CAPÍTULO VIII



O CALOR DELA, macio e feminino, se esgueirou para dentro de sua consciência junto com o chamado da noite.

Harry abriu os olhos para encontrar as pernas deles entrelaçadas e o seu braço sobre a cintura da mulher.

Annah estava dormindo ao lado dele, com as mãos ainda amarradas, mas ele podia ver alguns fios para fora do nó em ângulos esquisitos. Ela havia tentado roer suas amarras.

Não pôde deixar de lhe admirar a coragem. Ao afastar as cobertas, também não pôde deixar de lhe admirar as curvas fartas do corpo, ainda em maior evidência devido ao modo como a seda se apegava a ela. O tecido fino cor-de-creme também deixava à mostra as aureolas escuras dos mamilos dela.

Ele sentiu vontade de tocar. De provar. Nos seus sonhos já havia feito ambos, e muito mais. Um sorriso veio aos seus lábios ao se recordar dos sonhos em questão.

— Você não é tão assustador assim quando sorri — ela disse, a voz rouca de sono.

Ele esforçou-se para eliminar o sorriso do rosto, embora as palavras dela apenas o fizessem querer sorrir ainda mais.

— Assustador é bom — ele disse e, para provar o seu ponto de vista, convocou o demônio.

Ela não reagiu visivelmente, embora ele houvesse lhe escutado o coração bater um pouquinho mais rápido. Onde as pernas estavam entrelaçadas, ele pôde lhe sentir a pele se arrepiar, antes que Annah se desse conta da intimidade da posição e tirasse as pernas de sob as dele.

Ele, na mesma hora, sentiu falta de sua presença e voltou à forma humana, querendo retornar à sensação de conforto de antes. Há muito tempo que não sentia algo parecido.

— Conte-me um pouco de si mesma — ele disse, percebendo que, além do fato de ela ser advogada, não sabia quase nada a seu respeito.

— Não há muito o que dizer. Sou uma pessoa comum...

— Com uma vida comum?

— Maçante, comparado ao que já deve ter visto em sua longa existência.

— Conte assim mesmo.

Estava ansioso para escutar sobre as coisas de uma vida comum.

— Sente falta de ser humano, não sente? — ela perguntou, mexendo-se na cama.

Ao fazê-lo, ela fez uma careta e gemeu.

Uma emoção indesejada e muito pouco sentida despertou no íntimo dele: culpa.

— Você está...?

— Bem? Estou amarrada a uma cama e, em algum momento do dia de hoje, vou me tornar a sua refeição. Como posso estar bem? — ela disse, aumentando o volume de sua voz com cada palavra que proferia.

Ela puxou violentamente as amarras, mordendo o lábio inferior para conter as pontadas de dor.

Harry observou seus esforços, e disse:

— Se eu lhe soltar as mãos...

— O que eu lhe darei em troca? O que eu tenho que você não poderia tomar sem pedir?

Ela tinha razão ao dizer que ele poderia tomar tudo que queria, mas, o que mais desejava, não queria tomar.

— Quero beijá-la.

Annah quase se retraiu. Não só pelo pedido, mas pelo traço de necessidade que detectou na voz dele.

— Um beijo?

Ela o observou, tentando ler o rosto do homem em busca de confirmação das emoções que havia escutado.

Diferente da expressão dura e desapaixonada que havia visto naquela primeira noite, hoje o rosto dele estava vivo com sentimentos. A escuridão de seu olhar brilhava, e um ligeiro sorriso esboçava-se em um dos cantos dos lábios, O sorriso se alargou quando ele se deu conta de que detinha toda a atenção dela.

— Um beijo? Onde? — perguntou Annah.

— Onde eu quiser.

Seu olhar se fixou em seus lábios, antes de descer para os seios, onde permaneceu.

O ardor tomou conta do corpo da mulher, e seus mamilos se enrijeceram em resposta. Ela se mexeu, tentando aliviar o desconforto, mas o roçar gentil do tecido apenas aumentou a sua aflição.

— E então? Posso?

Ele se mexeu mais para perto dela na cama, até que as pernas mais uma vez se tocassem e o volume de sua ereção roçasse na maciez de sua barriga.

— Pode o quê? — ela indagou quando Harry levou a mão à face dela.

— Beijá-la. Um simples beijo. — As palavras vieram como um simples sussurro, baixinho e urgente, despertando com suas vibrações uma necessidade entre as pernas de Annah. Depois, ele passou o polegar sobre seus lábios e disse: — Aqui.

Os sentidos dela estavam sobrecarregados. Ela gostaria de poder dizer que era devido a algum feitiço vampiresco, mas suspeitava não ser esse o caso.

— Vai me libertar...

— Eu a desamarrarei... por algum tempinho.

Ele levantou o dedão até a face dela, uma carícia delicada, e fixou o olhar nos seus lábios.

Ficar livre, mesmo que apenas por um instante, seria o paraíso.

E seria apenas um beijinho, ela tentou se convencer ao assentir. Ele diminuiu a distância entre os dois.

Estavam colados corpo a corpo. O dele rijo e másculo, porém, ainda gelado pela noite. Ela ignorou essa característica da imortalidade quando ele curvou a cabeça em sua direção.

Harry hesitou, e a fitou nos olhos. Buscando o quê? Aceitação? Consentimento?

Mas, depois, ele fechou os olhos e, hesitantemente, avançou com os lábios em sua direção. Ela fez o mesmo, dividida entre ignorar e aproveitar o beijo. Mas, quando ele encostou os lábios gelados nos dela, foi impossível para Annah ignorá-lo.

Ela se entregou ao singelo beijo, roçando repetidamente os lábios nos dele até que eles estivessem quentes. Úmidos, quando ela entreabriu a boca e lhe aceitou o deslizar da língua por eles, antes que esta mergulhasse em sua boca.

Ele gemeu, um som muito humano que reverberou pelo corpo da moça.

A mão do vampiro voltou a se plantar em sua cintura. Ao continuar beijando, ele aplicou um pouco de pressão para aproximar os corpos, até que os seios dela estivessem colados no peito dele, e Annah não tivesse como lhe ignorar a ereção.

Ela arquejou ao lutar consigo mesma. Não deveria responder a toda aquela evidente e perfeita masculinidade que se colava nela. A boca e língua hábeis que estavam transformando o inicial beijo singelo no tipo compartilhado por amantes de longa data.

Só que os dois não eram amantes e, quando algo afiado e ameaçador roçou no lábio inferior dela, ela se viu lembrada do motivo de isso ser uma impossibilidade.
Ele praguejou baixinho e afastou-se. Quando o fez, Annah notou o vestígio de uma das presas e o vermelho vivo de seu sangue onde ele a havia acidentalmente cortado. Ao fitá-lo nos olhos, o arrependimento neles despertou uma emoção que ela não queria admitir.

— Odeia isso quase tanto quanto odeia a parte de si mesmo que ainda deseja uma humana — ela disse, tentando estabelecer um distanciamento necessário entre os dois.

Tanto porque o beijo havia sido tentador demais quanto porque ela queria entender a criatura complexa que ele era.

A reação de Harry foi rápida.

Desfez os nós das amarras ao redor dos pulsos dela. Quando suas mãos estavam livres, ele as fitou, notando as partes onde elas estavam em carne viva, onde a seda havia cortado sua pele durante seus esforços para se libertar. Harry passou gentilmente os dedos por elas, antes de erguer o olhar para encontrar a expressão confusa de Annah.

— Fiz uma promessa que pretendo cumprir. Não confunda isso com gentileza, porque seria um erro grave.

A mão dela passou sobre a dele, seu toque consolador. Talvez doesse menos se ela lhe enfiasse uma estaca no coração. Ele retraiu abruptamente as mãos, mas isso não pareceu dissuadi-la.

Ela levou a mão à sua face, passando o polegar pelos seus lábios, ainda úmidos e quentes devido ao beijo deles. Para a surpresa de Harry, Annah tocou de leve a presa que a havia arranhado, aparentemente sem se intimidar com sua presença. Quando o seu olhar se fixou no dele, ela disse: Conte-me por que odeia tanto, Harry. Para a própria surpresa, ele o fez.







Roma
311 d.C.



Já fazia quatro anos desde que aquele fatídico encontro amoroso no saturnal havia acabado com uma existência e lhe presenteado com outra. A princípio, odiara Selene, confuso como estava com o que ela havia feito dele e com tudo que lhe parecia proibido após sua transformação.

Não era mais humano, e todas as coisas humanas pareciam estar além de seu alcance.

Mesmo algo simples como uma caminhada matinal não era mais possível, embora houvesse descoberto que, no final da tarde, podia sair.

Para compensar a nova existência, havia se perdido em intermináveis horas de trabalho durante o dia e em inexpressivos encontros amorosos noturnos que visavam satisfazer os novos desejos que despertavam em seu íntimo, às vezes, além de seu próprio controle.

Quando, em uma ocasião, quase havia drenado uma mulher até a morte, ele jurou jamais se alimentar novamente de humanos e passou a subsistir apenas de carne e sangue de porco. Apesar disso, a vontade de afundar os dentes em carne humana provou ser uma tentação, de modo que passou a se isolar dos outros, até mesmo de sua família. Graças a Ronald, que também havia sido transformado naquela noite fatídica, Harry achou um guardião que cuidava de sua alimentação e de suas outras necessidades.

Com o tempo, aprendeu autocontrole, e o autocontrole trouxe consigo uma dádiva inesperada, uma esposa.

Ginevra havia sido apenas uma adolescente quando a conhecera pela primeira vez, filha de um dos amigos de seu pai. Ela havia se tornado uma jovem linda diante dos seus olhos e, nas ocasiões em que se envolvera com a família, havia lhe chamado a atenção. Descobriu depois que também chamara a dela.

Mas, o que o intrigara mais do que sua beleza foram sua inteligência e independência. A esperança de que tais qualidades, de algum modo, a tornassem mais compreensiva quanto à sua condição acabou se mostrando verdadeira e, após um breve noivado, Harry casou-se com ela. Menos de seis meses mais tarde, e perdidamente apaixonado, ele a havia transformado após descobrir que Ginevra estava morrendo de tuberculose.

A transformação que ele sempre odiara agora lhe proporcionaria uma vida eterna ao lado da amada esposa, mas também trouxe consigo um presente inesperado. Um filho.

Ginevra havia estado no seu período de fertilidade quando ele a possuíra e a transformara. As extensas mudanças físicas causadas pela transformação em vampira haviam permitido a concepção de uma criança, uma criança humana.

Eles o batizaram de Tiago e a família viveu feliz em uma das vizinhanças de Roma que havia se transformado em uma Meca para outros como eles, vampiros vivendo vidas relativamente normais.

Mas, foi então que os rumores começaram. Apenas um ou outro, a princípio, mas começaram a se espalhar com velocidade alarmante. Uma pequena, porém extremista, facção dentre os adoradores do sol do Imperador Constantino havia decidido erradicar os elementos da escuridão que eles viam como uma ameaça.

Vampiros foram arrastados para as ruas. Famílias arrancadas de suas casas e levadas à força em carroças que eram abandonadas em campo aberto para que os vampiros assassem sob os raios do sol.

A princípio, Harry ignorou os rumores, achando que não passassem de conversa fiada, embora pudesse pressentir algo no ar no local de trabalho e em outros lugares. As pessoas estavam sendo mais cuidadosas a respeito de com quem se relacionavam. Constantino estava empolgado com a nova religião e pretendia defendê-la com rigor sempre que pudesse.

Os extremistas à sua volta pretendiam ir mais longe, punindo todo e qualquer descrente.

Harry chegara a presenciar um dos ataques com seus próprios olhos, perto de sua loja. Um dos outros mercadores de vinho, um pagão praticante, havia sido surrado quase até a morte por um grupo de jovens adoradores do sol. Ele havia ajudado o velho a voltar para a própria loja, e se dado conta de que estava na hora de pensar em mudar a família para a enorme residência no campo de seu pai.

Mandou avisar que preparassem tudo na casa de campo para a sua chegada e ordenou ao guardião que se certificasse de que ela estava adequada às necessidades deles.

Infelizmente, demorara demais para tomar sua decisão.

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