obter o diploma em comunicações, que tanto queria. Porém, com empenho e talento aprendera outras funções e era capaz de substituir colegas repórteres, engenheiros de som, entrevistadores, diretores de programação. A memória privilegiada e o gosto pelo assunto lhe conferiam uma capacidade invejável de memorizar títulos de músicas, nomes de cantores, datas de gravações. Havia dez anos seu mundo girava em torno do rádio.
O lado descontraído e envolvente que Gina revelava através do rádio quase nada tinha a ver com sua verdadeira personalidade. No dia-a-dia, era uma mulher dinâmica, organizada, ambiciosa, que nunca dormia mais do que seis horas por noite. Já Gina Weasley, locutora da KHIP, rádio Yankee, era uma garota sexy e misteriosa, amiga das celebridades do mundo do disco, dona de um posto invejado por muitos. Em sua vida particular, não passava de uma mulher comum, trabalhando uma média de dez horas por dia. Fazia de tudo para que a irmã menor cursasse as melhores escolas e havia dois anos não namorava.
Candidatos não faltavam; era uma questão de opção.
Pondo os fones de ouvido sobre a mesa de mixagem, reviu a programação escalada para o bloco seguinte de quinze minutos. Enquanto os dez primeiros sucessos da parada tocavam, a cabine ficou silenciosa. Ali havia apenas as luzes, os painéis de controle e Gina. Era assim que gostava de trabalhar.
Ao assumir o posto na KHIP de Denver seis meses atrás, lutara para ficar com o horário das vinte e duas às duas da madrugada, que normalmente era dedicado aos apresentadores principiantes. Famosa e já contando com dez anos de experiência, poderia ter escolhido qualquer outro horário de maior audiência. Gina, porém, preferia trabalhar à noite e nos últimos cinco anos já se tornara conhecida dos ouvintes do horário.
Gostava de ficar sozinha na cabine, enviando sua voz e os melhores sucessos para os solitários e insones.
De olho no relógio, recolocou os fones e pigarreou. Entre o final da quarta música e a introdução da quinta, deu o prefixo da estação e a freqüência. Depois de uma pequena pausa para as notícias, já previamente gravadas e enviadas por uma agência internacional, começaria sua parte preferida do programa: os pedidos telefônicos dos ouvintes.
Gina gostava de ver os aparelhos se iluminarem a cada toque, gostava de escutar os ouvintes. Eram cinqüenta minutos que passava fora da cabine, convivendo mais de perto com os que a ouviam. Uma prova de que, do outro lado do rádio, havia milhares de pessoas de verdade, comuns, sintonizadas no programa.
Recostada na cadeira giratória, acendeu um cigarro e aproveitou aqueles últimos momentos de silêncio.
Sua calma era apenas aparente. Tampouco fazia o gênero mulher fatal, como poderiam pensar os ouvintes. Era uma pessoa cheia de energia e dinamismo. Não usava maquiagem nem esmalte, alegando falta de tempo. Enquanto fumava e relaxava, mantinha os olhos cor de mel quase fechados. Os cílios longos e curvados eram herança do pai, um sonhador. Os traços fortes e angulosos contrastavam com a pele alva. Os cabelos vermelhos, longos e ondulados, eram normalmente presos ou puxados para trás por causa dos fones de ouvido.
Sempre atenta ao relógio que marcava os minutos transcorridos, apagou o cigarro, bebeu um gole de água e abriu o microfone. No alto da porta, o sinal verde “NO AR” acendeu.
- A seleção que acabaram de ouvir foi para todos os apaixonados que me ouvem, acompanhados ou não. E se você está só, não desanime: saia e vá à procura da sua alma gêmea. Esta é Gina Weasley falando pelo rádio Yankee do Colorado. Volto num instante com o seu pedido.
Ao acionar o comando da fita com os comerciais, Gina olhou para o lado:
- Olá, Nick. Como vai?
Nick Peters, o estudante universitário que atuava na estação como estagiário, ajeitou os óculos de armação escura sobre o nariz.
- Tirei dez na prova de literatura.
- Puxa, que bom! - Gina aceitou a xícara de café que ele lhe ofereceu. - Continua nevando?
- Não, parou há quase uma hora.
Ela assentiu e relaxou. Preocupava-se com a irmã mais nova, Deborah, que às vezes tinha aulas à noite.
- As estradas devem estar péssimas, não?
- Nem tanto. Quer comer algo com o café? - Gina sorriu, preocupada demais para notar o olhar de verdadeira adoração que o rapaz lhe dirigia.
- Não, obrigada. Coma umas rosquinhas amanhecidas antes de ir embora.
No instante seguinte, abriu o microfone e voltou a falar. Nick a observava ler os textos com as promoções dos patrocinadores e as chamadas da estação. Sabia que era estupidez, mas estava apaixonado por GinaWeasley. Considerava-a a garota mais linda do mundo. Perto dela, as colegas da faculdade não passavam de umas bobocas desengonçadas. Gina era forte, sexy, bem-sucedida. E mal notava sua existência. Quando o fazia, era sempre com cortesia e um sorriso amigável.
Havia três meses vinha ensaiando um modo e a melhor hora de convidá-la para um jantar romântico. Mal podia esperar para tê-la só para si, a seu lado, a noite toda. Só os dois.
Gina, porém, nem imaginava o que lhe passava pela idéia. E se soubesse, ficaria muito mais surpresa do que lisonjeada. Nick só tinha vinte e um anos; sete a menos do que ela. Cronologicamente. Porque em termos de maturidade, Nick mais parecia um adolescente. Contudo, ela o admirava por sua eficiência, empenho e dedicação ao trabalho.
Não havia uma noite sequer que ele deixasse de lhe trazer um café antes de ir embora. Era infalível. Nick a servia, se despedia e a deixava só, respeitando seu gosto pela solidão.
Nick olhou para o relógio:
- Bem... Até amanhã.
- Hum? Ah, sim. Boa noite, Nick. - Quando o rapaz cruzou a porta, Gina já tinha a atenção voltada para um dos telefones que começava a piscar. - KHIP, estamos no ar.
- Gina?
- Isso mesmo. Quem fala?
- É Kate.
- Do onde você está telefonando, Kate?
- De casa, aqui em Lakewood. Meu marido é motorista de táxi e trabalha de madrugada. Ouvimos seu programa todas as noites. Eu gostaria de ouvir Peaceful Easy Feeling. Ofereço para o meu marido, Ray.
- Perfeito, Kate. Um abraço para vocês. Obrigada e boa noite. - Outro botão foi apertado: - KHIP, estamos no ar.
A rotina era sempre tranqüila. A cada telefonema, Gina anotava o nome da música e a quem seria dedicada.
O pequeno estúdio com meia parede de vidro era repleto de prateleiras com discos, cassetes e CDs, todos etiquetados para facilitar o acesso. Depois de uma série de telefonemas, entrava no ar um bloco de comerciais, durante os quais Gina pegava os pedidos e os organizava na seqüência.
Alguns ouvintes telefonavam quase todas as noites e, com esses, Gina batia um papo breve. Outros, eram solitários que ligavam apenas para ouvir uma voz do outro lado da linha. No meio desses, aparecia de vez em quando algum lunático maluco ou inoportuno. Ao ouvi-los, Gina, desligava imediatamente. Em tantos anos de programa com telefonemas e ao vivo, nunca houve uma noite monótona.
Adorava aquele contato mais próximo com o ouvinte, a conversa informal, as brincadeiras simpáticas. Ali, protegida pelas quatro paredes da cabine de controle, Gina se permitia uma intimidade maior com estranhos, coisa da qual jamais seria capaz pessoalmente. Quem a ouvisse, no entanto, nunca poderia suspeitar que fosse uma moça tímida e insegura.
- KHIP, estamos no ar.
- Gina.
- Sim? Fale mais alto, por favor. Qual o seu nome?
- Não importa.
- Tudo bem, amigo. - De repente, as palmas de suas mãos começaram a suar, obrigando-a a secá-las na perna da calça. Algo lhe dizia que teria problemas com aquele ouvinte. Portanto, manteve um dedo no botão que cortava a ligação. - Qual música gostaria de ouvir?
- Você vai ter de pagar pelo que fez, sua idiota. Vai ter de pagar. Quando eu tiver terminado, você vai me agradecer por tê-la matado. Você nunca vai esquecer.
Gina ficou paralisada de medo e, maldizendo aquele momento de fraqueza, cortou a ligação quando o tal sujeito começou a falar uma série de palavrões. Respirando fundo, recuperou o controle e manteve a voz inalterada:
- Puxa, tem muita gente mal-humorada por aí. Se é você, sargento Mark, prometo que pagarei aquela multa por ter estacionado em local proibido, está bem? Esta aqui vai para Joyce e Henry.
Gina soltou o sucesso mais recente de Bruce Springsteen e, recostando-se na cadeira, tirou os fones de ouvido. Suas mãos tremiam.
“Boba”.
De pé, começou a retirar das prateleiras os discos com as músicas da seleção seguinte. Com tantos anos de experiência, já não devia mais se perturbar com esse tipo de trote. Todas as noites aparecia, no mínimo, uma chamada dessas, Gina aprendera a se livrar dos engraçadinhos que lhe faziam propostas, dos exibicionistas que falavam obscenidades, e dos bêbados com a mesma facilidade com que mexia nos controles.
Fazia parte da rotina, disse a si mesma. Principalmente em se tratando de uma apresentadora de programa noturno, quando aparece toda sorte de esquisitice.
Porém, surpreendeu-se olhando por sobre o ombro através do vidro escuro da cabine, tentando enxergar o corredor. E não viu nada além das luzes fracas e das suas sombras projetadas no assoalho. Apesar do suéter pesado, começou a suar frio. Estava absolutamente sozinha.
“E a porta da estação está bem trancada”, relembrou enquanto empilhava as músicas já na seqüência certa. O alarme permanecia ligado a noite toda e, caso disparasse, duas viaturas da polícia chegariam em questão de minutos. O lugar era mais seguro que um cofre de banco.
Ainda assim, Gina olhou para um dos telefones que começou a piscar e teve medo.


A neve havia cessado, mas seu cheiro característico pairava na atmosfera fria. Gina gostava de manter uma janela meio aberta e o rádio a todo volume enquanto dirigia. O vento e a música a acalmavam.
Não foi surpresa encontrar Deborah de pé à sua espera. Ao estacionar na passagem lateral da casa que comprara havia seis meses, viu as luzes todas acesas, o que a deixou aborrecida e aliviada.
Aborrecida porque Deborah devia estar preocupada. Por outro lado, era um alívio ver a casa iluminada já que a rua do pacato subúrbio estava praticamente às escuras. Girando a chave no contato, desligou o motor e, em seguida, o rádio. Aquele breve instante de silêncio total deixou-a apavorada.
Revoltada com a própria insegurança, fechou o carro e subiu depressa a escada. Deborah veio recebê-la na porta da varanda.
- Ei, já esqueceu que tem aula amanhã às nove horas? - Gina indagou ao pendurar o casaco no cabide junto à entrada. A sala cheirava a chocolate quente e lustra-móveis. Deborah sempre inventava uma faxina quando ficava nervosa. - O que está fazendo acordada até esta hora?
- Cilla, eu ouvi aquele homem.
- Ora, meu bem. - Voltando-se, Gina abraçou a irmã tão querida. Deborah era uma adolescente ajuizada, estudiosa, mas Gina reconhecia que ainda a tratava como criança. - Quantos telefonemas iguais àquele já recebi! Você sabe, isso acontece.
- Ele parecia bastante ameaçador, Gina. - Apesar de mais baixa, Deborah abraçava a irmã procurando acalmar-se. As duas eram um pouco parecidas, a boca, principalmente. Tinham os mesmos lábios carnudos e sensuais. Os traços de Deborah, porém, eram mais suaves, e os olhos, muito azuis, refletiam sua preocupação. - Você deveria chamar a polícia.
- Polícia? - Como a idéia não houvesse lhe ocorrido, Gina deu uma gargalhada. - Só por causa de um telefonema obsceno? Sou uma mulher moderna, liberada, capaz de me cuidar. Afinal, estamos quase no ano 2000.
Deborah enfiou as mãos nos bolsos do robe.
- Não estou brincando!
- Está bem, está bem. Deborah, eu e você sabemos que a polícia não poderia fazer nada. Foi apenas um maluco que resolveu ligar para uma estação de rádio de madrugada.
A irmã suspirou e deu-lhe as costas.
- A voz dele era horrível, fiquei muito assustada.
- Eu também. - Deborah riu com sarcasmo:
- Você nunca se assusta.
“Isso é o que você pensa.”
- Mas, desta vez, confesso que sim. Fiquei tão nervosa que me atrapalhei com os botões e deixei que a ligação entrasse no ar. - Lapso que certamente lhe custaria uma advertência no dia seguinte. - Mas o tal sujeito não voltou a ligar. O que prova que era apenas um trote. Agora, vá dormir. - pediu, alisando-lhe os cabelos crespos. - Não vai conseguir se tornar a melhor advogada do Colorado se passar as noites em claro.
- Só irei se você for também.
Mesmo sabendo que não conseguiria dormir aquela noite, Gina concordou pelo bem da irmã:
- Combinado.


O quarto estava muito escuro, iluminado apenas pelas luzes de umas velas espalhadas pelos móveis. Ele gostava daquela atmosfera mística, do brilho trêmulo das chamas. Apesar de pequeno, o quarto tinha as paredes cheias de quadros e troféus que ganhara no passado. Na estante, havia flâmulas desbotadas pelo tempo, fitas amassadas, fotos, cartas. Sobre os joelhos, tinha uma faca de caça cuja lâmina refletia as luzes das velas. Ao lado, sobre a colcha de crochê, um revólver calibre trinta e oito automático bem limpo.
Ele olhava para a foto emoldurada em suas mãos e chorava, falava, blasfemava. Aquela fora a única pessoa a quem amara e, agora, só lhe restava uma foto de recordação.
John. Tão puro, tão ingênuo. Iludido por uma garota. Usado, Traído.
Mas não ia ficar assim. Ela ia pagar pelo que fizera. Pagaria até o fim. Antes, porém, ainda ia sofrer muito.


O telefonema, um único, se repetia todas as noites. No final da semana, Gina tinha os nervos à flor da pele e já não conseguia encarar o fato com bom humor, dentro ou fora do rádio. Felizmente, já era capaz de reconhecer a voz, fria, áspera, carregada de ódio, e cortava a ligação assim que a ouvia.
Apavorada, Gina escondia o rosto entre as mãos, consciente de que no dia seguinte ele voltaria a insistir. Os chamados dos ouvintes, que antes lhe causavam tanta alegria, agora a amedrontavam. O piscar dos aparelhos a deixava apreensiva e sobressaltada.
Então, começava a se perguntar o que teria feito para ser alvo de tais ameaças.
Depois de pôr no ar o cassete com as notícias gravadas e os comerciais, às duas da madrugada, correu os dedos pelos cabelos. Seu sono que sempre fora breve e leve, praticamente desaparecera na última semana. A insônia começava a afetar-lhe os nervos, o humor e a capacidade de concentração.
O que teria feito?
A pergunta a atormentava. O que podia ter feito para suscitar tanto ódio em alguém? Reconhecia que, às vezes, era um pouco rude ou impaciente com as pessoas, insensível até. Mas nunca magoara alguém de propósito. Pelo que o tal sujeito queria fazê-la pagar? Que crime, real ou imaginário, teria cometido para despertar tal sede de vingança em alguém?
Pelo canto dos olhos, Gina notou um movimento. Uma sombra maior dentre as outras do corredor. Em verdadeiro pânico, levantou-se depressa batendo o quadril num console. A voz do maníaco, que ligara havia apenas dez minutos, ecoava em sua memória. Lentamente o trinco da porta do estúdio foi girando.
Não havia como escapar.
- Gina?
Com o coração disparado e a boca seca ela soltou o corpo na cadeira maldizendo o próprio descontrole.
- Mark.
- Me desculpe se a assustei.
- Você quase me matou, isso sim. - Com esforço, pousou uma das mãos sobre o peito e sorriu para o diretor da emissora. Mark era um homem de meia-idade considerado lindo pela maioria absoluta das garotas. Tinha os cabelos pretos muito bem penteados com o auxílio de um gel brilhante, um eterno bronzeado e se vestia na última moda. - O que está fazendo aqui a esta hora?
- Precisamos ter uma conversinha sobre esses telefonemas.
- Já tivemos uma reunião há menos de três dias e eu falei que...
- Sim, falou. Não só para mim, mas para todos aqui na rádio.
- Não vou tirar férias. - Gina afirmou virando-se na cadeira para fitá-lo. - Não tenho para onde ir.
- Todo mundo tem um lugar para ir. - Ela ia protestar, porém Mark a impediu. - Não quero mais discutir este assunto. Sei que vou soar arrogante, mas sou seu chefe.
Gina puxou a barra da camiseta.
- O que vai fazer? Me despedir?
Mark não percebeu que ela prendera a respiração. Embora a conhecesse havia alguns meses, não sabia que atrás da aparência de mulher confiante e liberada escondia-se uma garota ingênua. Sob pressão, fatalmente recuaria. Mark, no entanto, apreciava seu trabalho. O programa era líder de audiência e trouxera vida à estação.
- Despedi-la não seria bom para nenhum de nós. - Gina soltou a respiração. - Ouça, estamos todos preocupados com você.
Suas palavras a tocaram e a surpreenderam.
- O tal maníaco só fala.
“Por enquanto”.
Virando a cadeira em direção à mesa de controles, preparou-se para tocar a próxima música.
- Não vou ficar parado de braços cruzados vendo um de meus funcionários ser molestado. Já chamei a polícia.
Gina pulou da cadeira.
- Droga! Mark, já lhe disse que...
- Sim, disse. Não vamos mais discutir, está bem? Você faz parte de meu quadro de funcionários e a considero minha amiga.
Ela tornou a sentar-se, batendo as botas no chão.
- Claro. Espera um momento. - Esforçando-se para se concentrar no que dizia, Gina anunciou o prefixo da estação e o sucesso seguinte, depois, desligou o microfone. - Você tem três minutos e quinze segundos para me convencer.
- É simples: o que este maníaco está fazendo é contra a lei. Já deveríamos ter tomado uma providência, a coisa está indo longe demais.
- Se o ignorarmos, ele desistirá.
- Sua tática não está funcionando. - Mark apoiou uma das mãos no ombro de Gina e massageou-lhe os músculos rijos do pescoço. - Portanto, vamos experimentar a minha. Vou lhe dar duas alternativas: ou fala com os policiais ou tira umas férias relâmpago.
Derrotada, Gina ergueu os olhos e ensaiou um sorriso:
- Você também manda na sua esposa desse jeito?
- Claro. - Mark sorriu e beijou-lhe e testa. - Ela adora homens decididos.
- Com licença.
Gina, assustada, pulou da cadeira e olhou para a porta. O casal ali parado a olhava de modo impassível, com uma frieza profissional.
A moça parecia ter saído das páginas de uma revista de moda. Tinha os cabelos avermelhados caídos pelos ombros e um par de brincos de safira que combinava com o tom de seus olhos. A pele lisa, era como porcelana. Seu tipo era mignon porém sólido, sem nada de frágil, e ela usava um tailleur de estampa suave.
O homem a seu lado parecia ter acabado de sair de uma fazenda. Os cabelos negros e sem corte cheios de reflexos provocados pelo sol, se debruçavam, despenteados, sobre o colarinho da camisa jeans. A calça, de um brim azul mais escuro, era justa nos quadris e nas coxas. Displicente, ele se recostou no batente da porta enquanto sua companheira permanecia ereta, em estado de alerta. Usava um par de botas bem riscadas e um paletó esporte sobre a camisa. Sua fisionomia era séria, contraída.
Gina surpreendeu-se estudando-o mais tempo do que deveria. O moço tinha o rosto magro e uma covinha no queixo. A pele bronzeada lhe conferia uma aparência saudável de quem vivia ao ar livre; a boca era larga e fina. Os olhos, de um verde cristalino, a fitavam intensamente.
- Sr. Harrison. - disse a moça, e Gina notou um brilho divertido em seu olhar quando se aproximou. - Acho que já lhe demos tempo suficiente.
Gina lançou um olhar severo para o patrão:
- Você me falou que tinha telefonado para a polícia, mas eu não sabia que eles estavam esperando aí fora.
- Agora, já ficou sabendo. - Ele mantinha a mão em seu ombro. Só que agora, com o intuito de contê-la. - Esta é a srta. Weasley.
- Sou a investigadora Althea Grayson e este é meu parceiro, investigador Harry Potter.
- Mais uma vez, obrigado por terem esperado. - agradeceu Mark, fazendo-lhes sinal para que entrassem.
O investigador aprumou-se preguiçosamente.
- Eu e o investigador Potter estamos acostumados com este tipo de situação. Agora, gostaríamos de ter maiores detalhes sobre o que vem acontecendo.
- Como já expliquei, a srta. Weasley vem sendo perturbada por uns telefonemas anônimos aqui na rádio.
- Algum desocupado. - acrescentou Gina irritada. - Mark não deveria tê-los incomodado por causa desta bobagem.
- Gina. - Cansado e ansioso por voltar para casa, Mark fez uma careta. - Vamos cooperar, sim? - E voltou-se para os policiais: - Os telefonemas começaram no programa de terça-feira passada. A princípio não demos muita atenção, mas as chamadas vêm se repetindo. A mais recente foi esta noite, à meia-noite e trinta e cinco.
- Você conseguiu gravar?
Althea Grayson tirou do bolso o bloco de anotações.
- Depois do terceiro telefonema, comecei a gravá-los. - disse Mark, e Gina arregalou os olhos, admirada. Ele, no entanto, deu de ombros. - Sabem como é, achei melhor nos precavermos. As fitas estão no meu escritório.
Harry meneou a cabeça.
- Pode ir, Althea. Enquanto isso, vou anotar o depoimento da srta. Weasley.
- Por favor, coopere, sim? - Mark pediu a Gina antes de sair acompanhado por Althea.
Aproveitando a pausa, Gina apanhou um maço de cigarros todo amassado, tirou um e o acendeu com gestos nervosos. Potter encheu os pulmões com a fumaça. Parara de fumar havia seis meses, treze dias e doze horas.
- Fumar faz mal para a saúde. - ele comentou.
- Eu sei. - Gina soltou outra baforada e o estudou. - Quer meu depoimento?
- Sim.
Curioso, ele esticou a mão para mexer num botão da mesa de controle. Automaticamente Gina deu-lhe um tapinha nos dedos:
- Tire as mãos daí.
Potter achou graça.
Ela pegou a primeira fita da pilha e introduziu-a no toca-fitas. Abrindo o microfone, fez um breve comentário sobre a música que terminava, deu o prefixo da estação e anunciou a seleção seguinte.
- Vamos logo, porque não gosto de companhia enquanto trabalho.
- Você é bem diferente do que eu imaginava.
- O que disse?
“Diferente mesmo”, ele pensou. “Para melhor.”
- Já ouvi seu programa algumas vezes. - comentou à vontade. Na verdade, já a ouvira muitas vezes. Já perdera diversas horas de sono ouvindo aquela voz sensual e envolvente, que incitava fantasias deliciosas. - Eu a imaginava alta. - E mediu-a com o olhar desde os cabelos ondulados, passando pelas curvas até o bico das botas. - Acho que nisso, acertei. Mas pensava que você fosse loira, os cabelos compridos até a cintura, os olhos azuis, personalidade... vibrante.
Potter riu diante da expressão de aborrecimento que viu nos olhos de Gina. E que lindos olhos castanhos. De fato, a realidade superava em muito a fantasia.
- Sinto tê-lo desapontado.
- Eu não falei que fiquei desapontado.
Gina deu uma longa tragada no cigarro e soltou lentamente a fumaça na direção de Potter. Tinha bastante prática em se livrar de homens inoportunos e desencorajar os mais audaciosos.
- Afinal, você quer ou não quer maiores detalhes sobre o que vem acontecendo?
- E para isso que estou aqui. - Potter pegou um bloco com um lápis no bolso do paletó. - Pode falar.
Com frases curtas e voz controlada ela explicou cada telefonema em detalhe, citando as datas e as mensagens. Enquanto falava, trocava os cassetes no toca-fitas, soltava uma seqüência de comerciais e selecionava novas músicas.
Potter anotava tudo, admirado com sua memória. Certamente poderia conferir tudo nas gravações, mas acreditava que teria muito pouco a acrescentar. Pessoas assim facilitavam seu trabalho.
- Há quanto tempo a senhorita está em Denver?
- Aproximadamente seis meses.
- Já fez algum inimigo?
- Não. Só me lembro de ter batido a porta na cara de um vendedor insistente que queria me vender uma enciclopédia.
Potter observou-a por entre os cílios. Ela tentava encarar o assunto com naturalidade, mas nem bem apagara o cigarro e já começava a roer as unhas das mãos.
- Terminou algum relacionamento amoroso?
- Não.
- Tem namorado?
Mais uma vez ela se irritou:
- Você é investigador. Descubra sozinho.
- Eu descobriria se fosse uma questão pessoal. - Potter voltou a fitá-la de modo tão penetrante e sensual que as mãos de Gina começaram a suar. - No momento, só estou cumprindo meu dever. Rejeição e ciúme são responsáveis por muitos casos como este. De acordo com o que acaba de me contar, os comentários desse tal sujeito sempre se referem à sua vida sexual.
Gina admirava e cultuava a sinceridade, mas se recusava a revelar-lhe que não tinha aquilo que ele chamava de vida sexual há muito tempo.
- Não estou envolvida com ninguém no momento.
- Ótimo. - ele afirmou e, sem erguer os olhos do papel, acrescentou: - Esta foi uma observação pessoal.
- Olhe aqui, investigador, eu...
- Calma, calma, srta. Weasley, foi só um comentário e não um convite. Estou aqui a serviço e preciso de uma lista com os nomes dos homens com quem manteve um contato pessoal nos últimos tempos. De seis meses para cá, digamos. Não precisa incluir o vendedor de enciclopédias.
- Não mantive contato pessoal com nenhum homem, nem pretendo manter.
- Nunca ninguém lhe disse que o desejo não precisa ser recíproco? - “Como o que sinto por você, por exemplo.”
De repente, Gina sentiu-se abater por um cansaço súbito e inexplicável. Então, correu as mãos pelos cabelos e reuniu a pouca paciência que lhe restava.
- Ouça: não é preciso ser muito esperto para saber que esse homem se apaixonou pela minha voz. Ele nem me conhece; provavelmente nunca me viu. Não passo de uma imagem que ele criou. Isso é muito freqüente na vida das pessoas que trabalham no rádio. Não fiz nada para provocá-lo.
- Eu não disse nada. - Potter falou num tom calmo e tranqüilo que a levou às lágrimas.
Furiosa, ela lhe deu as costas. Só podia ser cansaço, dizia a si mesma.
“Que garota valente”, pensou Potter. O modo como curvava as mãos à cintura procurando conter as emoções era muito mais sexy e tentador do que qualquer suspiro desolado.
Sua vontade era aproximar-se e dizer-lhe algo que a confortasse, acariciar-lhe os cabelos. Mas Gina lhe daria uma mordida na mão se tentasse se aproximar.
- Quero que pense calmamente no que fez nos últimos meses e veja se encontra algo, um acontecimento banal, que seja, que pudesse provocar tal reação no autor dos telefonemas. - Ele readquiria o tom frio e impessoal do começo. - Não podemos convocar todos os homens de Denver para averiguações. Não é assim que trabalhamos.
- Sei muito bem como é que a polícia trabalha.
Potter franziu os olhos diante daquelas palavras amargas.
- Acha que conseguiria reconhecer a voz dele se a ouvisse de novo?
- Claro.
- Há algo de familiar na voz ou no modo como ele fala?
- Nada. Ele fala baixo e de um modo... sibilante.
- Você se incomodaria se eu voltasse amanhã à noite durante o programa?
- Muito.
- Bem, então vou ter de falar com seu chefe. - Revoltada, ela pegou o maço de cigarros, mas Potter segurou-lhe a mão. Gina fitou os dedos longos que se entrelaçavam aos seus e sentiu o coração disparar. - Deixe-me cumprir minha missão, Gina. Será mais fácil para todos se você permitir que eu e Althea tomemos conta de tudo.
- Ninguém toma conta de mim.
- Então, ouça o que digo. - Antes que ela pudesse detê-lo Potter esticou o braço e prendeu-lhe uma mecha de cabelo atrás da orelha. - Vá para casa e descanse bastante.
- Pode deixar, sei me cuidar muito bem.
Apesar das reclamações, Gina não conseguiu dissuadi-lo da idéia de esperá-la terminar o programa e acompanhá-la até o carro, fechando as janelas e trancando as portas.
Instantes depois da partida de Gina, Althea se juntava a Potter no estacionamento.
- E então? - perguntou, pousando uma das mãos no ombro do parceiro num gesto cheio de companheirismo. - Qual o veredicto?
- Ela é valente, fechada e teimosa. - Potter falava pensativo, as mãos enfiadas nos bolsos. - Acho que é um caso de amor.




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