Capítulo 3



Capítulo 3

Foi um dos mais emocionantes momentos da vida de Hermione, apenas ficar ali no aprazível ar, um vívido céu azul acima e a velha casa de pedra à sua frente. Sentia o aroma dos precoces crisântemos misturar-se com a fragrância das rosas de fins do verão.
Estudara arquitetura durante algum tempo, e vira em primeira mão as majestosas catedrais da França, as românticas vilas da Itália, as antigas e gloriosas ruínas da Grécia. Mas essa casa, em três andares de pedra e madeira nativas, com as elegantes chaminés e vidros cintilantes, comovia-a tão profundamente quanto sua primeira visão das torres de Notre Dame. Era, afinal, assombrada.
Queria sentir os fantasmas, desejava que alguma parte dela estivesse aberta às sombras e aos sussurros dos mortos sem descanso. Acreditava. A dedicação à ciência ensinara-lhe que muitas coisas no mundo continuavam inexplicáveis. E como cientista, sempre que ouvia falar em algum fenômeno não explicado, precisava saber qual, como e onde. Quem o vira, sentira e ouvira. E se ela conseguiria ver, sentir e ouvir.
Foi assim com a velha Mansão Barlow, agora Pousada Potter. Se não soubesse das histórias, não confiasse completamente em Gina, Hermione teria apenas visto uma bela casa, convidativa, com as compridas varandas duplas e os jardins encantadores. Teria se perguntado como o interior era mobiliado, que vista encontraria das janelas. Talvez pensasse um pouco nas pessoas que haviam morado ali, o que haviam sido e aonde haviam ido.
Mas já sabia de tudo isso. Passara muito tempo pesquisando os donos originais e seus descendentes.
Agora se achava ali, encaminhando-se para a convidativa varanda com Gina ao lado. E o coração martelava no peito.
- E linda mesmo, Gina.
- Você devia ter visto antes. - Gina varreu com os olhos a casa e a terra, orgulhosa. - Coitada da antiga casa, caindo aos pedaços, janelas quebradas, varandas inclinadas. E dentro... - Ela balançou a cabeça. - Tenho de dizer. Embora seja meu marido, Draco tem um verdadeiro talento para ver o que poderia ser e fazer com que aconteça.
- Ele não fez isso sozinho.
- Não. - ela curvou os lábios quando estendeu a mão para a porta. - Fiz um trabalho dos diabos. - Abriu a porta. - Veja por si mesma.
Um trabalho dos diabos, pensou Hermione. Lindos e largos pisos de tábuas corridas brilhavam dourados, com cera e luz do sol. Paredes cobertas de seda, elegantes acabamentos. Antiguidades, ao mesmo tempo delicadas e majestosas, distribuídas em tão perfeita harmonia que pareciam naturais demais para ter sido planejadas.
Ela se voltou para a entrada do salão da frente, com o sofá de encosto duplo e a lareira Adam. Sobre a esculpida cornija de pinho da lareira viam-se lindos vasos idênticos com altas espigas de ranúnculo amarelo e frésia ladeando fotografias feitas em ferrotipia com molduras prateadas.
- A gente chega a esperar ouvir o farfalhar de saias sobre anquinhas. - murmurou Hermione.
- Era essa a idéia. Todas as mobílias, todos os esquemas de cor, são do período da Guerra de Secessão. Até os banheiros e a cozinha refletem a sensação, embora sejam modernizados pelo conforto e conveniência.
- Vocês devem ter trabalhado como loucos.
- Acho que sim. - disse Gina pensativa. - Durante quase o tempo todo não pareceu sequer trabalho. E o que acontece, imagino, quando a gente fica deslumbrada por aquela primeira explosão de amor.
- Explosão? - Hermione sorria ao voltar-se. - Parece assustador... e violento.
- E foi. Há muito pouca calma antes ou depois da tempestade, quando se lida com um Potter.
- E parece que é a maneira exata como você gosta.
- Parece que é. Quem teria imaginado?
- Bem, para dizer a verdade, eu sempre imaginei que você ia acabar com algum tipo de homem sofisticado, elegante, que jogasse squash para se manter em forma. Que bom que me enganei.
- Também acho. - disse Gina, entusiasmada, e balançou a cabeça. - Squash.
- Ou pólo. Talvez um estimulante jogo de tênis. - A risada de Hermione saiu gorgolejante. - Bem, Gina, você era sempre tão... arrumada e chique. - Ergueu uma sobrancelha e indicou com um gesto a prega afunilada na calça de marinheiro de Gina, os polidos botões do blazer com duas fileiras deles. - Ainda é.
- Sei que quer dizer isso da forma mais lisonjeira. - comentou secamente Gina.
- Nada disso. Eu pensava, se eu pudesse simplesmente usar o tipo de roupas que você usava... usa... fazer meus cabelos balançarem assim como os seus, não me sentiria tão chata de galocha.
- Você não era chata de galocha.
- Eu podia até dar aulas sobre a arte de ser. Mas... - ela correu a mão por sua jaqueta simples... - Estou aprendendo a disfarçar.
- Achei que tinha ouvido vozes.
Hermione olhou em direção à escada e viu uma pequena e esguia loura, com um bebê aconchegado em um saco preso acima dos seios. A primeira impressão que teve foi de tranqüila competência. Talvez fossem as mãos, pensou, uma apoiada primorosamente no corrimão encerado, a outra escorando com delicadeza o bumbum do bebe.
- Imaginei que estivesse aí. - Gina aproximou-se para dar uma espiada no bebê adormecido. - Luna, você andou trocando os lençóis mais uma vez com o bebe.
- Gosto de terminar tudo cedo. E Ally estava agitado. Esta deve ser sua amiga.
- Hermione, um gênio de garota. - disse Gina, com um afeto que fez Hermione rir, em vez de estremecer. – Luna Potter, gerente insubstituível da Pousada Potter.
- É um grande prazer conhecer você. - Luna tirou a mão do corrimão para oferecê-la.
- Ando doida para vir aqui há semanas. Deve ser um trabalho e tanto, administrar tudo isso.
- Quase nunca parece trabalho. Você vai querer visitar toda a pousada.
- Estou morrendo de vontade.
- Vou só terminar de arrumar lá em cima, me chame se precisar de alguma coisa. Tem café fresco na cozinha, e bolinhos leves.
- Claro que tem. - Gina riu e passou a mão pelos cabelos escuros de Ally. - Tire uma folga, Luna, e junte-se à visita. Hermione quer histórias.
- Bem...
Luna olhou para cima, uma óbvia expressão preocupada com camas não feitas.
- Eu ficaria muito grata mesmo. - interpôs-se Hermione. - Gina me disse que você teve algumas experiências que me interessam saber. Viu mesmo um fantasma.
- Eu...
Luna enrubesceu. Não era uma coisa que ela contava a muitas pessoas, não por ser estranha, mas por ser íntima.
- Tenho a esperança de documentar e registrar os episódios enquanto estiver aqui. - explicou Hermione incentivando-a.
- É, Gina me disse. - Então Luna inspirou fundo. - Vi o homem por quem Abigail Barlow estava apaixonada. Ele falou comigo.
Fascinante, era só o que Hermione conseguia pensar enquanto perambulavam pela pousada, com Luna contando-lhe a história em uma voz calma e tranqüila. Ficou sabendo do desgosto e assassinato, da perda do amor e das vidas arruinadas. Sentia calafrios borbulhando pela pele com as descrições de espíritos vagando. Mas não sentia qualquer necessidade profunda de concatenação. Um interesse, sim, e uma vigorosa curiosidade, mas nenhuma sensação de intimidade. Tinha esperança de sentir.
Admitiu para si mesma depois, ao encaminhar-se sozinha para a floresta, que esperara uma experiência pessoal, a visão, ou pelo menos a sensação, de algum fenômeno inexplicado. Seu interesse pelo paranormal aumentara com o passar dos anos, junto com a frustração de não ter contato algum com isso. A não ser nos sonhos - e sabia que era apenas a atividade do inconsciente, às vezes cheia de simbolismo, às vezes simples como uma idéia - nunca fora tocada pelo sobrenatural.
Embora a casa fosse indiscutivelmente linda, e trouxesse de volta ecos de um passado perdido, ela vira apenas a beleza. Fosse o que fosse que andava ali, não falara com ela.
Ainda tinha esperanças. O equipamento acabaria chegando, e Luna garantira-lhe que era bem-vinda a instalar-se em um quarto, pelo menos por alguns dias. Ao aproximar-se o aniversário da batalha, a pousada ficaria lotada com as reservas já agendadas.
Mas tinha algum tempo.
Quando pisou na floresta, Hermione sentiu um calafrio, mas apenas por causa da escuridão. Sabia que ali dois meninos haviam lutado, em essência matado um ao outro. Outros sentiram a presença prolongada, ouviram o choque das baionetas, os gritos de dor e espanto. Mas ela, não.
Ouviu o gorjeio de pássaros, o sussurro de esquilos movendo-se às pressas para acumular nozes, o fraco zumbido de insetos. O dia estava muito parado para o ar agitar as folhas, e as próprias folhas eram verde-escuras, nem sequer sugerindo o outono que chegaria dali a um mês.
Seguindo as competentes instruções de Luna, ela encontrou o agrupamento de pedras onde se dizia que os dois cabos se encontraram. Sentou-se em uma, tirou o caderno de anotações e começou a escrever o que transporia para o computador depois.
Houve apenas leves, e talvez auto-induzidas, sensações de déjà vu. Nada que se iguale àquela rápida e atordoante emoção ao visualizar o limite da fazenda Potter da estrada. É maravilhoso tornar a ver Gina, poder ver em primeira mão a felicidade, a família dela. Acho que deve existir mesmo o companheiro perfeito para algumas pessoas. Gina sem dúvida encontrou o dela em Draco Potter. Desprende-se dele uma sensação de força, uma arrogância, um potencial essencial para a ação física, que é estranhamente atraente, em particular, eu acharia, para uma mulher. Compensando isso, e talvez realçando, é o óbvio amor e a devoção à mulher e aos filhos. Formaram uma vida boa, e a pousada que criaram é bem-sucedida devido à visão dos dois. A localização e a história, claro, acrescentam-se ao seu sucesso. Sem a menor dúvida, a escolha que fizeram da gerente também foi inspirada.
Achei Luna Potter competente, organizada e tudo, menos indiferente. Há uma... quero dizer inocência nela. Mas é uma mulher adulta, com três filhos, um trabalho exigente e, pelo que Gina me relatou, um passado infeliz. Talvez doçura seja uma definição mais precisa. De qualquer modo, gostei imediatamente dela e me senti muito à vontade em sua presença. Esse bem-estar não é uma coisa que sinto com muitas pessoas.
Não vejo a hora de conhecer Rony Potter, o marido, que também é o xerife de Antietam. Será interessante ver o quanto ele se parece com os irmãos, não apenas no aspecto físico, mas na personalidade menos tangível embora igualmente forte.
Harry Potter tem uma personalidade impossível de esquecer. Mais uma vez a arrogância, embora ele talvez tenha um temperamento um pouco mais afável que o irmão mais velho, Draco. Eu teorizaria que Harry é um homem de grande sucesso com as mulheres. Não apenas devido à inquestionável e atordoante beleza, mas também ao alto grau de charme, e à descarada sexualidade. Isso é comum, eu me pergunto? E se assim é, deve-se à escolha de profissão?
Vi-me atraída de uma forma imediata por algo que nunca experimentei. No geral, não foi uma sensação desagradável, mas que julgo sensato guardar comigo mesma. Acho que um homem como Harry não precisa de qualquer tipo de encorajamento.
Hermione parou, franziu a testa e balançou a cabeça. As anotações, pensou com certa diversão, não eram nada científicas. Mas também, refletiu melhor, tratava-se mais do diário de uma odisséia pessoal.
Em todo caso, não senti nada fora do comum durante minha visita à Pousada Potter. Luna e Gina mostraram-me a suíte nupcial, que foi outrora o quarto de Abigail Barlow, um quarto onde ela viveu em reclusão nos últimos anos de vida. Um quarto onde morreu, na opinião de Luna, pelas próprias mãos, levada pelo desespero. Atravessei o quarto do senhor, o de Charles Barlow, até o das crianças, que agora é um quarto encantador, e a sala de estar. Explorei a biblioteca, onde tanto Gina quanto Luna afirmam ter tido fortes experiências de natureza paranormal. Não duvido da palavra delas, simplesmente invejo sua abertura para essas coisas.
Parece que, apesar de meus esforços ao contrário, continuo enraizada demais no racional. Aqui, na mata tão assombrada por mais de um século, sinto apenas a fria sombra, vejo apenas as árvores e as pedras. Talvez a tecnologia me ajude. Verei quando chegar meu equipamento. Enquanto isso, senti uma enorme vontade de conhecer a fazenda dos Potter. Não sei como serei recebida. Minha impressão foi que Harry tem a mente tão fechada para o paranormal quanto estou decidida a experimentá-lo. Mas, bem-vinda ou não, cortarei caminho pela floresta como me instruiu Luna. Mesmo que não sinta nada, será interessante ver de perto os detalhes de uma fazenda em atividade pela primeira vez.
E, em uma anotação pessoal, não será um sofrimento dar outra olhada de perto no fazendeiro. Ele é muito bonito.
Sorrindo para si mesma, Hermione fechou o caderno, guardou-o de volta na bolsa a tiracolo. Pensou que Harry na certa gostava de ser chamado de bonito. Imaginou que se habituara a isso.
O primeiro vislumbre da casa de fazenda veio do outro lado de um campo de terra não cultivada que emanava um forte cheiro de estrume. Ela não se incomodou com o cheiro, que de fato a intrigou. Mas tomou o cuidado de olhar por onde andava.
Era um cenário pacífico, céu azul, nuvens fofas, inofensivas, um velho salgueiro alastrado descansando graciosamente próximo a um riacho estreito. Pelo menos ela imaginou que fosse um riacho à direita, quando o ruído de água gorgolejante chegou com clareza. Viu renques de milho, fileira após fileira lançando-se acima para o sol. Campos de grãos dourando-se. Um grande celeiro envelhecido, com aquelas janelas estranhas que pareciam olhos, e uma torre azul-clara que ela imaginou que fosse um silo.
Mais silos, abrigos, estábulos com pequenos cam¬pos abertos anexos, chiqueiros e currais. Vacas, pensou com o ridículo sorriso da urbanista à visão delas pastando em um campo verde com pedras cinzentas dispersas por todo o pasto.
De longe era um cartão-postal, uma tranqüila e remota cena rural que parecia sempre haver sido assim. E a casa, pensou, no centro.
O coração batia rápido e nitidamente antes de ela dar-se conta. Hermione parou onde estava, respirando com cuidado ao examinar a casa.
Era de pedra, provavelmente da mesma pedreira que a da pousada. Nessa construção a pedra parecia menos elegante, mais robusta e simples. As janelas eram quadradas demais e comuns, no prédio de dois andares, e a larga varanda, nos fundos, de uma madeira parda desbotada. Ela se perguntou se havia uma varanda na frente, e imaginou que sim. Com uma espaçosa cadeira de balanço, talvez duas. Deveria ter uma projeção avançando do telhado que proporcionava sombra e impedia a chuva de cair na varanda durante uma tempestade, para que as pessoas pudessem sentar-se e ver as nuvens se acumulando.
Em meio ao zumbido na cabeça, ela ouviu o latido de cachorros, mas mal o registrou. Examinou as chaminés, as venezianas de cor cinza que teve certeza serem mais práticas que simplesmente decorativas. Quase se imaginava estendendo os braços e fechando-as para proteger a casa do frio da noite, remexendo o fogo da cozinha para ainda haver brasas de manhã.
Por um instante a casa ficou tão clara, quase perfeita em suas linhas e cores contra o céu, que poderia ter sido uma fotografia. Então ela piscou os olhos e soltou a respiração que não percebera que vinha prendendo.
Era isso, claro, compreendeu. Uma fotografia. Gina descrevera-lhe a fazenda, dera-lhe uma imagem tão detalhada, que Hermione decidiu que era sua própria lembrança da descrição, e a capacidade de projetar e reter, que tornava tudo tão conhecido. Tão misteriosamente conhecido.
Riu de si mesma e continuou a andar, hesitando apenas um breve momento, quando dois grandes cachorros amarelos saltaram em sua direção. Gina também lhe dissera que Harry tinha cachorros, os pais do cão de caça dourado da amiga. Hermione não se importava com animais. Na verdade, até gostava deles, de uma maneira distante. Mas era óbvio que esses cachorros não tinham a menor intenção de manter distância. Corriam à sua volta, latindo, as línguas de fora, batendo os rabos para a frente e para trás em um turbilhão de pêlo.
- Cachorros bonzinhos. - Pelo menos esperava que fossem, e estendeu a mão para testar. Quando viu os dedos farejados e depois lambidos prodigamente, e não arrancados em uma junta, ela relaxou. - Cachorros bonzinhos. - repetiu mais firme, e reuniu coragem para esfregar cada cabeça amarela. - Cachorros bonzinhos e grandes. Fred e Ethel, certo?
Em assentimento, cada cachorro deu um latido gutural, e os dois voltaram correndo em direção à casa. Tomando isso como um convite, Hermione seguiu-os. Porcos, pensou, e parou junto ao chiqueiro para examiná-los clinicamente. Não eram nem de longe tão enlameados quanto imaginava. Mas, sem dúvida, maiores do que imaginara que um porco fosse. Quando eles grunhiram, roncaram e amontoaram-se perto da cerca onde ela estava, Hermione sorriu. Abaixava-se para enfiar a mão pelos sarrafos da cerca e experimentar a textura da pele do porco, quando uma voz a deteve.
- Eles mordem.
Ela retirou a mão como um foguete. Lá estava Harry, parado a dois metros, trazendo uma enorme chave de parafuso. Ela ficou com a mente inteiramente em branco. Não era medo, embora ele parecesse perigoso. Era, perceberia mais tarde, absoluto choque sexual.
Ele tinha manchas de graxa nos braços, braços que brilhavam de suor e ondulavam de músculos. Braços, ela pensou, estonteada, atordoantemente nus. Usava uma camiseta minúscula, tipo regata, que fora com toda probabilidade branca um dia. Era agora cinza encardido, desbotada, colada, rasgada e enfiada em uma calça jeans que caía bem abaixo da cintura, esbranquiçada de lavagem nos joelhos. Prendera um lenço azul cm volta da testa como uma faixa para absorver o suor, com todos aqueles maravilhosos cabelos pretos encaracolados acima em um glorioso emaranhado.
E sorria. Um sorriso, Hermione teve certeza, que refletia um tranqüilo conhecimento de seu efeito no organismo feminino.
- Morder. - ela repetiu, repelindo a nuvem erótica que a cobria como uma fina chuva.
- Isso mesmo, doçura. - Ele enfiou a chave de fenda no bolso de trás quando se aproximou dela. Ela estava tão atraente, pensou, ali parada de jaqueta sem feitio, espremendo os olhos dourados contra o sol. - São vorazes. Se a gente não tem comida na mão quando a estende, eles se satisfazem com os dedos. - Descontraído, tomou-lhe a mão na sua e examinou os dedos um por um. - Bonitos dedos, ainda por cima. Longos e finos.
- Os seus estão sujos.
Surpreendeu-a as palavras não saírem em um coaxar.
- Eu estava trabalhando.
- E o que vejo. - Ela conseguiu dar um sorriso amigável ao desprender a mão. - Não tenho a intenção de interromper.
- Está tudo bem. - Ele assanhou o pêlo dos cachorros, que haviam voltado para juntar-se aos dois. - O ancinho precisava de um ajuste, só isso. - Ela ergueu as sobrancelhas, espantada.
- Você arranjou essa sujeira consertando um ancinho?
A covinha dele fulgiu.
- Não me refiro a um pau com dentes na ponta, menina da cidade. Já esteve na pousada?
- Estive. Conheci Luna. Ela me mostrou tudo. Vai me dar uma carona de volta para a casa de Gina quando eu terminar. Como estava na vizinhança... - Ela diminuiu a voz e tornou a olhar dentro do chiqueiro. - Nunca vi porcos de perto. Queria saber como eram.
- Quase todos são glutões. - Então ele sorriu mais uma vez. - E também ariscos. - disse. - E têm o pêlo cerdoso. Não muito agradáveis ao afago.
- Oh. - Ela teria gostado de ver por si mesma, mas tratou de manter os dedos simplesmente onde estavam. Em vez disso, virou-se de costas e deu uma longa examinada na fazenda. - É um lugar e tanto. Por que não plantou alguma coisa ali?
- A terra precisa descansar durante uma estação de vez em quando. - Ele olhou para o campo não cultivado próximo às matas. - Não vai querer mesmo uma palestra sobre a rotatividade da cultura agrícola, vai?
- Talvez. - Ela sorriu. - Mas não agora.
- Então... - Harry apoiou a mão na cerca ao lado dela. Uma tática padrão de flerte, pensou Hermione, e disse a si mesma que estava acima de tais manobras. - O que quer mesmo?
- Uma olhada ao redor. Se não for atrapalhar.
Embora o instinto a incitasse a curvar os ombros, afastar-se, ela continuou com o queixo erguido e os olhos nos dele.
- Mulheres bonitas nunca atrapalham. - Harry retirou o lenço, usou-o para limpar as mãos e enfiou-o no bolso. - Venha. - Antes que ela pudesse evadir-se, ou pensar nisso, ele tomou-lhe a mão na sua. A textura da palma registrou-se. Dura, grossa de calos, forte. Quando contornaram um abrigo, ela viu de relance uma peça de maquinaria grande, de aspecto perigoso, com dentes maus. - Isto é um ancinho. - ele disse com doçura.
- Que fazia nele?
- Consertava.
Ele se encaminhou em direção ao celeiro. Sabia que a maioria das pessoas da cidade queria ver um celeiro. Mas quando passaram pelo galinheiro, ela parou.
- Você também cria galinhas. Para ter ovos?
- Para ter ovos, certo. E para comer. - Ela ficou com a pele um pouco verde.
- Você come suas próprias galinhas?
- Doçura, pelo menos eu sei o que entra nas minhas. Por que iria pegar um pacote de pedaços de galinha no supermercado?
Ela emitiu um ruído estranho e olhou para trás, em direção ao galinheiro. Interpretando-a com perfeição, Harry sorriu.
- Quer ficar para jantar?
- Não, obrigada. - ela respondeu acovardada. Ele simplesmente não pôde evitar.
- Já viu um porco sendo abatido? É um senhor acontecimento. Uma verdadeira confraternização. A gente em geral faz isso aqui uma vez por ano, engancha a coisa com um levantamento de fundos para o corpo de bombeiros. Matança de porco e um café-da-manhã com direito a panqueca e tudo que você possa comer.
Ela apertou com a mão a barriga instável.
- E invenção sua.
- Neca. Você não conhece o gosto da lingüiça enquanto...
- Ando pensando em me tornar vegetariana. - ela se apressou a dizer, mas se recompôs. - Trabalhou muito bem, menino da roça.
- Foi difícil demais resistir. - Apreciando a rápida recuperação dela, ele deu-lhe um rápido aperto de mão. - Havia uma expressão nos seus olhos, como se estivesse calculando cada esganiçado grito e cacarejo, arquivando tudo em algum lugar para um relatório sobre "a típica fazenda americana".
- Talvez estivesse. - Ela protegeu os olhos com a mão estendida para examinar o rosto dele. Era mesmo um homem de aparência muitíssimo admirável. - Os detalhes me interessam. E os relatórios também. Muitos detalhes, e a gente tem um relatório. Um bom relatório é igual a uma imagem nítida.
- A mim me parece que alguém que se interessa por detalhes, relatórios e imagens nítidas não andaria por aí à caça de fantasmas.
- Se os cientistas não estivessem interessados em explicar o desconhecido, você ainda estaria trabalhando sua terra com um machado de pedra e oferecendo sacrifícios ao deus do sol.
Com isso, ela entrou no celeiro. Baias e pisos de concreto que se inclinavam. Feno, partículas de pó que causavam coceira no nariz. A luz era mais fraca ali, e o cheiro de animal, mais forte. Hermione encaminhou-se para os estábulos e soltou um grito agudo quando uma enorme cabeça bovina despontou acima de uma porta e mugiu para ela.
- Ela pegou uma infecção. – disse Harry, e sensatamente disfarçou a risada com uma tossida. - Tive de separá-la do resto do gado.
O coração de Hermione refazia devagar o caminho da garganta até o lugar certo abaixo.
- Oh. E enorme.
- Na verdade, se inclui no grupo das menores. Pode tocar nela. Aqui, no topo da cabeça.
Tomando-lhe a mão relutante, segurou-a entre a sua e a vaca. Hermione achou difícil decidir qual textura era mais dura.
- Ela vai ficar bem?
- Vai, já está se recuperando.
- Você mesmo trata do gado? Não emprega um veterinário?
- Não para cada coisinha. - Ele gostou da sensação da mão dela sob a sua, a forma como ficou tensa e depois relaxou devagar. Como tinha agora os dedos estendidos e corria-os curiosamente pela vaca desinteressada. - Você não corre para o médico toda vez que espirra, corre?
- Não. - Ela sorriu e virou a cabeça. - Mas imagino que não ache antibióticos de vaca na farmácia local.
- Um depósito de ração e grãos vende quase tudo que se precisa. - Mas o que o interessava no momento era o jeito com que ela o olhava. Tão fria, tão objetiva. Representava um desafio a que ele não podia resistir. Deliberadamente baixou o olhar para sua boca. - O que faz com todos os diplomas universitários que Gina disse que tem?
- Coleciono. - Com um esforço, ela manteve a voz leve. - E uso como blocos de construção, para chegar ao seguinte.
- Por quê?
- Porque conhecimento é poder. - Lembrar disso e usar o conhecimento de que ele a provocava com sua fácil sexualidade deram-lhe força para afastar-se. - Você sabe que estou interessada na própria fazenda, e quando tivermos mais tempo espero que me mostre mais. Mas o que eu realmente queria ver agora é a casa e a cozinha onde o jovem soldado morreu.
- Já limpamos o sangue muito tempo atrás.
- Que bom saber. - Ela inclinou a cabeça. - Tem algum problema?
É, tinha um problema. Dois. O primeiro era que ela o vinha expulsando como se ele fosse uma mosca.
- Gina me pediu para cooperar, e assim farei. Por ela. Mas não gosto muito da idéia de você escarafunchando minha casa à procura de fantasmas.
- Certamente você não tem medo do que eu talvez encontre.
- Eu não tenho medo de nada. - Ela tocara um nervo. Exposto. - Eu disse que apenas não gosto.
- Que tal a gente entrar, você pode me oferecer uma bebida gelada, e a gente vê se consegue encontrar algum tipo de solução conciliatória?
Era difícil discutir com a razão. Ele tomou de novo a mão dela, mais por hábito que por paquera. Quando chegaram à porta dos fundos, já decidira fazer mais uma tentativa de flerte. Ela tinha um cheiro danado de bom para uma cientista. Nunca beijara uma cientista, pensou. A não ser que se incluísse Bess Trulane, a dentista. Tinha um pressentimento de que a fria e sarcástica boca de Hermione seria muito saborosa.
- Tenho chá gelado. - ofereceu.
- Ótimo.
Foi só o que ela disse ao parar logo na entrada da porta, olhando em volta com olhos escuros, procurando. Alguma coisa. Sabia que tinha alguma coisa ali, uma sensação quase ao alcance, bloqueada, pensou, por aquela quase dominante aura masculina que Harry emanava. Obscurecia tudo, concluiu aborrecida. Com certeza obscurecia o cérebro também.
Mas existia alguma coisa ali, em meio aos azulejos esfregados, às imaculadas bancadas e aos velhos, mas cintilantes eletrodomésticos.
Era uma cozinha de bom tamanho, acolhedora, com os armários cobertos de vidro mostrando os pratos de uso diário. A que ela imaginava que se chamaria cozinha de família, cheia de espaço para a ação, grande mesa de madeira, cadeiras resistentes com assento de junco. O jornal matutino continuava na mesa, onde ele o deixara, ela supôs, após lê-lo com o café-da-manhã.
Viam-se vasinhos de plantas verdes no peitoril. Ela reconheceu-as pelo cheiro, além da visão. Alecrim, manjericão, tomilho. O sujeito ainda por cima cultivava ervas na cozinha. Isso a teria feito sorrir, se não estivesse tentando antecipar-se a ele em relação ao que a dependência lhe reservava.
Harry trazia dois copos cheios de chá dourado, a testa franzida. Aqueles olhos dela eram aguçados, tão alertas como os de uma corça. E os ombros, sob a enorme jaqueta, duros como ripas de madeira. Deixava-o nervoso, e apenas um pouco irritado, o fato de ela examinar suas coisas e ver o que ele não via.
- Nunca viu uma cozinha antes?
Colando um frio sorriso no rosto, ela virou-se para ele. Precisava ficar a sós ali, decidiu. Alguns minutos a sós, e talvez superasse aquele bloqueio.
- É incrivelmente sexista de minha parte, mas eu não esperava encontrá-la tão limpa e organizada. Você sabe, o alegre solteiro, morando sozinho, recebendo mulheres dispostas e amigos de pôquer.
Desta vez ele ergueu uma sobrancelha.
- Eu em geral não os recebo ao mesmo tempo. - Entregou-lhe o copo. - Minha mãe era muito rígida quanto à limpeza da cozinha. A gente come e cozinha aqui. E como ter certeza de que a leiteria seja esterilizada.
- A leiteria. - Tinha um som encantador. - Eu gostaria de conhecer na próxima vez.
- Venha por volta das seis da manhã, que pode vê-la em funcionamento. Não quer tirar esse blusão? Está quente.
E queria ver o que tinha embaixo.
- Estou bem. - Ela deslocou-se para a janela dos fundos. - Que linda vista. Todas as janelas por onde olhei desde que cheguei aqui têm vistas adoráveis. Ficou imune a elas?
- Não. A gente se torna proprietário. - Para satisfazer-se, ele passou de leve um dedo pela nuca de Hermione. Ela ficou imóvel como uma pedra. - Você tem bonitos cabelos, Hermione. Pelo menos, o que restou deles. Claro, picado assim, mostra a linha do pescoço, e é um belo pescoço. Longo, branco e macio.
Ela recitava um pedaço da tabela periódica na cabeça, para estar calma quando se voltasse para ele. Pensando nisso mais como uma defesa que como um desafio, arqueou uma sobrancelha e curvou os lábios em um sorriso divertido.
- Está me seduzindo, garoto da fazenda?
Não podia negar que queria uma parte dela, percebeu Harry, com uma pontada de irritação. Queria especificamente a parte que tornava a voz tão fria e presunçosa.
- Tenho curiosidade. - Ele pôs o copo na bancada atrás de Hermione e depois tomou o dela, pondo ao lado do seu. Em um movimento suave, bem treinado, engaiolou-a. - Você não?
- Os cientistas são curiosos inatos.
Ele cheirava-a agora, limpa, sabonete puro e uma sugestão cítrica.
- Que tal uma experiência?
Ela se recusou a mexer-se, a gaguejar e até a deixá-lo perceber, mesmo por um instante, que aquilo estava, de certa forma, muito além da compreensão.
- De que tipo?
- Bem, eu faço isso...


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