Capítulo 5



Capítulo 5

Como era meticulosa, Hermione levou horas para instalar o equipamento de acordo com as especificações. Sensores, câmeras fotográficas, gravadores, computadores, monitores. Luna conseguira dar-lhe uma das maiores suítes por dois dias, e ela tentava ser grata. Mas parecia aprisionador não poder instalar uma ou duas câmeras no andar térreo.
Duvidava que algum dos outros hóspedes recebesse de bom grado uma câmera no quarto onde dormia.
Apesar disso, tinha espaço, além da excitação de ocupar o que fora o quarto de Charles Barlow. As janelas proporcionavam uma linda vista do gramado inclinado da frente, as flores de fins do verão, os silvestres lírios traçando a borda da estrada, e da própria cidade.
Imaginou que o senhor da casa teria apreciado olhar para fora, examinar os topos dos telhados, as chaminés das casas e lojas, o tranqüilo fluxo do tráfego.
Tudo que lera sobre Charles Barlow indicava ter sido o tipo de homem que consideraria seu direito, até seu dever, encarar com desprezo os homens inferiores.
Gostaria que pudesse senti-lo ali, o poder, até a crueldade, dele. Mas nada havia, além de um encantador grupo de quartos, entulhados agora cora a tecnologia que ela trouxera consigo.
Era frustrante. Sabia que cada um dos Potter passara pela experiência de sentir alguma coisa naquela casa, fora roçado pelo que subsistia ali. Por que não ela?
Tinha a esperança de que a ciência a ajudasse, como sempre fizera. Comprara o melhor equipamento apropriado para o manuseio individual, e não ligara para a despesa. Algumas mulheres, imaginou, compravam sapatos ou jóias. Ela comprava máquinas.
Tudo bem, talvez andasse comprando mais na linha de sapatos e jóias nos últimos dias. O dinheiro nunca fora problema, e não parecia que viria a ser no futuro próximo. De qualquer modo, tinha direito ao seu passatempo, disse a si mesma, e enfiou as mãos nos bolsos. Tinha direito à nova vida, à nova personalidade que vinha esculpindo.
A grande maioria dos colegas achou que ela enlouquecera, quando circulou a notícia de que planejava passar o tempo livre estudando. Os pais ficariam profundamente aborrecidos, se ela tivesse reunido a coragem para enfrentá-los com esse novo interesse. Mas Hermione não ia deixar que isso importasse.
Queria explorar. Precisava. Se tivesse de voltar a ser a chata, previsível e totalmente tediosa dra. Granger, aí sim, enlouqueceria.
Mas aprendera uma valiosa lição na noite anterior. Não estava exatamente pronta para lidar com certos aspectos dessa nova vida. Fora convencida, em tudo segura demais, e Harry Potter despedaçara e esmagara a sua segurança. Sabia Deus por que achara que sabia lidar com sexo.
Ele só tivera de pegá-la desprevenida uma vez, e ela ficara confusa, trêmula. Passara algum tempo furiosa com ele por isso, após ter superado o terror que sentira. Mas era analítica demais para culpá-lo por muito tempo. Vestira uma máscara de confiança, chegara até a fazer uma tentativa inicial de flerte. Dificilmente fora culpa dele o fato de ter acreditado na imagem e reagido a ela.
Teria apenas de ser mais cuidadosa no futuro, e repensar o plano de hospedar-se na fazenda. O homem era de cabo a rabo físico demais, atraente demais. Tudo demais. Sobretudo para uma mulher que mal começara a explorar a própria sexualidade.
Sim, seria muito cuidadosa, e não daria muita importância àquelas agudas e intensas necessidades que ele provocara nela, o jeito como caíra com a boca na sua, como deslizara as mãos por sua pele nua. A sensação que tivera ao ser tocada daquela maneira, por aquele homem. Tão íntima. Tão natural.
Soltou uma longa e trêmula expiração, e fechou os olhos.
Não, não ia ficar pensando nisso. Ia divertir-se, começar o trabalho sobre Antietam, fazer planos para o livro que pretendia escrever. E, se a perseverança valesse para alguma coisa, encontrar seus fantasmas.
Transferindo-se para o computador, sentou-se e ligou-o.
Estou instalada agora na Pousada Potter, no que foram os aposentos de Charles Barlow durante o período da Guerra de Secessão. Há outros hóspedes, e interessa-me saber se tiveram quaisquer experiências durante a noite. No momento, tudo é silêncio. Disseram-me que as pessoas muitas vezes ouvem portas batendo, ou o som de choro, até o disparo de uma arma. Esses fenômenos acontecem não apenas à noite, mas também durante as horas do dia.
Gina passou por experiências assim, e Draco. Também constam relatos do perfume de rosas. Essa experiência específica é mais comum. Acho interessante, pois o sentido do olfato é o mais forte.
Em meu breve encontro com Savannah Potter, soube que ela muitas vezes sentiu uma presença nesta casa, e na floresta que circunda a terra. Entendo que ela e Neville sentem uma atração semelhante, que os leva à mata onde os dois cabos se encontraram e lutaram.
E fascinante para mim que pessoas se encontrem uma à outra assim.
Luna e Rony Potter são outro exemplo. Neste caso, eles moraram na mesma cidadezinha a vida toda. Luna se casou com outra pessoa e teve dois filhos, e, pelo que eu concluí, foi um casamento verdadeiramente horroroso. Apesar disso, ela e Rony se reencontraram, e dessa perspectiva de forasteira, parece que sempre estiveram juntos.
Luna e Rony têm histórias para contar sobre a pousada e suas experiências aqui. Terei de examiná-las em profundidade nas minhas notas oficiais.
Harry Potter é o único que não tem histórias para contar, ou melhor, nenhuma que queira contar. Não estou habituada a depender dos instintos em vez de dados puros, mas se fosse confiar neles diria que ele oculta o que sabe ou sente. O que é contraditório, pois é um homem que não parece ocultar nada em um nível pessoal.
Eu teria de dizer que ele é uma das pessoas mais abertas que já encontrei. E um habitual acariciador, e tem fama de gostar da companhia de mulheres. Imagino que se deva descrevê-lo como um rústico, sem as conotações mais cruas da palavra. É em essência um homem da terra, e talvez isso explique por que ridiculariza tudo que sugere o paranormal.
Para ser franca, gosto muito dele. O humor, a óbvia ligação sentimental com a família, o inquebrantável amor pela terra. Na superfície, parece um homem simples, mas - usando os meus enferrujados instintos - sinto complicações por baixo.
Sem dúvida ele daria um interessante estudo.
Contudo...
- A dama não entra aqui.
Com os dedos ainda pousados no teclado, Hermione ergueu os olhos e viu Emma no vão da entrada.
- Olá. Folga da escola?
- Ã-ha. Mamãe me mandou dizer que fez café e biscoitos, se você quiser. - Muitíssimo à vontade, Emma entrou, arregalando os olhos para as máquinas. - Você tem um monte de coisas.
- Eu sei. Acho que se poderia dizer que são meus brinquedos. Quem é a dama?
- A que morava aqui. Ela chora como mamãe chorava. Você não ouviu?
- Não. Quando?
Com olhos calmos e amistosos, Emma sorriu.
- Agora mesmo. Estava chorando enquanto você digitava. Mas ela nunca entra aqui.
Um rápido e gelado calafrio precipitou-se pela espinha de Hermione abaixo.
- Você a ouviu, agora mesmo?
- Ela chora muito. - Emma encaminhou-se para o computador e solenemente leu as palavras no monitor. - Às vezes eu vou ao quarto dela, e ela pára de chorar. Mamãe diz que ela gosta de companhia.
- Entendo. - Hermione tomou o cuidado de manter o tom leve. - E quando a ouve chorando, que sensação isso causa em você?
- Antes me deixava triste. Mas agora eu sei que às vezes chorar pode fazer a gente se sentir melhor depois.
Apesar de si mesma, Hermione sorriu.
- É uma grande verdade.
- Você vai tirar fotos da dama?
- Espero que sim. Você já a viu?
- Não, mas acho que ela é bonita, porque cheira bem. - Emma deu outro rápido e delicado sorriso. - Você também cheira bem.
- Obrigada. Você gosta de morar nesta casa, Emma, com a dama e tudo mais?
- E legal. Mas nós vamos construir nossa própria casa, perto da fazenda, porque somos uma grande família agora. Mamãe vai continuar trabalhando aqui, assim eu posso vir sempre que quiser. Você está escrevendo uma história? Connor também escreve histórias.
- Não, não exatamente. É tipo um diário, na verdade. Apenas coisas que quero lembrar, ou ter algum dia. Mas vou escrever uma história sobre Antietam.
- Posso entrar nela?
- Oh, acho que você tem de entrar. - Ela correu a mão pelos flexíveis cachos dourados de Emma. Era delicioso descobrir que, sim, ela parecia mesmo atrair as crianças. E elas a atraíam, muito. - Espero que você me conte tudo sobre a dama.
- Meu nome é Emma Potter agora. O juiz disse que podia ser. Então vou ser Emma Potter na história.
- Com certeza, será. - Hermione desligou a máquina. - Vamos pegar uns biscoitos.
Ela não pretendera caminhar até a fazenda. Saíra para dar um passeio na floresta, ou assim dissera a si mesma. Para respirar um pouco de ar puro, esvaziar a mente, esticar as pernas.
Mas transpusera as árvores e atravessava os campos antes que se desse conta.
Não saberia dizer por que a visão da casa a fez sorrir. Tinha esperança de que fosse suficiente tarde no dia para que Harry já estivesse descansando em algum lugar, ou tivesse saído com uma das amigas. Sabia que o trabalho da fazenda começava bem cedo, portanto parecia seguro imaginar que haveria terminado a essa altura.
Notou que parte de um campo de feno fora ceifado, mas não se via agora trator algum, nem nada que houvesse sido usado para cortá-lo. Lamentou haver perdido a ação. Sem a menor dúvida, Harry Potter atravessando os campos ao volante de uma grande e poderosa máquina seria uma visão muito interessante.
Mas era na verdade solidão o que ela queria, antes de voltar aos aposentos e sentar-se curvada com o equipamento e notas pelo resto da noite.
E por isso acabou se desviando da casa, em vez de dirigir-se para lá.
Gostava dos cheiros dali, achava-os estranhamente conhecidos. Alguma lembrança enterrada muito fundo, imaginou. Talvez uma vida anterior. Ia começar a pesquisar a sério a teoria da reencarnação algum dia em breve. Assunto fascinante.
Como conhecia bem a história dos dois cabos, encaminhou-se para os anexos. Não saberia identificar uma antiga casa de defumação, mas Gina lhe dissera que era de pedra, e que ainda continuava de pé.
Flores silvestres espalhavam-se pela grama, estrelinhas azuis, cálices amarelos, altas e rendilhadas lanças brancas. Encantada, ela esqueceu a missão e começou a juntar algumas. Além de onde estava, estendia-se um prado, exuberantemente verde, salpicado por coloridas flores silvestres e pela tremulação de borboletas.
Lá havia caminhado sem pressa por um prado? - perguntou-se. Não, nunca. Seus estudos de botânica foram breves, e mais cheios de nomes em latim que prazer.
Ia desfrutá-lo agora. De coração leve, encaminhou-se para o vasto campo de mato alto, notando a forma como se inclinava o sol e as flores balançavam - dançavam, na verdade - na leve brisa.
Então a garganta começou a doer, e o batimento do coração intensificou-se. Por um instante, sentiu uma tristeza tão terrível, uma solidão tão profunda, que quase cambaleou. Apertou com força os dedos nas flores que colhera.
Avançou pelo capim alto, por entre os cardos que lançavam tufos roxos acima de talos espessos, e o sofrimento apertou-lhe o estômago como um punho. Parou, viu as borboletas adejarem as asas e escutou o gorjeio dos pássaros. Embora o sol forte lhe aquecesse a pele, por dentro sentia-se gelada.
Que mais poderíamos ter feito? Perguntou a si mesma, tremendo de frio e com um pesar que não era seu, mas atordoantemente real. Que mais se tinha a fazer?
Abrindo a mão, deixou as flores caírem na relva de prado a seus pés. As lágrimas que lhe aguilhoavam os olhos deixavam-na agitada, desnorteada. Com tanto cuidado quanto um soldado em um campo minado, afastou-se recuando de onde as flores se estendiam sobre a relva.
Feito em relação ao quê? Perguntava-se, meio frenética agora. De onde viera a pergunta, e que poderia significar? Então se voltou, fazendo lentas e deliberadas inspirações, e deixou o prado para trás.
Quando todas aquelas fortes e confusas emoções esmoreceram, ela começou a duvidar até mesmo de que as tivera. Talvez fosse apenas porque se sentira um pouco solitária, ou achara sombrio perceber que não era mulher de colher flores silvestres nem de passear em prados.
Era uma criatura dos livros e salas de aula, de fatos e teorias. Nascera assim. E com certeza fora criada assim, uma criação intransigente. A filha brilhante de pais brilhantes, que haviam traçado e ditado seu mundo tão bem, e por tanto tempo, que ela já era uma perfeita adulta antes de pensar em questionar e rebelar-se. Até em situações tão insignificantes como a de agora.
E a vida que queria para criar para si mesma continuava muito estranha. Mesmo agora, pensava em voltar, em obedecer ao horário e sentar-se com o equipamento. Por mais que pretendesse estudar uma coisa fora do comum, ainda era estudo.
Maldito seja.
Apertando as mãos nos bolsos, afastou-se deliberadamente da direção que a levaria de volta à pousada.
Ia dar primeiro sua caminhada, ordenou-se. Ia colher mais flores silvestres se quisesse. Na próxima vez, tiraria os sapatos e andaria no prado.
Resmungava consigo mesma quando viu as vacas juntas, chocando-se umas nas outras, sob um abrigo de crês lados anexo ao galpão de ordenha. O lugar das vacas não era nos campos? Perguntou-se. Havia tantas ali amontoadas, mastigando o que imaginou que fosse feno ou alfafa.
Curiosa, ela avançou mais para perto, mantendo alguma distância apenas por não ter inteira certeza se as vacas eram tão amistosas como pareciam. Mas quando não se mostraram nem um pouco preocupadas com ela, aproximou-se mais. E ouviu-o cantando.
- Uma para a glória matutina, duas para o primeiro orvalho, três para o homem que defende sua terra e quatro para o seu amor...
Encantada com a melodia, Hermione transferiu-se para a entrada e teve seu primeiro vislumbre de um galpão de ordenha.
Fosse o que fosse que imaginara, não era um ambiente tão organizado e estranhamente técnico. Havia grandes e brilhantes canos e calhas largas, o zumbido mecânico de um compressor ou algum outro tipo de máquina. De pé, enganchada nos mourões, uma dúzia de vacas comia contente em gamelas individuais. Algumas mastigavam grãos, enquanto dispositivos que pareciam inteligentes polvos aliviavam-nas do leite.
E Harry, com uma daquelas camisetas inegavelmente sensuais, um boné surrado estufado com toda a linda e rebelde cabeleira, movia-se entre elas, ainda cantando, ou baixando para um assobio, enquanto inspecionava a ração ou o progresso das ordenhadeiras.
- Muito bem, docinho, tudo pronto. - Encantada com o processo, Hermione avançou mais para perto.
- Como funciona isso? - perguntou. Ele praguejou com vontade, chocando-se na vaca com força o suficiente para fazê-la mugir aborrecida. O olhar que disparou em direção a Hermione não foi de acolhida amistosa. - Sinto muito. Eu não pretendia entrar sem ser vista e pegá-lo desprevenido. Havia muito barulho. - Ela tentou um sorriso, e forçou-se a não recuar um passo em retirada. - Eu vinha caminhando no campo, e vi as vacas aí, e me perguntei o que estava acontecendo.
- A mesma coisa que acontece aqui duas vezes por dia, todo dia.
Para ele era um esforço reajustar-se. Planejara evitá-la por alguns dias, mas ali estava ela, bonita como uma pintura, com aqueles olhos grandes e curiosos, bem no seu galpão de ordenha.
- Mas como você consegue fazer tudo sozinho? São tantas vacas.
- Eu não faço sempre sozinho. De qualquer modo, a maior parte é automatizada.
Com destreza, ele retirou os sugadores dos úberes.
- Para onde passa o leite? Pelos canos, imagino.
- Acertou. - Ele reprimiu um suspiro. Não estava muito a fim de lhe dar uma aula de Introdução à Ordenha. Estava a fim de sufocá-la de beijos. - Da vaca aos canos e aos tanques na leiteria. - Fez um gesto vago. - Mantém o leite na temperatura certa até o caminhão-pipa retirá-lo com bomba. Preciso levar estas meninas de volta ao abrigo do ócio.
- Abrigo do ócio?
Ele sorriu então, apenas um pouco.
- E onde elas ficam de papo pro ar, antes e depois.
Hermione afastou-se, talvez um pouco mais que necessário, quando ele arrebanhou as vacas ordenhadas para fora. Queria saber como as distinguia umas das outras, as que ainda tinham de ser ordenhadas das que já tinham sido. E quando ele arrebanhou outras para o galpão, ela percebeu que a resposta era óbvia.
As tetas eram enormes. Ela abafou uma risadinha quando ele as colocou no lugar. Com aprovação pela eficiência e organização do sistema, viu-o puxar uma alavanca que despejava grãos das calhas nas gamelas.
- Então elas comem e são ordenhadas ao mesmo tempo.
- A comida é o incentivo. - Ele prestava pouca atenção a ela e muita às suas atividades. - Elas comem, a gente ordenha metade delas. Ordenha a outra metade enquanto instala o grupo seguinte. - Rápido, e com pouco rebuliço, colocou o novo rebanho no curral. - Estas são as sugadoras. Cobrem as tetas, fazem o trabalho que era feito a mão. A gente pode ordenhar muito mais vacas e muito mais rápido assim que com os dedos e um balde.
- Deve ser mais higiênico. E você usa aquela solução, algum tipo de anti-séptico, imagino, nas...
- Mamas, querida. A gente chama assim. - Ele assentiu com a cabeça. - Se quiser leite avaliado em A, tem de satisfazer os padrões.
- Como é avaliado o leite? - ela começou, e logo se interrompeu. - Desculpe. Perguntas demais. Estou atrapalhando você.
- E, está. - Mas, como as máquinas faziam seu trabalho, ele avançou em direção a ela. - O que está fazendo aqui, Hermione?
- Eu já disse, estava caminhando lá fora.
Ele ergueu uma sobrancelha e enganchou os polegares nos bolsos da frente.
- E decidiu visitar as vacas?
- Eu não tinha um plano.
- Acho que estou certo ao supor que em geral tem.
- Tudo bem. - Ele era o alvo, claro, não importava o que ela tivesse dito a si mesma, quando começara a atravessar a floresta. - Acho que senti que tínhamos deixado alguma coisa não resolvida. Eu não quero que as coisas sejam difíceis com você, pois vou conviver com grande parte de sua família enquanto estiver aqui.
- Um-hum... - Ele não sabia exatamente com que lado dela lidava no momento. - Eu forcei a barra. Quer um pedido de desculpa?
- Desnecessário. - Isso o fez sorrir mais uma vez. Sentia uma afeição cada vez maior por aquela convencida inclinação do queixo.
- Quer experimentar de novo? Sinto uma vontade irresistível de beijar você agora mesmo.
- Tenho certeza de que você tem uma vontade irresistível de beijar qualquer mulher, ponto, a qualquer hora.
- E. Mas é você quem está aqui.
- Eu aviso a você se e quando quiser que me beije. - Como meio de defesa, ela voltou-se, perambulou e franziu a testa atentamente para um contêiner etiquetado com Bálsamo de Úbere. - Meu problema é que enquanto sentirmos essa...
- Atração? - ele contribuiu. - Desejo?
- Tensão. - ela logo rebateu. - Fica difícil para mim dar continuidade ao meu plano de trabalhar aqui. Quero muito trabalhar aqui. - disse, virando-se mais uma vez para ele. - Mas não posso se tiver de rechaçar avanços não solicitados.
- Avanços não solicitados. - Em vez de ficar aborrecido, ele quase se dobrou de rir. - Droga Hermione, eu adoro o jeito como você fala quando fica presunçosa. Diga mais alguma coisa.
- Tenho certeza de que está mais habituado a mulheres que se ajoelham a seus pés. - ela disse fria. - Ou trazem tortas de pêssego para você. Só quero ter certeza de que entende claramente a palavra não.
Ele não achou graça nenhuma nisso. Ela teve a fascinante experiência de ver o riso transformar-se em um grunhido.
- Você não disse não ontem à noite, disse? O que quero dizer é que... eu podia ter possuído você, ali mesmo, no chão da cozinha de meu irmão.
A cor que a raiva levara ao rosto dela desaparecera, mas a voz permaneceu estável e fria.
- Você superestima sua atração, rapaz da roça.
- Tome cuidado, Mione. - ele respondeu tranqüilo. - Eu tenho o pavio curto. Você quer dissolver a tensão para mergulhar em seu projeto. Eu sempre achei que a franqueza contribui muito para diminuir a tensão. Você me queria tanto quanto eu a queria. Talvez tenha ficado surpresa. Talvez eu também, mas esta é a verdade.
Ela abriu a boca, mas não encontrou mentiras convenientes na ponta da língua.
- Tudo bem. Não vou negar que fiquei interessada por um momento.
- Querida, o que você ficou foi muito mais que interessada.
- Não me diga o que senti, nem o que eu sinto. E ouça o seguinte, se acha que eu vou ser outro entalhe na coluna de sua cama, mude de opinião.
- Beleza. - Em despreocupada indiferença, ele se afastou para inspecionar as vacas. - Não é uma palavra que eu tenha algum problema para entender. Desde que você a diga com todas as letras, eu entendo.
A maior parte da tensão de Hermione se dissipou.
- Muito bem, então, nós...
- Mas é melhor ficar prevenida, Hermione. - Ele disparou-lhe um olhar que fez todos os nervos dela se retesarem e chiarem. - Porque também não tenho nenhum problema para entender um desafio. Quer brincar de caça aos fantasmas em minha casa, tente a sorte. Disposta a se arriscar?
- Você não me mete medo.
Ele alargou o sorriso, devagar desta vez.
- Sim, eu meto. Você está aí parada agora mesmo imaginando que diabo fazer comigo.
- Na verdade, eu me perguntava como você consegue andar por aí empertigado, carregando todo o peso desse ego.
- Prática. - Agora ele ria mesmo. - Da mesma forma que você consegue com todos esses pensamentos pesados dentro dessa sua cabeça. Já vou terminar tudo aqui. Que tal você entrar e fazer um pouco de café para nós? Podemos conversar mais sobre isso.
- Acho que já falamos tudo. - Ela avançou rápido o suficiente para sair antes dele. - E não sei fazer café.
Para uma magricela, ele pensou, parecia bem poderosa ao se mandar.
- Não quer me dar um beijo de despedida, doçura?
Ela lançou um olhar para trás.
- Beije uma vaca, fazendeiro. - Ele não pôde resistir.
Avançou sobre ela em um piscar de olhos, erguendo-a nos braços e girando-a em um estonteante círculo, com uma estrondosa risada.
- Você é a coisa mais danada de atraente.
Ela perdera o fôlego em algum lugar durante o primeiro rodopio. Por um instante, só conseguia pensar que ele tinha os braços duros como pedras, e absolutamente maravilhosos.
- Achei que você entendia a palavra não.
- Não estou beijando você, estou? - Todo inocente, Harry ria com os olhos dentro dos dela. - A não ser que você queira que eu beije. Só queria segurá-la por um minuto. Juro que você pesa menos que um saco de grãos.
- Muito obrigada pelo elogio poético. Agora me ponha no chão.
- Você realmente precisa comer mais. Por que não fica? Vou preparar um jantar para nós.
- Não. - ela disse. - Não, não, não.
- Só precisa dizer uma vez. - Ele inclinou a cabeça, gostando de ver como o pulso na garganta dela batia como o de um pássaro, logo acima da gola aberta da sedosa camisa branca. - Por que está tremendo?
- Estou furiosa.
- Não, não está. - Intrigado agora, ele examinou o rosto dela e suavizou a voz. - Alguém machucou você?
- Não, claro que não. Pedi que me pusesse no chão.
- Eu vou pôr. Se fizesse o que quero e a levasse para dentro agora mesmo, abandonaria minhas vacas e quebraria minha palavra. Não ia querer fazer nenhuma das duas coisas. - Ele largou-a em pé, mas manteve as mãos nos seus ombros. - Parece que temos alguma coisa acontecendo aqui.
- Eu preferiria decidir isso sozinha em meu próprio tempo.
- É justo. - Como começava a gostar da provocação, ele deslizou um dedo pelos cabelos dela, puxou um dos cachos curtos, macios. - Ocorre-me que já decidi. Eu quero você de verdade. Como não sou psiquiatra nem profundo pensador, não tenho de analisar nada nem procurar significados ocultos. Simplesmente sinto. - Baixou mais uma vez os olhos, verdes e sonhadores, para os dela, e fixou-os. - Quero levar você para a cama, e fazer amor com você. E quero mais toda vez que chego perto de você. Pode pôr isso em sua equação.
- Vou pôr. - Era uma luta concentrar-se com as mãos dele movendo-se em delicados círculos em seus ombros. - Mas esse não é o único fator. Tudo seria... muito menos complexo se pudéssemos deixar isso de lado enquanto ponho meu projeto em andamento.
- Menos complexo. - ele concordou, achando a palavra engraçada. - E menos divertido.
Divertido, ela pensou, sentindo-se atraída por ele. Era um conceito novo e interessante, associado à intimidade.
Ele viu os lábios dela se curvarem apenas um pouco, sentiu o corpo relaxar, notou os olhos ficarem mais profundos. Um nó de necessidade entrançou-se nele quando a puxou mais para perto.
- Bela Hermione. - murmurou - Me deixe mostrar a você...
Podia ter cometido um assassinato quando a estridente explosão de uma buzina estilhaçou o momento.
Ela enrijeceu-se, recuou, e os dois olharam para o empoeirado carro compacto que encostou diante da rasa. Hermione teve uma clara visão da morena de boca emburrada que espichou a magnífica cabeça para fora da janela.
- Harry, querido, eu lhe disse que tentaria fazer uma visita.
Ele ergueu a mão em um aceno casual, embora sentisse a temperatura em volta cair para a faixa abaixo de zero.
- Ah, é Daria. Uma amiga minha.
- Aposto que sim. - A insegurança tornara a instalar-se e era do tamanho de uma sequóia-canadense. Hermione arqueou uma sobrancelha e curvou os lábios com um ar escarnecedor. Ele não precisava saber que o escárnio era para si mesma. - Não me deixe impedi-lo de ficar com sua... amiga, Harry, querido. Sei que é um rapaz muito ocupado.
- Olhe, maldição...
Daria gritou mais uma vez, a voz rouca um pouco impaciente. Harry viu, com inabitual pânico, que ela saía do carro. Com qualquer outra, o encontro teria sido tranqüilo, até divertido. Com Hermione, ele teve a sensação de que seria mortal. Ela comeria Daria de café-da-manhã.
- Escute aqui, eu...
- Eu não tenho tempo nem de olhar, nem escutar. - disse Hermione, interrompendo-o, com um medo desesperado de fazer papel de boba na frente da estonteante mulher que se aproximava pelo gramado, de saltos altos e finos. - Tenho trabalho a fazer. Espero que você e Daria tenham uma agradável visita.
Saiu andando e deixou-o entre a desejosa e a desejada.


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