Capítulo 9





Até agora já tive três eventos na fazenda. O último foi durante a noite. Senti tamanha dor, uma dor tão dilacerante. Ardia uma vela ao lado da cama. Por um instante, julguei ver um vulto de pé junto à janela. Apenas parado, olhando a noite lá fora. Embora a dor fosse em mim, também estava lá, reverberando naquele vulto. Uma dor compartilhada, mas separada. Pensei que fosse Harry e já ia deixar a cama para ir até ele. Mas ele dormia ao meu lado. E não havia absolutamente ninguém parado ali.
Eu sabia, claro, que eram John e Sarah, e que o filho deles morrera. Sabia disso antes mesmo de Harry se mexer inquieto ao meu lado. Ele sonha, como eu, e sente, como eu, mas não quer falar do assunto. Os sonhos fazem parte de Harry, as pessoas que moraram aqui, que de certa forma continuam aqui. Não apenas pelo sangue, mas pelo espírito. Pergunto-me por que parecem fazer parte também de mim.
Essas coisas o perturbam, por isso não lhe contei. Talvez seja errado. Sem dúvida não é profissional. Mas estou aprendendo que o amor tem seus próprios meios. Eu o amo tanto, e à minha maneira, limitada, gostaria de protegê-lo do que o assombra. Gostaria de saber quais são os sentimentos dele por mim, mas não pergunto. Tenho de proteger-me também. Posso falar com ele qualquer coisa, menos isso. Há sempre tanta coisa a fazer, mas ele parece jamais cansar-se. Quanto a mim, nessa primeira e estonteante onda de amor, percebo que posso passar cada segundo do dia com ele e mesmo assim não ter tempo suficiente. É uma coisa maravilhosa e libertadora, simples, esse amor. Sou muito grata por ter tido a sorte de experimentá-lo.
Se pudesse, eu tomaria um momento, qualquer um de todos que passei com ele, o cristalizaria, conservaria e levaria comigo. Depois, em todos os anos futuros, poderia pegá-lo e não apenas lembrá-lo, mas revivê-lo.
O amor nos proporciona as mais estranhas fantasias.
Hermione ouviu os cachorros latirem, e as vozes. Como uma mulher que esconde um tesouro secreto, salvou o documento e mudou de tela. Rony abriu a porta, seguido pelos meninos, pelos cães e por todo o barulho que os acompanha.
- Desculpe. Eu não pretendia atrapalhar você.
- Tudo bem. - Automática-mente, ela estendeu a mão para alisar os cachorros que vieram cumprimentá-la. - Acabei agora mesmo.
- Luna é exatamente igual a todas as mulheres do condado. Acha que Harry deve estar morrendo de fome. - Pôs um prato no tampo da pia. - Mandou uma torta de maça.
- Está sensacional. - informou Bryan a Hermione. - Comemos um pouco da outra que ela já fez.
Sentindo-se obviamente em casa, ele examinou a geladeira.
- Está escrevendo um livro?
Connor aproximou-se mais devagar, de olho no laptop.
- No momento, não. Você usa computador? - Ele examinava o dela com visível inveja. - A gente tem de usar às vezes na escola. Mas não se parecem com esse.
- Este está carregado. Quer experimentar? - Ele arregalou os olhos.
- Sério? - Olhou para o pai e pôs as mãos às costas. - Não sei como usar esse tipo.
- Não é nada diferente. - Reconhecendo a expressão nos olhos dele, ela riu e tomou-lhe a mão para aproximá-lo. - Eu mostro a você. Já fiz cópia de tudo.
- Agora você conseguiu. - murmurou Rony. - Ele vai querer um desses.
- Eu consigo um usado bem barato para você. - Com um sorriso, ela indicou a sua cadeira. - Sente-se e experimente. Já deve conhecer as funções básicas.
- Claro. - A primeira coisa que ele fez foi digitar o seu nome. Connor Potter.
- Tem algum jogo? - quis saber Bryan.
- Neca. É só um burro de carga.
Perdendo logo o interesse, Bryan pôs o olho na torta.
- Esqueça. - advertiu Rony. - Nós passamos aqui para dar uma mãozinha a Harry na ceifa do feno. - disse a Hermione. - Pode esperar que o resto vai baixar daqui a pouco.
- Oh. - Ela olhou a janela. - Ele está lá, ceifando.
- Enfardando. - corrigiu Rony. - Primeiro a gente ceifa, depois recolhe, depois enfarda.
- Certo.
- Vocês dêem o fora daqui quando acabarem. E não incomodem a dra. Granger.
Ela seguiu-o até a varanda e parou diante da porta.
- Rony, você viveu muito tempo aqui.
- A maior parte da minha vida.
- Já teve alguma experiência incomum? Tipo paranormal? - acrescentou, ao vê-lo dar um sorriso.
- Está perguntando se eu acho que a casa é mal-assombrada? Claro que é.
Ela balançou a cabeça.
- Você diz isso de uma forma tão casual.
- Eu vivi com isso. A gente se acostuma.
- Nem todos. - Ele seguiu o olhar dela até onde Harry passava o trator sobre o feno ceifado.
- Harry é uma mula empacada.
- Foi o que notei.
- E quando se trata disso, tem uma natureza sensível. - Ele tornou a sorrir. - Ele me deixaria com o nariz sangrando por essa. Mas tem. Viveu em uma fazenda toda a vida, mas sofre quando vê um animal com dor, ou perde um. Não toma a coisa como natural. Esta casa tem muita emoção. E isso o afeta.
- Mas ele mora aqui.
- Ele adora esse lugar. - disse simplesmente Rony. - Cada pedra. Você o imagina em algum outro lugar?
Ela tornou a olhar para o campo de feno e sorriu.
- Não, não, não imagino. Eu podia ajudá-lo com o que existe aqui. Se ele me deixasse.
- Talvez pudesse. - Rony deu um suspiro. Acostumara-se a ver as mulheres caírem por Harry, mas era fácil perceber que Hermione era diferente. Duvidava que ela saísse ilesa quando chegasse a hora. - E melhor eu ir dar uma mãozinha a ele.
Ela emitiu um som de concordância, e por algum tempo ficou olhando antes de voltar a entrar em casa. Rony, atravessando o campo, disse que aquilo não era da sua conta. No descontraído ritmo da familiaridade, entrou no passo atrás da enfardadeira. Os dois trabalharam juntos em silêncio até Harry desligar o motor.
- Draco e Neville vão vir?
- Devem estar a caminho.
Harry balançou a cabeça e estreitou os olhos para o céu.
- Vai chover. Só temos mais uma ou duas horas pra botar isso para dentro.
Mas desviou o olhar para a casa e ali ficou.
- Diabos, Harry. - Aborrecido, Rony pegou um lenço e enxugou a testa. - Você está dormindo com ela.
- Quem?
- Não me venha com essa. Já não há mulheres suficientes para correr atrás, sem ficar farejando a amiga de Gina? Ela nem sequer faz o seu tipo.
Harry esforçou-se para conter a explosão de raiva.
- Você sempre disse que eu não tenho um tipo.
- Você sabe do que estou falando. Essa é uma mulher séria. E as mulheres sérias têm sentimentos sérios. Se já não se apaixonou por você, vai se apaixonar. E aí, que diabos você vai fazer?
Ele quase acertou na mosca. Harry sempre tivera o cuidado de impedir que as mulheres se apaixonassem por ele seriamente, de qualquer modo. E sabia que não estava sendo cuidadoso com Hermione.
- Isso é comigo. Comigo e com Hermione. Eu não a forcei a nada.
Para abafar qualquer outro conselho indesejado, tornou a ligar o motor.
Não ia falar disso, nem preocupar-se com o caso, certamente. Pretendia continuar como sempre fizera, e isso significava, no momento, acabar com o feno antes da chuva.
Sentia-se agradecido quando o resto da família aparecia. Significava mais mãos para carregar a carroça de feno, levá-la para o celeiro e descarregá-la. Também significava que todos se viam ocupados demais para interrogá-lo sobre sua vida privada. A pessoa tinha direito à vida privada.
Acalmou-se bastante quando notou que o trabalho acabaria antes da tempestade chegar. E quando viu as crianças brincando no quintal, os cachorros correndo e as mulheres entrando e saindo da casa. Depois, havia o tom tranqüilizante da constante vibração do trator embaixo, as vozes dos irmãos, o cheiro doce e forte do feno. As nuvens que rolavam do oeste sombreavam a montanha, e o trigo do inverno que ele plantara rece-beria a chuva de braços abertos. Na cozinha, alguém estaria cozinhando, pensou, olhando para verificar o progresso da carroça de feno atrás. Não seria Hermione. Ela estaria brincando com um dos bebes. E quando ele entrasse coberto pela poeira do feno, ela ergueria os olhos e sorriria.
Tinha o sorriso mais lindo do mundo.
Quando tiravam os fardos da carroça para o celeiro, Harry convencia-se de que Rony não só errara, mas errara feio.
- E aí? – Draco tirou uma folga e tomou um gole de água gelada tirada da geladeira pouco além da entrada do celeiro. - Não tive uma chance de falar com Hermione. Como vai a caça aos fantasmas?
- Em pleno andamento. - Os agudos talos de feno seco brotaram das luvas de trabalho quando Harry pegou um fardo. - Ela se interessa demais por uma coisa que é apenas um passatempo.
- Ei, algumas pessoas jogam golfe. - comentou Neville, carregando a empilhadeira de feno.
- Pelo menos isso tem um objetivo. Ponha a bolinha no buraco e ganhe o jogo.
- E um quebra-cabeça para ela. - acrescentou Neville. - Ela me parece uma mulher que gosta de solucionar quebra-cabeças.
- Talvez eu compre um para ela. - murmurou Harry.
- Incomoda você, não é? - Sorrindo, Draco voltou a empenhar-se no trabalho. - Ouviu alguém arrastando correntes nos últimos dias. Alguns gemidos incorpóreos?
- Vá lamber sabão.
- Fora isso, como vai indo tudo? - perguntou Neville, com a vaga idéia de desarmar uma discussão. A chuva começava a bater no chão, e ainda tinham trabalho a fazer. - Nenhuma mulher morou na casa desde que mamãe morreu. Está entortando o seu estilo.
Um sorriso curvou os lábios de Harry.
- Neca.
- Bem, diabos. - Vendo o sorriso do irmão, Draco largou o fardo que acabara de pegar. - Você está dormindo com ela.
- Será que eu estou usando um cartaz?
- Não consegue manter o membro dentro das calças uma vez na vida? - Enojado, Draco baixou o gancho de puxar fardos. - Gina se sente responsável por ela.
Culpa e medo apenas inflamaram um temperamento a ponto de explodir.
- Por que diabos alguém iria se sentir responsável? Ela é uma mulher adulta.
- Vai pegar esta última carga aqui? - Gritou Rony da área de depósito em cima.
- Cale a boca. - Harry lançou-lhe uma olhada antes de voltar-se para Draco. - Não é da sua conta. Não é da sua conta.
- Qualquer coisa relacionada com Gina é da minha conta. E Hermione está relacionada. Que sabe você sobre ela? Sabe como foi criada? Como passava o tempo nas salas de aula, com tutores, em internatos?
- Que diferença faz isso? - Irritado porque não sabia, não sabia quase nada, Harry ignorou a chuva, o trabalho, e soltou a frustração sobre o irmão. - Ela tem cérebro, e o usa.
- Foi só o que lhe permitiram usar. Não teria a mínima chance se você desse em cima dela.
- Qual é o problema aqui? - Rony entrou, saindo da chuva. - Vamos botar essa carga para dentro antes que se encharque, ou deixar aí fora mesmo?
- Para trás. - rosnou Harry para Draco. - E fique fora de minha vida pessoal.
Neville deu um suspiro.
- Parece que vamos ter de deixar.
- Estão falando de Hermione? - Agora interessado, Rony arrancou uma espiga de feno e mastigou-a.
- A gente devia ter imaginado que você ia dar em cima dela.
- Eu não dei em cima dela.
- Cascata. Ela mal tinha desfeito as malas e você já estava de tocaia nela em minha cozinha. Eu devia ter-lhe dado uma porrada ali mesmo.
Harry estreitou os olhos.
- Tente agora. Já resolveu tudo, não é? Agora que tem uma bela esposa e belos filhos. Tudo seu. - Por dentro, fervia mais raiva do que ele percebia. - Eu vivo a minha vida do meu jeito, não do seu. Por isso, enfie seus conselhos, suas opiniões e qualquer outra coisa no...
Da janela da cozinha, Hermione observava os quatro homens. Estava intrigada. A princípio, parecia que discutiam alguma coisa séria, algum problema logístico com o feno, concluíra. Depois, parecia que s armava uma briga.
- Tem alguma coisa acontecendo lá fora. - comentou, e Savannah, um bebê apoiado no ombro, foi até a janela.
- Oh, lá vão eles.
- Para onde?
- Se atracar uns com os outros, que mais? - Savannah balançou a cabeça e chamou Gina e Luna, ocupadas no fogão. - Nossos rapazes estão para se embolar.
- Briga? - Chocada, Hermione arregalava os olhos. - Quer dizer que vão brigar uns com os outros? Por quê?
Gina foi até a porta da cozinha e abriu-a.
- É só uma coisa que eles fazem de tempos em tempos.
- Acha que é muito cedo para detê-los? - perguntou-se Luna em voz alta.
- Nós podemos... Não. - concluiu Gina quando se desferiu o primeiro soco. - Tarde demais.
Com olhos horrorizados, Hermione viu o punho de Harry voar e enterrar-se na cara de Draco. Um instante depois, rolavam no chão.
- Mas... Mas...
- Vou ver se temos bastante gelo.
Luna deu as costas à batalha e dirigiu-se à geladeira.
- Por que alguém não os faz parar? - perguntou Hermione. – Neville e Rony ficaram só parados ali.
- Não por muito tempo. - previu Savannah. Como se na deixa, Rony baixou a mão. Se ele pretendia apartar, fracassou vergonhosamente. Agora eram três homens lutando na lama que a chuva criara.
- Isso é ridículo.
Quando Hermione chegou à porta da cozinha, Neville já entrara na briga.
Não via como qualquer um deles sabia quem lutava com quem. Ela certamente não sabia. Via apenas braços, punhos e corpos. Ouvia apenas grunhidos e xingamentos.
Fora do cinema e da televisão, jamais vira de fato ninguém brigar. Era uma bagunça maior do que imaginara, e sem dúvida parecia mais dolorosa.
- Nenhuma de vocês vai fazer nada. São seus maridos.
Savannah subiu e desceu a mão pelas costas de Miranda.
- Podemos apostar algum dinheiro. Ponho cinco em Neville, uma questão de lealdade.
- Cinco, que seja. - concordou Gina. - Luna?
- Tudo bem, mas Rony ficou acordado metade da noite. Ally está na fase de dentição.
- Nada de dar vantagem. E pau a pau. Quer ficar com Harry, Hermione? Parece justo. - Savannah declarou.
Totalmente perplexa, ela encarou as mulheres.
- Vocês são tão más quanto eles. - Endireitou os ombros. - Eu vou parar aquilo, imediatamente.
Quando ela saiu, Savannah lançou um olhar enviesado a Gina.
- Tomando de empréstimo a expressão de Bryan ela está mesmo vidrada nele, não está?
- Receio que sim. Isso me preocupa.
- Acho que ela é boa para ele. - Luna juntou-se a elas na porta.
- Também acho. Os dois precisam de alguém, mesmo que ainda não tenham percebido.
A única coisa que Hermione percebeu ao marchar para o celeiro de feno foi que aqueles quatro adultos, irmãos para provar, eram completos idiotas.
Quando se aproximou do campo de batalha, estava encharcada, os cabelos colados na cabeça como uma touca. Ela sacudiu a cabeça diante da visão com que se depararam seus olhos. Os cachorros haviam entrado na festa, correndo em volta, de vez em quando saltando sobre os corpos que rolavam e depois se afastando com latidos de prazer.
- Parem com isso. - A ordem parou os cachorros, mas não os homens. Fred e Ethel sentavam-se polidamente, línguas de fora, enquanto os homens continuavam, a esmurrar-se. - Eu mandei parar com isso, agora mesmo.
Neville cometeu o erro de olhar para trás ao ouvir a ordem, e levou uma cotovelada no queixo. Retaliou sentando o punho na barriga mais próxima.
Cheia de justa indignação, Hermione pôs as mãos nos quadris. Agora não ouvia apenas grunhidos e xingamentos. Eles riam. Quatro babuínos, ela concluiu, rindo enquanto batiam uns nos outros.
Tinha uma voz que chegava longe, quando necessário. Enchera muitas salas de conferência. Usou-a então.
- Parem com essa bobagem imediatamente! Há crianças na casa!
Rony parou, a mão imunda na imunda cara de Draco.
- Como?
- Saiam daqui, todos vocês. Deviam ter vergonha. - Olhos ardentes, ela escaldou cada um deles por sua vez. - Eu mandei se levantar. - Escolhendo ao acaso, apontou o dedo indignado para Rony. - Você é xerife, pelo amor de Deus. Deve manter a ordem, e aí está rolando na lama feito um vagabundo.
- Sim, madame. - Escabreado, ele engoliu uma risadinha e livrou-se do bolo de membros. - Não sei o que deu em mim.
- E você? - Ela apontou o valente dedo para Neville. - Um advogado. Que está pensando?
- Nada. - Ele esfregou o queixo machucado com a mão, antes de levantar-se - Absolutamente nada.
- Draco Potter. - Ela teve o prazer de vê-lo piscar os olhos. - Um homem de negócios, um pilar da comunidade. Marido e pai. Que tipo de exemplo está dando a seus filhos?
- Um mau exemplo.
Ele pigarreou e levantou. Tinha a sensação de que, se soltasse a risada, ela lhe daria um pontapé.
- E você... - ela disse, com tal desprezo na voz que Harry decidiu continuar na lama. - Eu tinha um conceito melhor de você.
- Ela parece a nossa mãe. - murmurou Harry, e os irmãos assentiram em respeitoso acordo. - Escute, não fui eu que comecei.
- Resposta típica. Simplesmente típica. É assim que vocês resolvem seus problemas, seus desacordos?
Ele limpou um pouco da sujeira do rosto dolorido.
- É.
- Patético. Vocês são todos patéticos. - O olhar autoritário dela fez os três homens mexerem os pés e Harry sorrir. - A violência jamais é resposta. Não há problema que não se possa resolver com a razão e a comunicação.
- Nós estávamos nos comunicando. - disse Harry, e ganhou um olhar de fazê-lo murchar.
- Espero que vocês acertem isso como seres humanos racionais. Se não podem se controlar, vão ter de manter distância uns dos outros.
- Ela não é incrível? - perguntou Harry, em um tom que fez os três irmãos examinarem-no. - Já viram alguém como ela? Venha me dar um beijo, queridinha.
- Se você acha que pode... - Ela soltou um grito quando ele limpou a mão e puxou-a para si. - Seu idiota. Seu desmiolado...
Mas já se estatelara de costas no chão, coberta por um homem molhado e rígido. Ele baixou a boca, trêmula da risada, sobre a dela.
- E a coisinha mais linda.
Tornou a beijá-la, a lama encharcando a sua blusa.
- Saia de cima de mim, seu macaco.
Ela refugou, retorceu-se e deu-lhe um tapa.
- Violência. - Ele tremia de tanto rir, o rosto espancado e cheio de sujeira voltado para ela embaixo. - Estão vendo isto? - gritou para os irmãos. - Ela me bateu. Está resolvendo o problema com razão e comunicação.
- Eu me comunico, sem dúvida.
Raspou com o pulso a orelha dele, antes que ele fundisse a boca na dela. E depois já quase a deixava sem sentidos com beijos. A chuva caía, a lama escorria pelas mãos de Hermione, e havia uma platéia de fascinados espectadores.
Ela simplesmente não ligava.
Olhando, Draco viu-se sorrindo.
- Macacos me mordam. - murmurou. - Ela pegou ele de jeito.
- Acho que você tem razão. - Rony esfregou a face ensangüentada no ombro sujo. - Eu nunca o vi olhar uma mulher desse jeito. Acha que ele sabe disso?
- Acho que nenhum dos dois têm a menor idéia. - Deliciado, Neville tirou os cabelos molhados de cima dos olhos. - E um verdadeiro prazer Ver a queda de Harry Potter.
- Devemos entrar e deixá-los a sós? - Rony inclinou a cabeça enquanto pensava. - Ou devemos arrastá-lo de cima dela e dar mais umas boas nele?
Draco tocou o olho com os dedos. O primeiro soco de Harry fora extraordinário. Ele ia precisar de um pouco do gelo, que tinha certeza de que sua esposa estava preparando.
- Eu não me importaria de dar mais algumas boas nele, mas ela apenas ia começar tudo de novo.
- Acho que não devemos deixá-los aqui fora. - decidiu Neville. - Podem pegar pneumonia.
- Não com todo esse calor.
Com um aceno de cabeça, Rony adiantou-se, e os irmãos o ladearam. Juntos, pegaram braços e pernas e ergueram Harry no ar.
- Soltem, vocês já têm suas próprias mulheres. Esta é minha. - Mas eles o tinham subjugado, e ele só pôde dar um sorriso tolo a Hermione. - Querida, você está uma bagunça. Vamos tomar um banho de chuveiro.
Olhos estreitados, ela se levantou. Sabia que tinha lama em lugares que era melhor não mencionar. Com tanta dignidade quanto possível, limpou as mãos nas calças arruinadas e passou-as nos cabelos imundos.
- Vocês o pegaram? - perguntou calmamente.
- Sim, madame. - Reconhecendo a expressão nos olhos dela, Rony sorriu. - Acho que pegamos.
Harry também conhecia aquela expressão, e tentou libertar-se.
- Vamos lá, querida. Razão, lembra? Violência não é a resposta. Deus, você é tão linda. Eu podia devorá-la todinha. Por que nós não...
Sua respiração saiu em um jato quando ela fechou o punho e assentou-lhe na barriga.
- Boa. - ele disse em voz fraca, depois tossiu e conseguiu inspirar de novo. - Você demonstra verdadeiro potencial.
- Idiota.
Com um safanão da cabeça, ela saiu pingando em direção a casa.
- Ela não é incrível? - Deslumbrado de admiração e dor, Harry continuou a olhá-la. - Ela não é incrível?
No fim, Harry tentou flores. Terminadas as tarefas, comeu-se a ceia e a família seguiu caminhos diferentes, calculou que precisava de uma pequena vantagem. Saiu na chuva, no escuro, e colheu flores silvestres à luz da lanterna. Quando voltou, ela trabalhava no computador. Ergueu o olhar; era um desses olhares frios, assassinos, que ela lhe dirigira a noite toda.
Ele pôs as flores molhadas na mesa ao lado dela e agachou-se.
- Está muito zangada?
- Não estou zangada. - Ela estava constrangida, o que era pior.
- Quer me bater de novo?
- Claro que não.
- Era apenas lama. - Ele tomou a mão dela e levou-a aos lábios. - Ficou bem em você.
Ela haveria puxado a mão, mas ele a mordiscava.
- Estou tentando trabalhar.
- O termo que você usou não foi evitar. - Quando ela voltou a cabeça para fuzilá-lo com o olhar, ele pegou as flores e apresentou-as. - Eu sou louco por você.
Ela soltou um suspiro. Que havia de tão importante na dignidade mesmo?
- Você deve estar louco, para sair em uma noite de chuva e colher flores.
- Sempre deu certo com minha mãe. Você me fez lembrar dela hoje, quando interferiu. Claro que ela teria nos puxado pelo cangote e depois passado o maior sermão. Acho que éramos menores então.
Incapaz de resistir, Hermione cheirou as flores pingando.
- Ela deve ter sido uma mulher e tanto.
- A melhor. - disse simplesmente Harry. - Eles não poderiam ser melhores. Ela e meu pai, bem, eram maravilhosos. Eles estavam sempre presentes, fosse para nos chutar o traseiro ou nos ajudar. - Estendendo a mão, ele alisou com um dedo o rosto dela. - Acho que é por isso que não entendo de fato a solidão.
- As famílias grandes nem sempre são um amortecedor contra ela. As pessoas é que são. - Hermione afastou a cadeira. - E melhor eu pôr as flores na água.
Ela não ia dizer-lhe, percebeu Harry. Não ia falar de suas origens, sua família, a menos que ele insistisse.
- Hermione...
- Por que você estava brigando com seus irmãos? - Ela fez a pergunta rápido, como se sentisse o que ele ia perguntar.
- Coisas. - ele respondeu. Depois deu de ombros. Se queria que ela fosse honesta, também tinha de ser. - Você.
Surpresa, ela se voltou.
- Eu? Está brincando.
- Não foi nada de tão importante. Draco disse alguma coisa para me provocar. Em geral, é só o que precisa. - Aproximou-se, curvou-se para pegar uma fina garrafa velha no fundo da cômoda. - Eles acham que eu estou me aproveitando de você.
- Entendo. - ela disse.
Mas não entendia. Pegou o vaso, encheu-o e começou a arrumar com cuidado as flores.
- Você disse a eles que nós éramos íntimos.
- Eu não precisei. - Ele tinha uma idéia do que ela estava imaginando. Conversa de vestiário, risadinhas safadas e cutucadas com o cotovelo. - Hermione, eu não falei do que há entre nós.
E poderia ter falado, na certa teria falado, percebeu, se se tratasse de outra mulher. Franzindo a testa, foi servir o café que não desejava.
Não saía por aí se gabando sobre suas relações com as mulheres. Mas com os irmãos, certamente faria algum comentário sobre um novo envolvimento. Mantivera para si mesmo seus sentimentos em relação a Hermione.
E não o incomodaria nem um pouco que Draco ou qualquer um dos outros o provocasse ou estimulasse a falar de seus feitos com uma mulher. Mas incomodara com Hermione. Doera, enfurecera-o e...
- Que diabo é isto? - ele resmungou.
- Eu achava que era café.
- Como? - Ele olhava dentro da caneca. - Não, eu estava divagando. Escute, não foi grande coisa. Apenas é assim mesmo. A gente briga. - Deu um breve sorriso. - Batíamos muito mais uns nos outros. Acho que estamos ficando frouxos.
Pensativa, ela levou as flores para a mesa e colocou-as no centro.
- Ninguém brigou por mim antes, sobretudo quatro homens grandes e fortes. Acho que devia me sentir lisonjeada.
- Eu tenho sentimentos por você. - As palavras saíram-lhe da boca do nada. Abalado, ele ergueu a caneca e engoliu o café. - Acho que não me agradou a idéia de alguém pensar que eu tinha forçado você a ir para a cama comigo.
O calor desabrochou dentro dela. Um calor perigoso, sabia. Amoroso. Assegurou-se de falar em voz leve.
- Nós dois sabemos que não forçou.
- Você não estava ao meu alcance. Eu queria você. Fui atrás de você.
- E eu fiz você lutar por mim, não foi?
- Não especialmente.
Mas ele não conseguiu retribuir o sorriso.
- Eu estive sempre ao seu alcance. - disse.
- Está se gabando?
- Não, eu... - Harry se conteve. Exibia alegria nos olhos, e compreensão, e mais alguma coisa com a qual não sabia bem o que fazer. - Acho que o que estou tentando dizer é que vou saber me afastar se quiser repensar a situação, ou pedir um tempo.
Ela engoliu uma desagradável bola de medo. O medo fazia sua voz tremer, e ela desejava que a voz saísse firme.
- É isso que você quer?
Sem tirar os olhos de cima dela, ele balançou devagar a cabeça.
- Não. Parece que ultimamente não quero nada além de você. Só olhar você já me deixa com a boca cheia d'água.
O calor retornou, pulsou, espalhou-se. Ela atravessou a cozinha, ergueu os braços e trançou-os na nuca dele.
- Então por que não faz mais que olhar?



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