Capítulo 12



Capítulo 12

Ele pensou em se embriagar. Não resolvia os problemas, mas tinha suas vantagens. Era uma pena não estar com disposição de ânimo para isso. Brigar com alguém era uma idéia melhor, e como Hermione não ia acomodá-lo, dirigiu-se para a cidade, e Rony.
Sempre pudera contar com Rony para uma boa luta.
Harry imaginou que era um bônus quando encontrava não apenas Rony no escritório do xerife, mas também Draco.
- Escute, acabamos de falar em jogar pôquer. - Draco cumprimentou-o com um tabefe no ombro.
- Tem algum dinheiro?
- Tem cerveja aqui?
- Este é um lugar de lei e ordem. - respondeu Rony, solene, e logo sacudiu a cabeça em direção ao aposento dos fundos. - Tem algumas na geladeira. Está a fim de um jogo?
- Talvez. - Harry encaminhou-se com arrogância para o cômodo dos fundos. - Posso fazer o que quiser quando quiser, não posso? Não tenho de checar com uma mulher, como vocês.
Rony e Draco trocaram olhares.
- Vou dar uma ligada para Neville. - disse Draco, erguendo o telefone quando Harry voltou bebendo avidamente a cerveja.
Enquanto Draco teclava o telefone e murmurava no bocal, Rony apoiou os pés na escrivaninha.
- Então, o que Hermione está aprontando?
- Ela tampouco tem de conferir comigo.
- Ah, tiveram uma briguinha, foi? - Gostando da idéia, Rony cruzou os braços na nuca. - Ela chutou você para fora de casa?
- A casa é minha, droga. - disparou Harry de volta. - E a Racional Hermione não briga. Ela muda. - continuou, gesticulando com a cerveja. - Bem na cara da gente. Em um minuto é dura, inteligente e arrogante. No seguinte é delicada, perdida e tão meiga que a gente mataria qualquer um que tentasse magoá-la. Depois é fria... Oh, ela é muito fria, controlada e - ele tomou um gole de cerveja - analítica. Como diabos a gente pode acompanhar?
- Bem, - pensou Rony - não pode chamá-la de chata.
- Tudo, menos isso. Ela acha que é, pelo menos em alguns momentos. Droga, eu não sei o que ela acha que é. - Harry remoeu a idéia na garrafa. - Hoje mesmo, deu de cara com Frannie me beijando. E ficou furiosa, começou uma briga, me acusou de alguma coisa? Não. Não que o beijo não tenha sido inteiramente inocente, mas o que quero dizer é que se a pessoa está dormindo com alguém, não deve gostar da idéia de vê-la beijando outra. Certo?
Draco desligara o telefone e observava o irmão com muita atenção.
- Eu concordo. Você concorda, Rony?
- Até certo ponto, sim.
Satisfeito com a unidade de espírito, Harry ergueu mais uma vez a garrafa.
- Pois é. Mas a dra. Granger, ela é tão fria como queiram. Ficou me examinando de novo como se eu fosse uma mancha em uma lâmina de laboratório. Detesto quando ela faz isso.
- Quem não detestaria? - disse Draco, e sentou-se para divertir-se.
Acalmado pela compreensão fraterna, Harry liquidou a primeira cerveja e abriu a segunda.
- E outra coisa, por que ela não pergunta aonde tudo isso vai dar? Dá para entender? As mulheres vivem se perguntando aonde tudo vai dar. É assim que a gente evita que as coisas fiquem intensas demais, pondo as cartas na mesa, vocês sabem.
- É? - Rony sorriu serenamente.
- Com certeza. Mas ela não pergunta. - Ele tomou a cerveja fazendo barulho. Por isso tudo ficara tão intenso. Precisava acreditar nisso. - E vocês imaginariam que ela fosse atrapalhar, não? Que fosse ser um maldito estorvo para mim morando lá em casa, mas simplesmente parece que se encaixa como uma luva.
- É mesmo? - Rony riu e piscou o olho para Draco.
- Parece. Quer dizer, lá está ela no café-da-manhã, e tem sempre alguma coisa sobre o que falar. Trabalha na cozinha a maior parte do tempo, mas nunca atrapalha, e a gente passa a esperar que ela esteja lá.
Draco voltou-se quando a porta se abriu e Neville entrou com um grande saco de papel pardo. Largou-o em cima na escrivaninha de Rony e retirou outra embalagem com seis cervejas.
- Vamos jogar?
- Talvez mais tarde. - Para evitar a interrupção, Rony indicou-lhe com a mão uma cadeira. - Harry está todo enrolado.
- É. - Neville olhou para o caçula. - Enrolado com o quê?
- Harry. Que dizia você?
- O quarto tem o cheiro dela. - resmungou Harry. - Ela não deixa nada lá dentro, e mesmo assim tem o cheiro dela. Sabonete, e aquele troço que esfrega na pele.
- Oh, não. - disse Neville, e serviu-se de uma cerveja.
- Sabem, os pais dela a mandaram para o internato quando tinha seis anos. Quase um bebê. Ela nunca teve chance de ser criança. As vezes, quando ri com vontade, parece meio surpresa pelo ruído. - Ele fez uma pausa e pensou. - Ela tem uma risada maravilhosa.
Neville virou-se para Draco.
- Ela o chutou para fora de casa?
- Ele diz que não.
- A casa é minha, droga. - lembrou Harry a todos. - Minha casa, minha terra. Sou eu quem sabe o que acontece lá. Se não gosto daquele equipamento estúpido, ridículo dela, não gosto, e pronto. Não gosto de vê-la envolvida até o último fio de cabelo nesse absurdo, e ela está se exaurindo. Não quero mais entrar em casa e encontrá-la estirada no chão.
- Como? - A diversão desapareceu quando Rony se endireitou na cadeira. - Que aconteceu?
- Ela desmaiou, pelo que entendi. Disse que revê um encontro com nossa bisavó. - Harry emborcou mais cerveja para lavar a preocupação e a ansiedade do organismo. - É, isso mesmo. Estavam as duas fritando galinha na noite antes da batalha. Eu não vou me envolver nisso.
- Ela está bem? - perguntou Draco.
- E eu estaria aqui se ela não estivesse? - Ele correu os dedos pelos cabelos e esforçou-se para repelir a imagem da forma pálida, pequena e imóvel no chão da cozinha. Mas não conseguiu. - Ela quase me matou de susto, droga. Maldição! - Espremeu os olhos por um momento, esfregou a base da mão no coração dolorido. - Eu não agüento vê-la machucada. Não suporto. A mulher está me dilacerando. - Com um esforço, recompôs-se, tomou outro gole na garrafa. - Ela voltou a si em um minuto. - resmungou. - Nunca vi alguém se recuperar num pulo assim, como ela. Agora está bem, excelente, de volta ao controle. Não vai me forçar a ficar envolvido com esse negócio. Não vai me envolver em coisa alguma.
- Irmão. - Com certa compaixão, Neville abriu outra cerveja e passou-a para Harry. - Você já está envolvido.
- O diabo que estou.
- Assim por alto, quantas vezes você pensa nela a cada dia?
- Não sei. - Aborrecido, Harry decidiu que se embriagar não era uma idéia tão má, afinal. - Eu não conto.
Como bom advogado, agora Neville interrogava agilmente a testemunha.
- Alguma outra em que já pensou tanto e com tanta freqüência?
- E daí? Ela mora comigo. A gente pensa em alguém que está na mesma casa dia e noite.
Draco examinou as unhas.
- Ê apenas sexo?
- O diabo que é. - Como uma bala, Harry saíra da cadeira, os punhos prontos. - Ela não é apenas um corpo quente. - Caiu em si, e captou o astuto sorriso do irmão. - Eu não sou um animal.
- Que virada. - Despreocupado, Draco tomou sua cerveja. - Quantas outras mulheres você desejou desde que Hermione apareceu?
Zero. Nada. Nulidade... Terror.
- Não é isso o importante. O importante é... - Ele tornou a sentar-se e ruminou na cerveja. - Esqueci.
- O importante - disse Rony, enredando os fios - é que você perdeu o equilíbrio e está caindo rápido.
- Ele já caiu de quatro. - interveio Neville. - Apenas não percebeu ainda. Mas como é uma mulher sensata, Hermione talvez não caia tão fácil, principalmente por você.
- Que diabos tão de errado há comigo?
- Como eu dizia... - continuou Neville. - Ela tem uma vida em New York, uma carreira, interesses. Talvez você tenha problemas para impedi-la de se mandar. Vai ter de ser muito engenhoso para convencê-la a se casar com você.
Harry engasgou-se, tossiu e engoliu mais cerveja.
- Você está louco. Não vou me casar com ninguém.
Draco apenas sorriu.
- Quer apostar?
Como Harry estava terrivelmente pálido, Rony se condoeu dele.
- Tome outra cerveja, amigo. Pode se deitar no beliche da sala dos fundos e eliminá-la no sono.
Parecia uma excelente sugestão.

Ela não dormiu. Não apenas porque Harry não estava lá e a casa parecia ganhar vida à sua volta. Mas também à espera do amanhecer, durante a noite mais longa de sua vida.
Trabalhou. Isso sempre a ajudara a atravessar crises, pequenas e grandes. Fez as malas. A sistemática retirada das roupas, e a perfeita arrumação dela nas malas, eram um sinal de que estava pronta para continuar em frente com o resto de sua vida.
A única preocupação era que ela e Harry se separassem em condições intranqüilas. Isso ela não queria. Quando ele voltasse, disse a si mesma, ela tentaria pôr tudo de volta em perspectiva e chegar a um tipo de equilíbrio.
Mas ele não voltou, e as horas passaram lentamente até o amanhecer.
Quando o sol mal começara a despontar, e a névoa cinza pairava acima da terra, engolindo o celeiro, ela saiu.
Era impossível acreditar, naquele momento, que alguém pudesse não sentir o que ela sentia. O medo, á antecipação, a raiva e a tristeza.
Era-lhe preciso tão pouca imaginação para ver a infantaria marchando por aquela fina cortina de névoa, corpos e baionetas rasgando-a para fazê-la recuar e tornar a formar-se. O ruído amortecido de botas na terra, o fosco brilho de metal e aço.
A primeira explosão dos canhões, os primeiros gritos.
Então se desencadearia o inferno.
- Que está fazendo aqui fora?
Hermione sobressaltou-se e arregalou os olhos. Era Harry, atravessando aquele rio de névoa. Parecia pálido, os olhos arenosos e tão furiosos que ela resistiu à necessidade de avançar correndo e abraçá-lo.
- Não ouvi você chegar.
- Acabei de chegar. - Ela não dormira. Ele viu a fadiga, as olheiras em seus olhos, e detestou a punhalada de culpa. - Você está tremendo. Descalça, pelo amor de Deus. Volte para dentro. Vá para a cama.
- Você parece cansado. - ela disse, sabendo que a voz saiu mais frágil que fria.
- Estou de ressaca. - ele disse, sem rodeios. - Alguns de nós humanos ficamos assim quando bebemos demais. Não vai me perguntar onde estive, nem com quem estive?
Ela ergueu a mão e massageou de leve o coração. Continuava batendo, pensou vagamente, embora estivesse despedaçado.
- Está tentando me magoar?
- Talvez esteja. Talvez esteja tentando ver se consigo.
Ela fez que sim com a cabeça e voltou-se em direção à casa.
- Consegue, sim.
- Hermione...
Mas ela já fechava a porta, deixando-o sentir-se como uma coisa enlameada que saíra rastejando debaixo de uma pedra. Amaldiçoando-a, rumou para o galpão de ordenha.
Ficaram fora do alcance um do outro durante toda a manha. Em vez de trabalhar na cozinha, ela fechou-se no quarto de hóspedes e concentrou-se ferozmente no trabalho. Então iam se separar em conflito, pensou. Talvez fosse melhor assim. Talvez fosse mais fácil, no final das contas, esconder-se por trás do ressentimento e da raiva.
Da janela do quarto, ela o viu. Não parecia estar trabalhando. Fazendo hora, decidiu, até ela partir. Bem, teria de esperar um pouco mais. Ela só ia embora no fim do dia.
- Onde está você, Sarah? - murmurou, percorrendo de um lado para outro o quarto, que começava a parecer uma cela. - Você me queria aqui. Sei que me queria aqui. Para quê?
Ao passar pela janela, olhou mais uma vez para fora. Ele atravessava o jardim agora, até a horta da cozinha, onde cultivava tomates, verduras, abóbora. Parou e curvou-se para inspecionar alguma coisa. Para ver se estavam maduros, ela imaginou.
Era doloroso olhá-lo. Doloroso demais, contudo, pensar em desviar o olhar. Acreditara mesmo que poderia viver a experiência do amor e da perda como um ripo de aventura, ou pior, como uma experiência sobre a condição humana? Que poderia examinar, analisar e talvez descrever?
Não, jamais, jamais o esqueceria.
Quando ele tornou a endireitar-se na pequena horta e encaminhou-se para um dos anexos de pedra, ela se virou. Não, não ia esperar até o fim do dia afinal. Era cruel demais. Falaria mais uma vez com ele, uma última vez, e depois iria embora.
Mandaria buscar o equipamento, disse a si mesma ao descer. Faria sua saída com dignidade, embora com rapidez. Para a casa de Gina, disse a si mesma, respirando cuidadosamente. Voltar correndo para Nova York no momento ia parecer covardia. Não tinha o menor sentido fazê-lo sentir-se mal, deixá-lo saber que conquistara o coração dela e o partira.
Deixe-o achar que foi apenas uma experiência, agora terminada, uma experiência que os dois lembrarão com carinho.
Ela nunca mais voltaria. Na base da escada, parou para apertar a mão na boca. Nunca mais voltaria a essa cidade, a esse campo de batalha, a essa casa. Embora batesse em total retirada, não ia correr.
Não olhou para os monitores, nem os medidores. Atravessando o corredor, deslizou os dedos pela madeira e a pintura, como se para absorver a textura na memória.
Na entrada da cozinha, a força golpeou como um punho...
O guisado cozinhando. O distante pipocar do fogo de artilharia...
Fraca, encostou-se na parede quando a porta se abriu.
Sabia que era Harry. Com a parte racional da mente reconheceu a forma dele, a postura, até o cheiro. Mas com algum olho interno viu um homem carregando um menino sangrando...
- Meu Deus, meu Deus, John. Ele está morto?
- Ainda não.
- Ponha-o na mesa. Eu preciso de toalhas. Oh, tanto sangue. Se apresse. Ele é tão jovem. É apenas um menino.
Como Johnnie.
Tão igual a Johnnie. Jovem, sangrando, agonizando. O uniforme imundo e empapado de sangue. A divisa do novo posto ainda brilhava no ombro do uniforme esfarrapado. Ela ouviu o sussurro do papel gasto de uma carta no bolso interno quando despiu o uniforme para ver o horror dos ferimentos.
Apenas um menino. Tantos meninos agonizantes...
Hermione via a cena na cozinha perfeitamente. O sangue, o menino, os que tentavam ajudá-lo. Ali, a carta nas mãos de Sarah, o papel surrado onde fora dobrado e redobrado, lido e relido. As palavras pareciam saltar para ela...
Querido Cameron...
- Não puderam salvá-lo. - disse Harry com cuidado. - Tentaram.
- É. - Após expelir a respiração que vinha prendendo, Hermione comprimiu os lábios. - Tentaram à exaustão.
- A princípio, ele só viu o uniforme. O inimigo. Ficou feliz porque um ianque morrera ali. Então viu o rosto, e viu o filho nele. Por isso levou-o para casa. Era só o que podia fazer.
- Era a coisa certa a fazer, a coisa humana.
- Eles queriam que o menino vivesse, Hermione.
- Eu sei. - A respiração dela entrava e saía trêmula. - Lutaram o máximo possível. Todo o resto daquele dia, durante a noite, sentados com ele. Orando. Ouvindo-o, quando ele conseguia falar. Harry, havia amor demais nesta casa para que não tentassem, não lutassem pela vida desse jovem.
- Mas o perderam. - Olhos sinistros, Harry avançou. - E foi como perder mais uma vez o filho.
- Ele não morreu só, nem esquecido.
- Mas o enterraram em uma sepultura sem identificação.
- Ela temia. - As lágrimas afloraram e escorreram pelas faces de Hermione. - Ela temia pelo marido, pela família. Nada significava mais para Sarah. Se alguém descobrisse que o menino tinha morrido aqui, e que John era um simpatizante rebelde que tinha perdido um filho para os ianques, John poderia ter sido tirado dela. Ela não teria agüentado. Implorou a ele que não dissesse nada, que cavasse a sepultura à noite, para que ninguém jamais soubesse. Oh, ela sofreu por aquele menino, pela mãe que jamais saberia onde nem quando ou como ele tinha morrido. Ela leu a carta.
- E então enterraram a carta da mãe com ele.
- Não tinha envelope, Harry. Nem endereço. Nada para dizer a eles de onde ele viera, ou quem o esperava em casa. Apenas as duas páginas, o texto espremido e amontoado, como se ela quisesse inserir todo pensamento, todo sentimento nelas. - Escapou uma respiração trêmula. - Eu vi. Li, exatamente como Sarah leu... Querido Cameron.
Os olhos de Harry escureceram-se, os músculos do estômago se retesaram e enroscaram.
- Esse é meu segundo nome. Cameron era o nome do meu avô. Cameron James Potter, o segundo filho de John e Sarah. Ele nasceu seis meses depois da Batalha de Antietam. - Harry inspirou fundo para estabilizar-se. - O nome foi herdado pelos Potter desde então. Toda geração tem um Cameron.
- Batizaram o filho com o nome do menino que não puderam salvar. - Desamparada, Hermione enxugou as lágrimas das faces com as mãos espalmadas. - Não o esqueceram, Harry. Fizeram tudo que puderam.
- E depois o enterraram em uma sepultura sem identificação.
- Não a odeie por isso. Ela amava o marido, e temia por ele.
- Eu não a odeio por isso. - De repente exausto, Harry esfregou o rosto com as mãos. - Mas é minha vida agora, Hermione, minha terra. Não posso mudar o que aconteceu, e estou farto de ser assombrado por isso.
Ela estendeu a mão.
- Você sabe onde ele está enterrado?
- Não, sempre excluí essa parte. - Como tentara, quase toda a vida, excluir tudo mais. Todas essas lembranças oscilantes, esses sonhos nublados. - Eu nunca quis ter parte alguma nisso.
- Então por que entrou aqui e me contou agora?
- Eu não sei, exatamente. - Resignado, deixou as mãos caírem. - Eu o vi, ao lado da casa de defumação. Sangrando, me pedindo que o ajudasse. - Inspirou fundo. - Não é a primeira vez. Eu não podia mais deixar de entrar e lhe contar. Você é parte disso. Sabia o tempo todo.
- Ele está enterrado no prado. - ela murmurou.
- Flores silvestres são cultivadas lá. - Ela segurou a mão de Harry, entrelaçando seus dedos nos dele.
- Venha comigo.
Seguiram caminhando em direção ao prado, lavado pelo luminoso sol. As montanhas ganhavam vida com cor, e as flores sob os pés soltariam seu pólen. Desprendia-se o cheiro da grama e plantas germinando. Quando ela parou, as lágrimas ainda escorriam em silêncio.
Por um momento, não pôde dizer nada, apenas fitar o terreno embaixo onde uma vez largara o primeiro buquê de flores silvestres.
- Fizeram o melhor para ele. Não longe daqui, outro homem matou um menino simplesmente por causa da cor do uniforme. Essas pessoas tentaram salvar um, apesar disso. - Ela inclinou-se para Harry quando ele lhe envolveu os ombros com o braço.
- Eles se importaram.
- E, eles se importaram. Ainda não conseguem deixá-lo aqui sozinho.
- Fazemos parques de nossos campos de batalha para lembrar. - ela disse em voz baixa. - É importante lembrar. Ele precisa uma identificação, Harry. Eles teriam lhe dado uma, se pudessem.
Poderia ser simples assim?, ele perguntou-se. E tão humano?
- Tudo bem. - Ele parou de se questionar e assentiu com a cabeça. - Daremos uma a ele. E talvez todos tenhamos alguma paz.
- Existe mais amor que pesar aqui. - ela murmurou. - E é seu, Harry... sua casa, sua terra, sua herança. O que quer que subsista nela, em você, é admirável. Devia se sentir muito orgulhoso do que tem e do que é.
- Sempre tive a sensação de que estavam me intimidando. Ressentia-me disso. - Mas era um alívio ali parado com ela ao sol, em sua terra. - Não entendia por que deveria ser eu o oprimido pelos problemas, pelas emoções dele. - Ele examinou os campos além, as colinas, e sentiu que quase todo seu cansaço passara. - Talvez agora entenda. A terra sempre foi mais minha que de qualquer um de meus irmãos. Mais até do que foi do meu pai e de minha mãe. Todos a amamos, todos trabalhamos nela, mas...
- Mas você ficou, porque a amava mais. - Ela ficou nas pontas dos pés e beijou-o afetuosamente. - E a entende melhor. Você é um homem bom, Harry. E um bom fazendeiro. Eu não esquecerei você.
Antes de ele perceber o que ela fazia, Hermione afastou-se.
- Do que está falando? Aonde vai? Achei que gostaria de ficar algum tempo aqui a sós.
Ela sorriu, esfregando as lágrimas que secavam em seu rosto.
- Parece-me um momento pessoal, e preciso mesmo acabar de juntar minhas coisas.
- Que coisas?
- Minhas coisas. - Ela recuou ao falar. - Agora que já resolvemos isso, vou ficar com Gina por alguns dias antes de voltar para Nova York. Não tive tanto tempo para visitá-la quanto planejava.
Seria melhor ela tê-lo atingido na cabeça com um martelo. O tranqüilo alívio que ele começara a sentir ao enfrentar o que o assombrara foi rude, abominávelmente engolido por pânico total.
- Vai embora? Assim, sem mais? Terminada a experiência, a gente se vê por aí?
- Só estou indo para a casa de Gina, por alguns dias. Já fiquei aqui mais tempo do que a princípio pretendia, e tenho certeza de que você gostaria de sua casa de volta. Sou muito grata por tudo.
- Você é grata. - ele repetiu. - Por tudo?
- Sou, muito. - Apavorava-a que seu sorriso oscilasse. Rápido, era só o que pensava, vá embora rápido. - Eu gostaria de continuar mantendo contato, se não se importar. Saber como estão indo as coisas com você.
- Podemos trocar cartões no Natal.
- Acho que podemos fazer mais que isso. - Por dentes bem cerrados, ela manteve o sorriso tranqüilo no rosto. - Menino da fazenda, foi uma experiência e tanto.
A boca frouxa de choque, ele a viu partir. Ela o dispensava. Acabara de fazê-lo passar pela mais emocional, mais dilacerante e mais atordoante experiência da vida, e simplesmente ia embora.
Bem, maravilha, pensou, armando uma carranca pela batida em retirada dela. Melhor, impossível. Assim ela deixava tudo desobstruído. Ele não queria complicações, nem grandes e sentimentais cenas de despedida.
O diabo que não queria.
Ela chegara à porta da cozinha, e mal pisara no limiar, quando ele a alcançou. Como um furacão de raiva, agarrou-lhe os ombros e a fez rodopiar.
- Apenas sexo e ciência, é assim, doutora? Espero ter-lhe dado um monte de dados para um dos seus artigos estúpidos.
- Que é que você está...
- Não quer uma última experiência, de saideira?
Arrastou-a com força para junto de si, esmagou a boca na dela. Foi brutal e violento. Pela primeira vez, ela teve medo dele, e do que ele era capaz.
- Harry. - Estremecendo, ela desprendeu a boca. - Você está me machucando.
- Que bom. - Mas soltou-a, empurrando-a tanto que quase a fez tropeçar. - Você merece. Mulher de sangue-frio... - Ele conseguiu deter-se antes que dissesse alguma coisa com a qual não suportaria viver depois. - Como você pode ter dormido comigo, compartilhado tudo que compartilhamos, e depois apenas dar meia-volta e sair, como se isso nada significasse para você, além de um meio de passar o tempo?
- Eu pensei... Eu pensei que era assim que se fazia. Ouvi pessoas dizerem que você fica amigo de todas as mulheres com quem...
- Não jogue o meu passado na minha cara! - ele gritou. - Que droga, nada tem sido o mesmo desde que você chegou aqui. Você complicou a minha vida por muito tempo. Quero que vá embora. Quero você fora daqui.
- Já estou indo. - ela conseguiu dizer, e deu um passo cuidadoso após o outro até chegar à entrada.
- Pelo amor de Deus, Hermione, não me deixe. - Ela voltou-se e firmou-se com a mão no umbral.
- Eu não entendo.
- Você quer que eu implore. - A humilhação era quase tão maligna quanto a raiva. - Tudo bem, eu imploro. Por favor, não vá. Não me deixe. Acho que não posso viver sem você.
Ela levou a mão à cabeça e arregalou os olhos para ele. Via apenas toda aquela emoção rodopiando nos olhos dele. Emoção demais, impossível de decifrar.
- Você quer que eu fique? Mas...
- Que tem de tão importante em Nova York? - ele quis saber. - Então têm museus e restaurantes. Você quer ir a um restaurante, eu a levo em uma droga de restaurante. Agora. Pegue seu casaco.
- Eu... eu não estou com fome.
- Ótimo. Não precisa de restaurante. Está vendo? - Parecia um louco, percebeu. Que inferno, enlouquecera mesmo. - Você tem aquele computador topo de linha, o modem e toda aquela parafernália eletrônica. Pode trabalhar em qualquer lugar. Pode trabalhar aqui.
Ela não estava habituada a ter o cérebro esgotado. Em defesa, agarrou-se à última coisa que ele dissera.
- Você quer que eu trabalhe aqui?
- Qual o problema? Você tem se dado bem aqui, não tem?
- Sim, mas...
- Deixe o equipamento instalado em todos os lugares. - Ele lançou as mãos para cima. - Eu não me importo. - Em um movimento relâmpago, avançou de um salto e suspendeu-a do chio com as mãos sob os cotovelos dela. - Não me importo. - repetiu. - Eu me acostumei. Instale um transmissor no celeiro de feno, ponha uma antena parabólica no telhado. Só não vá embora.
A primeira sugestão de sorriso curvou os lábios dela. Talvez os relacionamentos não fossem seu forte, mas acreditava que começava a ter uma idéia.
- Você quer que eu fique aqui?
- Quantas línguas você fala? - A total frustração levou-o a sacudi-la. - Entende o que eu digo? - Largou-a de volta em pé no chão e pôs-se a andar de um lado para o outro. - Não acabei de dizer isso? Não acredito que eu tenha dito, mas disse. Não vou perder você. - resmungou. - Não vou perder o que tenho com você. Nunca me senti assim com ninguém. Nem queria, mas você mudou tudo. Agora não tiro você da cabeça o tempo todo, e a idéia de não estar onde eu possa vê-la, tocá-la, me rasga o coração. Rasga o maldito do meu coração! - ele gritou, rodopiando em direção a ela com sangue no olho. - Você não tem direito de fazer isso com alguém, e depois partir!
Ela começou a falar, mas a expressão no rosto dele quando ela abriu a boca a deteve imediatamente.
- Eu amo você, Hermione. Oh, meu Deus, eu amo você. E tenho de me sentar.
Os joelhos cediam. Ele teve certeza de que ia rastejar em seguida. Para reaver um pouco de controle, comprimiu as bases das mãos nos olhos. Qualquer que fosse a humilhação, aceitaria, desde que ela ficasse.
Então ergueu os olhos e examinou-a. Ela chorava. O coração dele parou de martelar, partiu-se e afundou.
- Eu sinto muito. Sinto muito. Não tinha nenhum direito de tratar você assim, falar com você assim. Por favor, não chore.
Ela deu um suspiro soluçante.
- Em toda a minha vida, ninguém me disse essas palavras. Nem uma única vez, em toda a minha vida. Não é possível que saiba o que é ouvi-las de você agora.
Harry levantou-se mais uma vez, ressentindo-se de todos que a haviam subestimando, inclusive ele.
- Não me diga que é tarde demais para eu dizê-las. Vou compensar isso para você, Hermione, se me deixar.
- Eu tinha medo de lhe dizer o quanto amo você. Achei não ia querer que eu dissesse.
Ele levou um momento antes de tentar falar, um momento para deixar o que ela dissera penetrar em seu coração machucado e o curasse.
- Eu quero que diga. Preciso que diga. Você não vai embora.
Ela fazia que não com a cabeça quando ele a puxou para dentro dos braços.
- Não vou a lugar algum.
- Você está apaixonada por mim.
- Oh, estou.
- Graças a Deus. - Ele cobriu sua boca com a dele, sentindo a alegria inundá-lo de cima a baixo. - Eu comecei a me apaixonar por você desde que a peguei no aeroporto. Você era tão esnobe, não pude resistir. - Um pensamento intrometeu-se e o fez estremecer. - Hermione, ontem à noite...
- Não importa.
- Sim, importa. Eu estava com meus irmãos, no escritório de Rony. Tomei um porre e dormi para me recuperar na cama no aposento dos fundos. Estava furioso com o que tinha acontecido, e o que tinha acontecido dentro de mim, por você. Idiota. - Baixou a testa até a dela. - Eu não sabia que se você se soltasse só um pouquinho, daria tudo tão certo. Você estava destinada a vir para cá. Acredita nisso?
- Sim. - Ela enconchou as mãos nas faces dele. A força total daquilo a atingiu como um raio. - Nós estamos conectados um ao outro.
- E uma maneira de dizer. Eu prefiro "eu amo você." Gosto muito mesmo. Quem imaginaria?
- Eu também prefiro, mais que a qualquer coisa. - Feliz, ela se aconchegou nos braços dele. - E não vou deixar o equipamento espalhado pela casa. Como vamos morar juntos, precisamos de algum senso de ordem.
- Morar juntos. - Ele inclinou o rosto dela para trás e beijou-lhe a testa, o nariz, os lábios. - Errado. Já passamos por isso, mais ou menos. Você vai se casar comigo.
- Casar. - Ela sentiu a cabeça rodopiar. - Você. - As pernas viraram água. - Sou eu quem precisa sentar agora.
- Não, não vai. Eu seguro você. - Ele lampejou aquele faiscante sorriso Potter antes de começar a traçar beijos pelo rosto dela, deslizar as mãos acima e abaixo. Nossa, mas ela era atraente mesmo quando desligava aquele cérebro. - Case-se comigo, Hermione. - murmurou. - Bem que você poderia dizer sim. Eu simplesmente vou convencê-la a aceitar.
Casamento. Família. Filhos. Harry. Por que teria ele de convencê-la a uma coisa que ela queria mais que tudo no mundo?
- Não consigo pensar.
- Ótimo. - Deixariam a coisa assim por algum tempo, ele decidiu, e mordiscou-lhe de leve o queixo. - Eu amo você. Huum... bela Hermione, eu amo você. Diga: "Eu amo você, também."
Os músculos nas coxas dela se afrouxaram.
- Eu amo você, também.
- Case-se comigo, Hermione. - Sorrindo, ele deslizou os lábios pelos dela até o queixo e refez o caminho inverso. - Seja minha esposa, tenha meus filhos, fique comigo. Diga sim. Diga: "Sim, eu me casarei com você, Harry."
- Sim. - A força retornou-lhe aos braços quando ela os lançou em volta do pescoço dele. - Sim, eu me casarei com você, Harry.
Ele mordiscou-a em volta da orelha.
- Diga: "Eu cozinharei para você noite e dia, Harry."
- Eu... - Ela abriu de repente os olhos. O acontecimento mais importante de sua vida terminou em risos. - Sonso. Muito sonso, fazendeiro.
- Valia uma tentativa, Mione. - Rindo com ela, ele segurou-a nos braços e a fez rodopiar em círculos. - Mas eu fico com a melhor de três.


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