CAPÍTULO I



MORTE E DESTRUIÇÃO eram os únicos presentes de Natal que o destino já havia dado a Harry Potter.

Agora, o destino o presenteara com mais uma calamidade natalina — um grupo de bons samaritanos com sinos que haviam acampado do outro lado da rua de sua casa, perturbando o seu sono diurno e boa parte de suas noites.

O irritante som do sino começava no meio da manhã, perfurando-lhe o cérebro enquanto ele dormia após uma longa noite rondando as ruas de São Paulo. Baixo e esporádico, ele era capaz de bloquear o barulho de sua cabeça pela maior parte do tempo, até a chegada do crepúsculo, e, com ela, o tinido se tornava mais alto e insistente. Exigente. Seguido de perto por uma alegre saudação, doce o suficiente para estragar a refeição que seu guardião lhe trazia quando ele acordava.

Por várias semanas, Harry procurou se convencer de que poderia agüentar até que fossem embora. Afinal, era um dos mais velhos vampiros e havia sobrevivido a quase dois mil anos de desafios muito maiores.

Mas havia algo naquele maldito sino que o tirava do sério.

Harry jogou longe as cobertas, caminhou até a janela e olhou o seu atormentador vestido de Papai Noel postado diante da biblioteca pública. Não havia muito a se dizer a respeito do “bom velhinho” que estava parado ao lado do pote de contribuições, balançando alegremente o braço para cima e para baixo, pedindo aos transeuntes que fizessem uma pequena doação para aqueles que não tinham lar.

Escutou uma ligeira batida à porta, seu guardião, Dobby, trazendo um lanche para ajudar a espantar a letargia de seu descanso diurno.

— Entre — ordenou, mas quando Dobby entrou trazendo o carrinho sobre o qual repousava o cálice dourado cheio de sangue fresco, Harry o dispensou. — Obrigado, Dobby, mas pode levar embora.

Ele sorriu, e olhou novamente para o Papai Noel lá embaixo.

— Acho que vou jantar fora hoje à noite.









A INCOMODA BARBA de poliéster lhe irritava a pele. O tecido grosso da fantasia, um pano de natureza indeterminada, roçava o seu corpo em diversos locais, provocando desconforto em tais pontos. Ela sequer queria pensar no cheiro de azedo do qual não conseguira se livrar apesar de tê-lo lavado cuidadosamente.

Annah Kaunis se remexeu, novamente, na fantasia em meio à qual o seu corpo pequeno estava na dando, em desafio às alegações do fabricante de que “um tamanho servia para todo mundo”. Dando de ombros, ela moveu os ombros assimétricos da fantasia, em uma tentativa de fazer com que se assentassem melhor. Ignorando o odor insistente, balançou a sineta, forçando um tom de alegria na voz ao se dirigir à bem vestida mulher de negócios que vinha em sua direção.

Annah exibiu o seu mais belo sorriso, sem saber se este seria visível sob a barba volumosa. Sentiu-se tomada de satisfação quando a moça retribuiu o sorriso e despejou alguns trocados no pote de contribuições.

— Obrigada por ajudar os desabrigados — disse Annah com uma alegria pouco sincera, suas palavras acompanhando o ritmo do erguer e abaixar de seu braço e os tons vibrantes das badaladas ecoando no ar quente do verão brasileiro.

Cada tinir das moedas no pote de contribuições trazia satisfação a Annah. O cair silencioso de uma nota no pote era ainda mais recompensador. Cada doação significava mais para o abrigo no centro, que seu prestigioso escritório de advocacia na zona nobre da cidade havia adotado para a temporada das festas.

Como uma associada empreendedora, havia diversas motivações por trás de sua decisão de participar do projeto natalino de estimação do sócio majoritário. O principal era interesse próprio, visto que o tempo passado no abrigo e uma boa quantia no pote de contribuições lhe renderiam um bocado de pontos com o chefão.

Pontos que poderiam levá-la à sociedade que vinha trabalhando tanto para conseguir nos últimos quatro anos. Mas tinha de admitir que, em meio ao interesse próprio, havia algo mais que havia sido despertado nela, forçando-a a considerar que o que vinha fazendo era importante para um bocado de gente que possuía muito menos do que ela.

Quem sabe não era o espírito natalino. Annah dedicou um fervor renovado ao sorriso e ao balançar do braço.

Sua atual situação despertava lembranças de seus próprios Natais passados. Os presentes simples sob a árvore, tornados especiais devido ao amor com que eram dados. Jantares ao redor de uma mesa cheia de comida e abençoada com uma variedade de parentes. Há muito tempo que não permitia a entrada daquele espírito natalino em suas festas de fim de ano.

Apenas mais um dia e suas férias de fim de ano começariam. Ela faria o possível para aproveitar este final de ano. Logo de manhã cedo daria início às suas compras e se prepararia para visitar a família.

— Um feliz Natal para você também disse, balançando a cabeça e sorrindo para um homem que acabara de deixar cair uma nota de cinco dólares no pote. Ao acompanhar com os olhos a passagem do indivíduo caridoso, notou um homem bem vestido deixando a casa do outro lado da rua.

Teria sido impossível não notá-lo.

Alto. Esbelto. Um rosto esculpido que poderia até ser tido como bonito, caso houvesse qualquer vestígio de vida nele.

Mas, não havia nada.

As linhas esculpidas de suas feições eram duras. Inflexíveis. O cabelo escuro elegantemente cortado à altura dos ombros emoldurava o rosto austero. Seus lábios eram dois riscos finos. Ela não pôde deixar de imaginar de que, se ele sorrisse...

Só que ele não o fez.

Em vez disso, lhe lançou um olhar que fez com que um arrepio percorresse a espinha dela. Ele voltou os olhos verdes, quase desalmados, para ela. Era o tipo de homem que ninguém queria contrariar. Seu olhar se voltou para o sino na mão dela, e Annah se deu conta de que ela devia irritá-lo. De algum modo, caíra no desagrado dele.

Contudo, tal olhar e desdém não a incomodavam.

Afinal de contas, era advogada.

Estampando um sorriso de determinação no rosto, ela ergueu a mão ainda mais do que o normal e trouxe o sino para baixo com bastante força.

Este ressoou sonoramente pela noite, deixando o desconhecido charmoso saber que não a dissuadiria de sua missão.







HARRY FECHOU as mãos ao lado do corpo, resistindo à vontade de estrangular o teimoso Papai Noel que desafiadoramente balançava o sino como se Harry não houvesse acabado de lhe lançar um olhar irritado.

Com o poder que sua avançada idade de vampiro lhe fornecia, não teria dificuldades em cuidar do Papai Noel. Na verdade, poderia fazê-lo dali mesmo, e ninguém desconfiaria de nada.

Mas, à medida que o Papai Noel balançava o braço com um fervor cada vez maior, Harry foi se dando conta de que tal satisfação exigia uma abordagem mais pessoal. Mais tarde, pensou, desviando o olhar da figura insignificante do Papai Noel. Era a primeira noite do saturnal e pretendia aproveitá-lo do mesmo modo que o fizera quando era mais jovem.

Quando ainda era vivo.

Uma noite de folia e outros prazeres carnais que seriam perfeitos para dissipar a irritação provocada pelo Papai Noel badalador. Talvez, caso se divertisse bastante durante a festança, poderia até reconsiderar, e desistir de rasgar a garganta de seu atormentador vestido de vermelho.

E, caso não se divertisse?

Um lanchinho à meia-noite sempre contribuía para lhe melhorar o humor.

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