CAPÍTULO IX



— ENCONTREI MINHA mulher e meu filho enforcados nos jardins de nossa casa, a qual haviam ateado fogo.

As mãos de Harry estavam cerradas sobre seu colo, e Annah colocou uma mão em cima das dele.

— Tiago era apenas um menino.

— Mas maculado por ter uma mãe vampira.

Para a surpresa dela, ele virou a palma de uma das mãos para cima e agarrou a dela antes de prosseguir com sua história.

— Eu quis tirá-los de lá, enterrá-los. Só que os assassinos de Constantino haviam retornado, ansiosos por derramar mais sangue. De modo que fugi para a casa de meu pai, achando que estaria a salvo lá.

Ele apertou a mão dela. Seu olhar brilhava devido às lágrimas contidas. Sua voz, quando ele continuou, estava rouca com as emoções que tentava reprimir. Emoções que delineavam as íris verdes escuras de seus olhos com o apavorante brilho do demônio.

— Estavam todos mortos. Minha mãe e meu pai. Meus tios e meu primo, que mal haviam entrado na adolescência. Massacrados por minha causa.

Annah levou a mão à face dele.

Não por sua causa. Foi porque aqueles assassinos tinham medo de algo que fosse diferente deles.

— E todos os humanos não temem a mesma coisa? Você não enfiaria uma estaca no meu peito se tivesse a oportunidade?

— Não sou assim. Eu...

— Poderia aceitar o que eu sou? — ele desafiou arqueando sarcasticamente a sobrancelha, todo e qualquer traço de sua vulnerabilidade anterior emparedado atrás das feições duras de seu rosto.

Será que poderia? Annah se perguntou, passando o polegar pelos lábios dele. Lábios humanos, agora, mas na sua cabeça estava a lembrança das presas letais. Do arranhão no seu lábio e da dentada dolorosa da noite anterior.

Lentamente, ela retraiu a mão. Ele tinha mais razão do que estava disposta a admitir, sempre havendo se considerado muito liberal e sem preconceitos.

Seu encontro com Harry estava mostrando que ela estava errada de diversas maneiras.

Os lábios dele se curvaram em um sorriso zombeteiro, mas, antes que ele pudesse censurá-la, uma batida veio da porta.

A pedido de Harry, Dobby adentrou o aposento, empurrando o carrinho já quase familiar. Se ele achou estranho ela estar livre e compartilhando a cama com Harry, nada disse. Apenas empurrou o carrinho até a mesinha que ela havia notado antes, na outra extremidade do quarto. Ele rapidamente transferiu o conteúdo do carrinho para a mesa e deixou o quarto.

— Está com fome? — perguntou Harry, ao descer da cama e se dirigir para a mesinha, a túnica e ticando-se até pouco acima dos joelhos, deixando à mostra a musculatura definida de suas pernas.

Ela também desceu da cama e se juntou a ele, a seda roçando sensualmente em sua pele. Ele a observou aproximando-se com o desejo nos olhos.

Desejo humano.

Dentro dela, algo despertou com aquele olhar, contradizendo seus pensamentos anteriores de que não poderia aceitar o que ele era. Quando ele tinha esta aparência, e a admirava deste jeito, era fácil esquecer que ele era um demônio que havia lhe sugado o sangue. Que pretendia drená-la por completo a não ser que...

Ela o convencesse de que era diferente. Será que isso seria o bastante? Annah se perguntou, mas ao se lembrar do desgosto dele pelo sino e pelo traje de Papai Noel, suspeitou que talvez não fosse.

Tinha de descobrir o que seria o bastante, pois a resposta poderia significar a própria salvação.

À mesa, ele se comportava tão bem quanto qual quer outro cavaleiro educado. Puxou a cadeira para ela, mas, em vez de se sentar do outro lado da mesa, sentou-se ao lado dela. Como um amante.

Ele lhe serviu queijos, presunto, azeitonas e alguns legumes da pequena bandeja de antipasto. Os aromas eram acentuados e ordinários, em contraste com o aroma levedado do pão. Ele lhe passou uma fatia antes de se servir da mesma comida.

Ela lembrou-se de tê-lo visto comendo na noite anterior, e não pôde deixar de perguntar em voz alta:

— Vampiros comem?

Com um dar de ombros, Harry espetou com o garfo um pedaço de queijo e o colocou na boca. Ao mastigar, disse:

— Não nos traz nenhuma sustância, mas ainda podemos saborear o gosto.

— Neste caso, costuma ingerir comida com freqüência, ou só quando tem convidados?

Ele estava mergulhando um pedaço de pão no óleo de oliva dos legumes. Deteve-se em meio ao movimento.

— Não tenho convidados...

— Tem refeições?

Harry riu e retomou o que estava fazendo.

— Se por refeições quer dizer humanos, a resposta é “não”.

— Então recebe convidados...

— Não recebo convidados. Nunca. Agora, coma — disse, reforçando a ordem ao colocar uma azeitona na boca de Annah.

Esta se recordou das palavras dele na noite anterior, sobre manter suas forças. Queria que ela comesse e ficasse forte para que ele ficasse satisfeito quando se alimentasse.

Embora ainda estivesse com fome, empurrou o prato para longe.

— Perdi o apetite.

— Covarde. De algum modo, esperava mais de você, sendo uma colega sanguessuga e tudo mais.

Ele continuou a comer, aparentemente inalterado.

— Não estou no auge de minha forma esta semana. Devido ao fato de estar de férias. E que férias elas estão sendo.

Harry a examinou, sentada ao seu lado, com as mãos sobre o colo e a cabeça baixa.

— Férias de final de ano?! Suponho.

Ela assentiu, e uma espessa mecha de cabelos balançou para frente e para trás com o movimento, tapando-lhe a visão. Ele estendeu a mão e a prendeu atrás da orelha dela, precisando ver-lhe o rosto expressivo.

— Conte-me o que havia planejado fazer. Um dar de ombros fez com que a manga da túnica saísse do lugar, revelando a pele morena da parte superior de seu braço. Ele passou o dedo ao longo do contorno de seu ombro, e ela estremeceu com o toque dele.

— Eu sou tão revoltante assim?

Com um olhar rápido na direção dele, Annah disse:

— Depende.

Ele não tinha dúvidas do que isso dependia.

— Se eu prometer permanecer humano, vai comer?

Ela franziu a testa ao considerar a proposta. Confusão e algo mais passaram pelo seu olhar.

— Tornaria muito mais fácil para você, não tornaria? — ele disse.

Sua confusão aumentou, e ela franziu ainda mais a testa.

— Mais fácil? Como?

Ele lhe acariciou a saliência da clavícula com o polegar, antes de descê-lo até pouco acima do volume dos seios. Outro tremor percorreu o corpo da moça, porém, desta vez, de modo diferente.

— Tornaria mais fácil para você lidar com este... desejo. Com sua atração por mim.

Ele ousou descer a mão mais um pouco e passou o polegar pelo mamilo rijo. O tremor que lhe percorreu o corpo desta vez foi mais violento. O suspiro que escapou de seus lábios não deixava dúvida quanto ao efeito que ele tinha sobre ela.

— Não quer se deliciar com minha escuridão.

— Não — explodiu de seus lábios quando Harry apertou o mamilo entre o polegar e o indicador e o torceu gentilmente.

Verdade seja dita, ele também não queria desejá-la. Ela era bondade e luz e, pior ainda, humana. Desejá-la poderia lhe trazer nada além de mais dor durante outra lúgubre temporada natalina.

Ele teve de arrastar a mão para longe dela. Forçar-se a não remover a túnica de seda do corpo de Annah. Queria explorar o resto de seu corpo. Saborear o calor e a vida pulsando sob a sua pele. Mergulhar nas profundezas úmidas de sua feminilidade e ouvi-la gritando o nome dele quando a penetrasse.

— Vejo que não sou a única que não quer isso — ela disse, seu olhar descendo abaixo da cintura dele, por um instante, antes de se fixar no dele.

— Não, não quero.

— Neste caso, o que isso faz de nós, Harry? — ela perguntou, e ouvir seu nome dos lábios dela fez com que sua ereção já dolorosa ficasse ainda maior.

— Loucos — ele admitiu, arrancando uma risadinha dela.

Ele, mais uma vez, desviou seu olhar para a mesa, de onde retirou a louça suja e ajeitou tudo para o próximo prato da refeição. Estendendo a mão na direção de outra das bandejas trazidas por Dobby, ele usou a colher para servir nos seus pratos os delicados fios de cappellini imersos em um molho de amêndoas. Ao terminar, apontou para a massa e disse:

— Coma.

Ela obedeceu. A princípio hesitante, mas, após alguns goles de vinho, atacou a refeição com gosto, até que o prato diante de si estivesse vazio.

— Estava muito bom — ela disse, e ele assentiu em sinal de concordância.

— A mulher de Dobby, Winky, é uma cozinheira e tanto.

— Dobby tem família? — ela indagou, pegando outro pedaço de pão da cesta.

— Ele mora nos três andares de baixo, em troca de cuidar de mim.

Annah estava prestes a dizer que era um negócio e tanto morar em uma luxuosa casa num bairro nobre de São Paulo em troca de bancar o zelador, até que pensou no que mais o zelador teria de fazer, como livrar-se das sobras de Harry. Só que ele havia dito que jamais recebia ninguém ali.

— Sou a única... janta que já trouxe para casa?

Ele riu.

— E essa é a vivacidade que me intrigou.

Quando ele tirou a mesa mais uma vez, ela insistiu na pergunta.

— Sou, ou tirar o seu lixo faz parte das responsabilidades de Dobby?

Ele se deteve ao pousar o prato diante dela.

— Você é a única humana que já trouxe para dentro de minha casa.

O prato fez um barulho alto ao ser pousado sobre a mesa, e, com movimentos rápidos, ele serviu outra comida, fatias de vitela banhadas em um molho marrom.

— Ainda não me contou nada sobre você mesma — ele disse.

Dando de ombros, ela o lembrou:

— Como já disse, sou uma pessoa comum. Ele fixou o olhar nela, sombrio e insistente. Ao falar, seu tom de voz era baixo, como o de um amante no meio da noite.

— Você é tudo, menos comum, Annah. Mas, desconfio que já saiba como é bonita.

Na verdade, ela não sabia. Nunca fora do tipo de colocar muita fé na sua aparência, preferindo contar com a inteligência e outras habilidades para obter sucesso. Naquele instante, ela se deu conta de que, se ele a achava bonita, talvez a sedução pudesse ser bem-sucedida onde a inteligência falhara.

— Talvez não seja algo que os homens de minha vida tenham feito questão de mencionar — ela disse, o que não deixava de ser verdade.

Bem, talvez fosse forçar um pouco a barra, considerando que podia contar nos dedos de uma mão os homens com quem já havia estado. Tudo bem, talvez nem todos os dedos de uma mão, apenas três, pensou.

Um sorriso malicioso desenhou-se nos cantos dos lábios dele.

— Você não mente muito bem.

— Por que diz isso?

Ela comeu um pedaço da vitela e a achou saborosa. O molho continha pedaços de champignon, o que intensificava o gosto de comida.

— Desconfio que não tenha tido muitos homens durante a sua vida. Mas, não vou me incomodar se quiser tentar provar que estou enganado.

Ela deixou o garfo cair no prato, onde ele fez barulho ao se chocar com a porcelana cara e espirrar um pouco de molho sobre a toalha de mesa branca.

— Como disse? Provar que está enganado?

Ele abaixou o próprio garfo com cuidado e virou-se na cadeira para fitá-la de frente.

— Isso mesmo, provar que estou enganado. Seduza-me.

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