Primavera Antecipada



A passos duros, quem me escutasse saindo das masmorras com as faces coradas, narinas tremendo e lábios quase sem cor provavelmente não iria ousar colocar-se no meu caminho. A força que empregava contra o chão era quase como se quisesse me enterrar ao abrir a terra abaixo, minhas mãos suavam dentro dos bolsos e aquela primavera antecipada estava me deixando com uma alergia que nunca tive antes.

- Vai ver a sua nobreza não a impede de ter alergias... – zombou Joey ainda no começo daquele maldito sábado que eu ainda não sabia querer ter motivos para fazer chover ácido sobre Hogwarts.

Especialmente as torres. Grifinória não, mas definitivamente Corvinal. Os azulzinhos inteligentes e bonitinhos, bons no quadribol, mas que sempre perdiam com dignidade para os Grifos. Amaldiçoados fossem todos.

Talvez no meu sexto ano eu ainda não tinha me imposto o suficiente para deixar calo que ninguém tem o direito de aprontar com um Black, e era por isso que eu cuspia fogo.

Não sabia ao certo aonde ir, e provavelmente aproveitando a minha condição de monitora saí empunhando a varinha e escancarando todas as portas do segundo andar. Berta Jorkins arregalou os olhos e saiu correndo deixando para trás um rapaz de sorriso brilhante extremamente constrangido, um insignificante que zanzava pela sala comunal da Sonserina intimamente desejando que Cisa lhe lançasse um olhar sequer.

Um trovão iluminou uma placa de latão que indicava os números 22 no momento em que lancei um ‘bombarda’, audível por quase todo o corredor, explodindo a porta em mil farpas e estacas de madeira.

Uma silhueta virou-se assustada na minha direção.

- Black?

Encarei aqueles olhos verdes, amarelos e castanhos, ou o que quer que fossem, com tanta raiva que sentia arrepios nervosos por toda a espinha.


--//--

- Hey, Andrômeda, o que você vai fazer esse fim de semana? – ele disse depois de ter guardados todos os quase sete escabrosos livros na sua mochila surrada.

- Eu? Semana que vem é dia de visita à Hogsmeade, não?

- Sim.

Desviei os olhos discretamente do pergaminho que terminava as anotações de História da Magia e fitei os seus certeiros e curiosos orbes esquadrinharem meu rosto. Ainda mantinha a pena carregada de tinta sobre o pergaminho, e não notava o enorme borrão que manchava de preto meu trabalho.

- Vou à Hogsmeade, suponho.

Ele piscou e deslizou as mãos para baixo da mesa ansioso.

- Gostaria de me acompanhar até a Dedos de Mel?

Minha garganta havia congelado com o frio não habitual da época e mentalmente agradeci o fato de estar sentada, pois os joelhos fraquejavam tanto que me trouxeram a certeza de que se estivéssemos conversando em pé, provavelmente eu teria caído. Meu cérebro processava lentamente a frase até que de lá não conseguisse extrair nada que fosse coerente.

- Dedos de Mel? – repeti.

- É. Eu sei que você não poderia ser vista com um sangue-ruim no Três Vassouras, ou provavelmente seria deserdada... A Dedos de Mel está sempre cheia, de maneira que não iriam notar um inseto medíocre como eu. – riu-se fazendo caretas que, creio, queriam imitar as minhas ao pronunciar aquelas palavras.

Baixei o rosto quente para as folhas espalhadas.

Ele não poderia. Não iria nunca... Não eu.

Ele estava muito calmo para alguém que está convidado outro para um encontro. Quando meus lábios se tornaram uma tórrida visagem do deserto foi que percebi que meu corpo todo tremia, à exceção das minhas mãos.

E como reagiriam se descobrissem que um Black fugira quando alguém tocou-lhe em uma ferida invisível?

E como seria digna do meu tão estimado nome se dissesse ‘não’, dando-lhe assim uma vitória moral?

- Ok. – respondi voltando às anotações.


Em meus delirantes sonhos durante a semana poderia ver-me como uma guerreira que, depois de um primeiro momento de terror absoluto, torna sua espada contra o peito do ousado dragão perfurando-lhe o peito.

Uma vez, Ted Tonks apareceu na sala com um livro intitulado “A Mitologia vista através das lentes deturpadas da sociedade trouxa”.

- Esse livro é da Seção Proibida! Precisa de autorização para pegar livros de lá. – apontei chocada.

- É, eu sei.

- E qual professor fez esse favor para você. – perguntei jogando o cabelo para trás. Não era assim tão fácil conseguir livros proibidos da biblioteca, e os professores não assinavam qualquer coisa, além de precisar driblar o mau-humor recorrente da distinta bibliotecária.

- Nenhum. Mme. Pince é uma senhorita muito agradável...

Arqueei as costas incrédula, de súbito minha antipatia pelo maldito abutre empalhado que tomava conta da biblioteca atingiu um nível que não antes imaginava.

Contou a história da princesa, amaldiçoada pela vaidosa mãe, obrigada a servir de sacrifício ao Deus dos Mares. Princesa esta chamada Andrômeda, aliás.

Lembro-me de tentar não parecer curiosa e investi em uma expressão de educado tédio enquanto ele, excitado com a idéia de existir de fato um mito trouxa com o meu nome, me contava os detalhes ínfimos do derradeiro momento em que ela finalmente se casa com o jovem herói.

- Tocante. – respondi ao seu olhar.

- Vai me dizer que não achou, no mínimo, curioso?

- É... – pausa para um desleixado piscar de olhos enquanto simulo um bocejo do escorregar da cabeça pela mão -... É uma história bem previsível.

- É o nome da sua tão querida constelação. E talvez você não tenha percebido que é o desenho de uma mulher acorrentada... – respondeu irritado passando as mãos nervosamente pelo cabelo.

- Ela está acorrentada por um bem maior. Seu sacrifício denota a pureza de espírito e generosidade.

- Não. Denota burrice e submissão cega. Por que ela deveria pagar pelas heresias da mãe?

- Ted, eu não vou discutir esse assunto com você. – e antes que tivesse percebido já havia tocado a minha varinha em cima da mesa.

Ele, que há pouco se levantara, mirou-me e suspirou cansado ao sentar-se.

- Vocês, os Black, são pessoas estranhas...

Desde então, sempre que me encontrava com dificuldade em executar algum movimento de Transfiguração, ou quando desafiávamos nossos conhecimentos em DCAT, Ted gritava provocativamente: “Quebre suas correntes, Andrômeda!” E tinha algo de tão engraçado no seu tom de voz que eu não conseguia ficar brava.

“Quebre suas correntes, Andrômeda!”

Bordão que passei a repetir mentalmente, rindo de mim mesma ao solucionar algum problema que superava minhas limitações.

- Que disse? – perguntou Bellatrix ao sentar-se ao meu lado na sala comunal, quando só depois de percebi que o fogo da lareira já era extinto, e notei sua presença.

- Besteira. – adiante-me fechando os livros e escorregando o lápis rapidamente para dentro da mochila.

- O que vai fazer amanhã?

- Amanhã? – fitei seus olhos com pupilas dilatadas e curiosas – É dia de visita à Hogsmeade. Então visitar Hogsmeade, acredito.

Ela congelou sua expressão por dois segundos e depois voltou a mim com um tom ligeiramente casual.

- Sabe, preciso estudar Feitiços para os NIEM’s... E estava pensando se você não poderia me ajudar.

- Eu? – um espasmo e minha voz ficou mais aguda – Mas... mas eu pensei q você tinha uma facilidade absurda em Feitiços. Quer dizer, o Professor Flitwick sempre disse isso.

- Você não quer me ajudar?

Bellatrix usava seu tom mais incisivo e ousado, e me causava estranheza que ela pedisse minha ajuda para estudar Feitiços, até porque nunca me pedira ajuda em praticamente nada que sua habilidade com a varinha não resolvesse.

Fiquei estática por alguns segundos imaginando como poderia resolver isso sem que precisasse ser exatamente no dia da visita à Hogsmeade.

- Precisa ser amanhã?

- Por quê? Você tem alguma coisa importante para fazer?

Mordia meus lábios enquanto ela cruzava os braços.

Lúcio era excelente em Feitiços, ouvia dizer que eles competiam entre si pela posição de melhor duelista. Seria a oportunidade perfeita para ela mostrar que sabia mais, e ele não recusaria. Os Malfoy também não recusavam desafios.

Os segundos em silêncio pareciam ficar bem menos confortáveis a medida que Bella estreitava os olhos, e quando comecei a perceber que ela não me deixaria ir sem que eu tivesse uma razão sólida, de acordo com os seus princípios de importância. E eu já não conseguia adivinhar o que Bellatrix estava colocando como prioridade.

- Não, claro que não.

- Perfeito. – e com um farfalhar da sua capa escutei-a ir embora.

Naquela noite saí para patrulhar os corredores sem a menor intenção de fazê-lo, e quando me aproximei da sala da monitoria dei uma rápida olhadela para os lados, pela certeza de que não seria interrompida.

Era de comum conhecimento que corvinais gostavam de deixar a sala da monitoria organizada, os relatórios seriamente analisados quantas vezes fosse necessário. E eu sabia que Ted Tonks era uma rara exceção nesse meio, e que enquanto os monitores “normais” costumavam levar duas horas para realizar todas as tarefas, ele levava quatro. Geralmente porque se dispersava por qualquer motivo, ou porque achava alguma detenção tão interessante que perdia muito tempo para fazer o que realmente era preciso.

Abri a porta e percebi que minha lógica estava realmente certa.

- Hey, patrulhando os corredores? Pensei que os seus fossem da Ala Oeste...

- E são, vim aqui porque preciso falar com você.

Ele empurrou a gaveta metálica do arquivo e ela se fechou com um estrondo amassando todas as folhas que estavam em cima, que suponho que ele não tivesse notado.

- Sobre? – perguntou ao sentar-se e apontar para que fizesse o mesmo. Preferi por continuar em pé, e próxima à porta.

- Não vou poder ir à Hogsmeade amanhã...

Curiosa foi sua reação, ao que eu percebi um simples estirar de olhos descontraído. Talvez imaginasse que ele se expressaria diferente, gritaria ou me acusaria ou qualquer coisa que levasse mais carga de emoção.

- Se você não pode, você não pode. – disse levantado da cadeira rapidamente e juntando seus livros debaixo dos braços.

- Você não quer saber por quê?

- Não. Tenho certeza que você teria uma ótima justificativa... – e não me olhava ao dirigir a palavra, o que eu não compreendia se era raiva ou se estava me ignorando deliberadamente. Seu risinho sarcástico açoitava meu cérebro e fazia querer com que eu batesse sua cabeça na parede.

- Tonks...

- Está tudo bem Black. Sério.

Mas não parecia bem. E definitivamente aquela não era uma boa hora para uma certa monitora irromper a porta às minhas costas.

- Ops... Atrapalho?

- Não Daphne... na verdade a senhorita Black veio só buscar alguma coisa que não encontrou... – respondeu Ted naturalmente. E fechou os olhos, e sorriu para ela.

Permaneci em silêncio consumindo e controlando a minha raiva.

Era aquele tipo de sorriso que usava para disfarçar uma situação desconfortável, e uma mão invisível estrangulava minha garganta de fúria ao perceber que eu não era a única pessoa que sabia disso. Porque logo depois a voz dela se tornou evasiva, hesitante e disse por fim que faria os relatórios no outro dia, depois de desculpar-se duas ou três vezes por nada.

Não me interessava que Joey dissesse que ela tinha se tornado muito melhor desde aquela fatídica época, que na realidade era bem sensata e por vezes muito prestativa. Ignorava também que tivesse percebido realmente confusão na sua voz, e que não tinha feito nada demais a não ser entrar pela porta na hora que não deveria. Escondi bem no fundo das minhas memórias que um dia derrubei meu lápis na aula de Transfiguração e ela gentilmente apanhou, sem fazer perguntas do porque eu estaria usando um lápis, e nem sequer comentar com alguém.

Daphne Turpin era uma pessoa detestável.

Ted saiu alguns minutos após ela dizendo o seu costumeiro: “A gente se esbarra...”

Amanheci com alergia da primavera antecipada em alguns dias. E pode até que estivesse um tanto febril quando Cisa voltou de Hogsmeade seguida de perto pelos olhos fascinados de Lúcio Malfoy, que reparava até mesmo nas pontas do seu longo cabelo quase prateado iluminando o escurecer da gélida sala comunal da Sonserina.

Malmente escutava sua voz controlada e risonha, mas foi somente quando Lúcio passou por ela e resvalou no seu cotovelo foi que percebi que minha Narcisa não me escutaria mais.

-... e então saíram juntos do correio. Acredita? – continuou ela em tom de fofoca para as Anns que reprimiam quem quer que fosse com um sorrisinho desdenhoso. – Quer dizer, a Senhora Turpin ficara absolutamente desolada. Penso que ela acreditava que aquilo era uma fase passageira, essas coisas de rebeldia...

- Cisa, por que os Turpin ficariam arrasados?

- Oh Andy, faz horas que conto que a filha mais nova voltou a namorar um sangue-ruim!

Aos primeiros instantes senti meu sangue congelar. O que me dominou depois foi uma fúria tão incontrolável quanto as piores tormentas em alto-mar.


--//--


- No que é que você estava pensando? – vociferei apontando minha varinha diretamente para a garganta do meu alvo.

Ted Tonks permanecia confuso e parado, e eu não conseguia acreditar que ele fingisse que não sabia do que eu estava falando.

No chão jazia um pequeno pacote embrulhado em papel festivo, que ele havia se abaixado para pegar. Provavelmente caíra de suas mãos com o susto.

- Black? Aconteceu alguma coisa?

- Eu quem deveria perguntar isso! Você, seu imundo, pensou que poderia fazer-me de idiota. Talvez achasse divertido mostrar aos seus amigos... Você é o ser mais desprezível de toda a face da terra!

Da minha boca saiam palavras mal-articuladas que fluíam no ritmo do meu pensamento. Qualquer coisa que eu acreditasse que poderia o ofender de alguma maneira era usada. E reutilizada em um espaço muito curto de segundos e com uma freqüência que impressionaria.

Se minha mãe tivesse escutado um terço dos primeiros dois minutos que passei apontando minha varinha para o semblante absurdamente estático em minha frente, provavelmente teria cortado minha língua se conseguisse entender.

Ao que eu terminei ofegante e corada ele arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos nos bolsos.

- Menina, você tem sérios problemas. – disse calmamente.

Sua maneira insolente costumava me causar um riso desdenhoso, entretanto minha razão já não era dona do meu corpo e dos meus movimentos. Ou talvez fosse, e por isso lancei um feitiço qualquer com tal violência que meu indigesto oponente, que não oferecera qualquer resistência, voou pela sala e bateu com as costas na parede oposta.

Sacou a varinha e começamos a duelar.

Ou quase isso.

Eu duelava. Tonks se defendia, embora eu quisesse acreditar que era por causa da minha habilidade, minha mente não se deixava enganar tanto.

Assim que lhe foi possível um simples ‘expelliarmus’, muito bem verbalizado, tirou a varinha das minhas mãos. Ao que não me senti completamente satisfeita até que estivesse a três passos e desferisse uma seqüência alucinante de tapas e pontapés, para que ele finalmente segurasse meus braços com uma controlada violência e prendesse-me contra a parede para que finalmente parece de chutar suas pernas.

Via raiva pura nos seus olhos, e dessa vez ele não tentava disfarçar, pequenas gotas de suor escorriam pela sua testa e sua boca se contorcia em um instinto que parecia querer aterrar seus dentes na minha garganta.

Tudo o que mais queria era humilhar Ted Tonks para que ele nunca esquecesse, e logo após virar as costas para nunca mais notá-lo.

E de alguma maneira acreditei que me aproximando do seu rosto, e perdendo completamente o controle sobre minha mente ao pressionar meus lábios contra os seus, seria algo realmente injurioso.

Ele não respirou quando abri os olhos e percebi que tinha minha boca sobre a sua. Eu também não.

Foi quando ele soltou meus braços que notei que ele tremia tanto quanto eu.

Um desespero mortificante assomou meu peito e tomou o lugar que, há pouco, era excitação furiosa. Via-o movimentar a boca sem conseguir pronunciar nada em absoluto, meu rosto tornara-se gelado logo após corar. Das pontas dos meus dedos escorria um suor frio.

Ted recuou dois ou três passos tentando gesticular com as mãos, mas não fui capaz de saber se havia conseguido ou não.

O sangue fluiu em minhas pernas e um medo descomunal as fez correr mais do que rápido do que pudesse imaginar. Em incalculáveis segundo eu entraria correndo pela sala comunal, e a despeito dos conhecidos, correria para o dormitório feminino do sexto ano e me trancaria no banheiro até o amanhecer.

Quando acordei estava na Ala Hospitalar olhando para a nauseante cor bege do teto.

- Que houve?

- Tivemos que arrombar a porta do banheiro hoje de manhã. Você se trancou lá ontem de noite e desmaiou. – respondeu Bellatrix com uma voz entediada.

Os dias seguiram de arrasto até o final do mês, enquanto eu evitava o Salão Principal, corredores inóspitos e principalmente o segundo andar.

A proximidade do meu aniversário não me trouxe a conhecida eletricidade nos meus olhos, Cisa disse isso na tarde em que Madame Pomfrey me liberou para freqüentar as aulas regularmente.

Em uma semana seria completamente maior de idade, já sabia aparatar e tinha uma relevante bagagem de conhecimento. E mesmo assim uma inquietação agonizante pesava sobre meu peito.

A cada corredor que dobrava um sobressalto. O frio na espinha, as mãos tremiam, o coração acelerava a ponto de bater em minha garganta. E não era ele, e eu podia respirar aliviada por mais alguns segundos até que precisasse dobrar o corredor seguinte, ou passar pelas portas fechadas que insistiam em abrir de repente.

Joey questionou por uma semana o porquê de trocarmos de lugar, e sentarmos nas primeiras cadeiras na aula de McGonagall. Respondi que minha vista estava ficando prejudicada, e que provavelmente precisaria usar óculos, e então ela perguntou por que eu não comprava um. Gesticulei vagamente e apontei para o quadro e disse que ainda não tinha visto aquela matéria.

Lutava para desviar meus pensamentos de qualquer coisa que lembrasse ele.

Era uma tarde atipicamente nublada, duas semanas após o fatídico dia em que meu cérebro cismava em trazer detalhes. Havia decidido não ir à aula de Runas Antigas e aproveitando minha uma privacidade que não tinha quando as Ann’s ou minhas irmãs estavam por perto, escondi-me em baixo da cama.

Aquela superfície poeirenta, desigual e fria parecia acariciar meu rosto como as mãos rudes de Tia Cassiopéia que coçava as orelhas das suas dezenas de gatos. Era estranhamente reconfortante não precisar de lençóis de linho, ou travesseiros macios para poder sentir-me mal. E existe algo de acolhedor na tristeza sem escrúpulos. Perceber a fragilidade das minhas convicções partindo-se em milhares de pedaços, como os cristais tão estimados da minha mãe.

Uma única lágrima desprendeu-se dos meus olhos e escorreu pelo canto direito até que finalmente atingisse o assoalho, e poderia jurar que escutei os cristais se quebrando. As costas cobertas apenas por uma camisa fina adormeceram com frio que não fiz questão de aplacar. Ao acordar resvalei meus pés em uma tábua aparentemente solta no chão.

Corri para meu baú que ficava ao lado da cama e abri um compartimento que tinha forjado com o simples intuito de guardar meus pertences da curiosidade alheia, de lá tirei todo meu estoque de lápis, borrachas, apontadores, bilhetes engraçados, anotações e qualquer coisa que citasse Ted Tonks. Lendo e relendo esses pergaminhos, notei que costumava acrescentar um nada de informação sobre ele. Que tal feitiço ele não conseguia por causa da pronúncia de certa letra, ou a poção que ele costumava torcer o nariz. Juntei tudo e enrolei em uma fronha antes de colocar no espaço vago que a tábua deixara.

Não me senti tão bem quando lacrei a fenda. Pensava que sentiria meu peito mais leve, e finalmente pudesse respirar aliviada, ou dormir mais que três horas seguidas.

Em vão.

Bellatrix, um dia quando éramos crianças, me falou sobre anjos. Aqueles dias que seguiram, orientei o meu para a direção que deveria seguir, mas comecei a suspeitar que ou ela houvesse mentido pra mim, ou o meu era surdo.

- Andrômeda?

- Bella, não estou com disposição para ajudá-la com os NIEM’s, peça para outra pessoa... – respondi secamente.

- Por que você não come? – continuou sentando sem constrangimento na cama ao meu lado.

- Como quando estiver com fome.

- E se não ficar com fome?

- Então eu suponho que você vai dar um jeito...

Fitou-me arrogante. Ela sabia que era verdade. Tudo que não estivesse de acordo com as suas disposições, Bella sabia como lidar. Diria que ela impôs essa responsabilidade para si mesma, mesmo que ninguém precisasse...

Infelizmente não era minha especialidade lidar com essa situação disfarçadamente, e não somente Bellatrix, mas Narcisa também começou a me olhar de maneira desconfiada.

Entendi que não estava paranóica quando Travers insistiu a fazer as rondas noturnas comigo, e a sentar nas aulas que compartilhávamos. E nunca trocamos mais que dez palavras, nunca gostou dos meus modos ou da minha companhia, mas recentemente freqüentava o círculo fechado de conhecidos de Bellatrix.

O que antes era um grupo que se resumia a alta sociedade de Hogwarts, agora se resumia a quatro ou cinco alunos coincidentemente sonserinos, dos quais Bella e Malfoy eram os mais notáveis. Reunidos durante as madrugadas na sala comunal, falando baixo com a lareira apagada, sobressaltavam quando alguém os surpreendia e respondia com uma desculpa teatral antes de voltarem aos seus aposentos.

Por todos os cantos de Hogwarts, sentia os olhos da minha irmã mais velha vigiando meus passos e perfurando minha nuca, não demorou para perceber que seus amigos me olhavam com seus olhos.

Como um enorme fardo a carregar, parei de comer, de dormir e de estudar, mas o que mais gelava meu espírito era o medo de levantar a cabeça e encontrar as faces rosadas de Ted Tonks.

Dois dias antes do meu décimo sétimo aniversário foi a única noite, em muitas durante semanas, em que o caminho da biblioteca estava livre. Após três corredores escuros, um sorriso leve e o aroma de porco defumado lembrou-me que era hora do jantar.

O peso sobre meus ombros já não era tão pesado, meus pulmões conseguiam respirar o ar umedecido da primavera chuvosa. Dois andares e eu estaria de volta ao dormitório do sexto ano...

Dois andares se uma mão candente e certeira não tivesse puxado meu pulso violentamente em direção ao armário de vassouras.


--//--//--
N/a: Será que adianta se eu pedir desculpas pela demora?
Enfim... Feliz Pascoa!

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