Lembranças



É HORA de irmos — disse Harry na quieta escuridão da manhã.


Gina abriu os olhos, dominada por uma estranha mistura de entusiasmo e esperança. Fugira de Draco. Se conseguisse voltar para a Sonserina, acreditava que seu pai a ajudaria a romper o noivado.


— Para onde estamos indo? — Ela esfregou os braços, tentando aquecê-los. Dentro da torre, as pedras retinham o frio. Sua respiração formava nuvens no ar da manhã.


— Para o acampamento sonserino de Corvinal. Poderá encontrar escolta lá.


Gina não tinha muita certeza. Se fosse para Corvinal, Draco a encontraria em questão de dias.


— Será seguro — assegurou-lhe Harry.


— Não. Os homens de lá são leais a Draco. — Ela pressentia a irritação de Harry. Ele não gostou de ter sua autoridade questionada. Embora lhe fosse grata pela ajuda, Gina não correria o risco de ser deixada em Corvinal. A reputação de Draco em batalha lhe conquistara o respeito de seus semelhantes. Eles apenas a considerariam uma mulher histérica. Precisava encontrar o pai, a única pessoa que poderia ajudar.


O ferimento no ombro de Harry começara a sangrar, apesar dos pontos. Uma mancha escura se espalhava pelo linho da túnica.


— Precisamos encontrar uma curandeira para cuidar de seu ferimento — ela disse. Não gostava da tensão no rosto dele, a dor silenciosa que suportava.


— A curandeira de meu irmão cuidará disso. — Ele afivelou o cinto da espada. Gina percebeu que ele tinha dormido contra a parede, no chão, isso se tivesse mesmo dormido. Harry se aproximou, e ela se encolheu contra a parede de pedra da torre.


— E você? — ele perguntou com gentileza. — Suas costelas estão quebradas?


— Só estão machucadas. — A dor era mais suportável agora, embora local ainda fosse sensível ao toque.


Harry sacudiu o irmão caçula para que acordasse. Colin bocejou, alongando o corpo magro. O cabelo claro estava revolto do sono, a túnica aberta. Ele fazia com que Gina recordasse dos próprios irmãos quando mais jovens. Ela os idolatrava, acreditando que matariam dragões por ela. Uma ponta de remorso a assaltou. Não via os irmãos há quase um ano. O irmão mais velho, Guilherme, havia casado. O segundo em nascimento, Carlos, fora para Durmstrang. Sentia saudades, mesmo que vivessem a importuná-la sem cessar.


Quase pensara em pedir ajuda a um deles, mas desistira da idéia. Se Carlos ou Guilherme viessem à Grifinória, matariam Draco sem pensar duas vezes. O pai era a melhor escolha, pois poderia terminar com o noivado sem qualquer derramamento de sangue.


— Venha — disse Harry, arrumando cuidadosamente a capa. — Padre Dumbledore nos arranjou dois cavalos.


Gina se sentou devagar, contendo um grito por causa das costelas doloridas. Tudo doía, até a parte de trás da cabeça.


Não pararam para o desjejum, apenas se despediram do padre Dumbledore e partiram. Lá fora, grossos flocos de neve continuavam a cair, cobrindo o chão com uma camada de imaculado branco. O sol ainda não havia surgido, mas uma leve luz no oeste tornava o céu lavanda em contraste com a sombra cinza do amanhecer.


Harry a escarranchou sobre uma égua castanha, montando atrás dela na sela, enquanto Colin cavalgava um cavalo preto. Gina mascarava a dor nas costelas, recusando-se a mostrar qualquer sinal de fraqueza. Nada poderia ser feito, e ela não queria retardar a fuga.


Com um assovio para a égua, Harry colocou o animal para trotar pelos campos. Quando mal se via a igreja, Harry aumentou o passo para um galope. Gina trincou os dentes, lutando contra a forte dor nas costelas.


Seus olhos miravam o horizonte, procurando por algum sinal dos homens de Sir Draco. Desejava uma floresta, ou alguma maneira de se esconderem. Cavalgar pelos campos abertos os tornava alvo fácil para um arqueiro.


A neve continuava a cair, cobrindo seus rastros. Às costas, ela sentia o calor do corpo de Harry. A maneira rude e a força sólida a intimidavam. Embora compreendesse a necessidade de compartilharem um cavalo, Gina se chegava para frente, tentando não deixar que os corpos se tocassem. A posição fazia suas costelas arderem com o esforço, mas os ferimentos de Harry eram muito mais graves. Não queria lhe causar mais desconforto.


Após breve intervalo, Harry mudou de direção. Colin o acompanhou, emparelhando o cavalo com o deles.


— Este não é o caminho mais rápido — ele protestou.


— Fique quieto. — Harry olhou para trás e incitou a égua a ir mais rápido. Gina percebeu que seguiam em direção à costa, ligeiramente ao sul de Godric.


Seus dedos agarraram a crina da égua e ela se perguntava o que Harry estava fazendo. Ele mudou o rumo mais uma vez, descendo o terreno. Gina agora via Godric, bem além do mar. Abaixo deles, pequenos barcos de pesca balançavam na água. Harry os conduziu na direção dos barcos.


Naquele princípio de manhã, o mar refletia o céu nublado. Um aroma pungente e salgado preencheu as narinas de Gina quando se aproximaram. O grito das gaivotas ecoava no silêncio da manhã enquanto os pássaros se lançavam à procura de peixes.


A costa rochosa guardava um toque de geada, mas não havia neve cobrindo as areias. Pescadores carregavam suas redes em pequenas embarcações, conversando com voz abafada. Harry desmontou e se aproximou de um dos pescadores apontando para o barco


Depois de uma longa conversa Harry entregou prata a ele. O pescador recolheu suas coisas e deixou o pequeno barco resmungando baixinho.


Gina não compreendia por que ele queria o barco. Era muito mais rápido viajar a cavalo. Onde ele planejava ir?


Harry chamou com um gesto e ela se aproximou segurando a mão dele para entrar na pequena embarcação de madeira. O pescador levou os dois cavalos embora.


— Fique abaixada — Harry empurrou os ombros dela para trás para que ficasse encostada no fundo do barco. Gina obedeceu, mas o movimento ondulante fazia seu estômago revirar.


— Por onde estamos indo? — ela perguntou. Gina não recebeu resposta, então conteve a língua. Olhou para trás, imaginando se Harry tinha visto alguém a segui-los. Embora a neve que caía continuasse a cobrir seus rastros, Gina não acreditou nem por um segundo que Draco a deixaria escapar. Em algum lugar, homens estavam a sua procura.


Apoiou a cabeça na madeira úmida, observando os homens. Os músculos dos braços de Harry se contraíam ao remar, e ela não deixou de notar um súbito esgar. Ele empurrava os remos na água sem qualquer esforço, embora isso lhe causasse dor. Depois de um breve instante, desfraldaram a vela e ajustaram o curso.


Gina o observava remar, flocos de neve agarrando-se aos cílios e ao rosto dele. Os olhos verdes relancearam para os dela por um momento, e dentro deles Gina viu um grande vazio. Harry voltou o olhar para a paisagem, como se procurasse por algo.


— O que é? — ela murmurou.


— Meus homens. Acho que não conseguiram evitar os sonserinos.


— Você não pode saber com certeza — ela comentou, mas Harry meneou a cabeça.


— Já teríamos nos encontrado com eles a esta altura.


Gina arriscou olhar para terra firme. Nuvens de neve obscureciam a costa, e o mar cercava o diminuto barco. A água era verde-escura, quase preta. Queria assegurar a Harry que ele poderia voltar, que poderia resgatar seus homens. Mas se ele assim fizesse, mais dos soldados de seu pai morreriam.


Por isso, preferiu mudar de assunto.


— Não me disse para onde estamos indo.


Colin ajustava uma das velas, amarrando a corda enquanto o vento a inflava.


— Hogsmeade — ele respondeu. Seu rosto demonstrava orgulho.


— Onde é isso?


— É uma fortaleza insular que pertence ao nosso irmão mais velho, Ronald. Não poderão nos rastrear pela água — foi tudo o que Harry disse.


Um leve sorriso curvou os lábios de Gina. A esta hora da manhã, ninguém os procuraria pela costa. A neve tornava o barco quase invisível, encoberto pelo forte nevoeiro.


Ela se reacomodou no oscilante barco, observando a neve flutuar ao sabor do vento. Depois de quase uma hora, viu gaivotas planando no ar.


A vela foi recolhida, e logo o barco raspava o chão. Colin pulou do barco nas rochas, evitando a água. Harry pisou diretamente no mar, erguendo Gina nos braços para que seus pés não tocassem a água. Colocou-a na praia, parecendo alheio ao frio. Os pés dele deviam estar congelando. Harry e Colin puxaram o barco para a areia.


Gina aproveitou o momento para olhar ao redor. Tinham chegado a uma ilhota além da costa, com uma imponente fortaleza circular.


— É aqui que você mora?


Harry meneou a cabeça.


— Mas paramos aqui para descansar. Eu a deixarei aqui até lhe arranjar uma escolta.


Gina refreou a língua, nada contente com a idéia de ser deixada sozinha.


— E você?


— Reunirei mais soldados para retomar o ataque a Godric. Preciso resgatar meus homens.


— Por que abandonou Godric, afinal? — ela perguntou. — Quando os homens de meu pai chegaram na última primavera, ninguém reclamou a fortaleza. — O lugar estava completamente negligenciado quando Gina chegou lá. O salão não era limpo há meses, e camadas de comida estragada e sujeira cobriam tudo. Nenhuma das pessoas que viviam dentro da fortaleza havia colocado um pé dentro da habitação.


A expressão de Harry era dura, insondável.


— Dei ordens para que ninguém entrasse em minha casa. Minha gente obedeceu. Sabiam que eu voltaria para proteger o que me pertence. Especialmente dos sonserinos.


— Sou uma sonserina — ela salientou. — E Godric agora pertence ao meu pai. É parte de meu dote.


— Um dote roubado.


Gina não sabia o que dizer. Mesmo que tivesse o poder de lhe devolver as terras, uma parte sua não queria se desfazer delas. Gastara dias e dias limpando a fortaleza, ajudando os soldados a reparar a paliçada. E neste meio tempo começara a considerar o lugar como seu. Às vezes, à noite, subia à casa da guarda para ver a lua iluminar os campos.


— É um belo lugar — ela disse por fim. — Meu pai jurou ao rei Severo manter a propriedade a salvo.


Os olhos de Harry escureceram enquanto ele subia a trilha que levava à fortaleza. Em seu semblante, Gina via um homem preparado para declarar guerra à sua família. E, pior, ela compreendia o motivo.


— Não podemos chegar a um acordo? — ela sugeriu.


— Não haverá acordo. A terra me pertence.


— Eu libertei vocês dois — ela argumentou. — Será que suas vidas não valem um trato de paz entre nós?


— Arranjarei uma escolta que a leve de volta à Sonserina — ele disse. — Então minha dívida estará paga. Depois disso, não lhe deverei mais nada.


O tom frio na voz de Harry a calou. Gina olhou para a água cinzenta lá atrás. Seus temores aumentaram ao imaginar Harry lutando contra seu pai. Era o que aconteceria, a não ser que ela encontrasse uma saída.


Os sapatos pouco a protegiam das pedras duras da base da ilha, mas Gina continuou subindo, ignorando a dor nas costelas. Harry não fazia queixas, embora tivesse tropeçado uma vez e levado a mão ao ombro.


Que tipo de homem ele era? Não se vestia como nobre, mas a perícia com a espada e a inquestionável liderança tornavam isto uma possibilidade. Contudo, as roupas simples e comportamento estóico permitiriam que ele se passasse facilmente por um plebeu. Um guerreiro, ela concluiu. Um homem feroz, com forte senso de justiça.


A neve rodopiava mais forte, mas logo alcançaram a entrada. Os homens ali cumprimentaram Harry pelo nome, saudando-o com um respeitoso gesto de cabeça. Gina tentou contar o número de componentes da tribo, mas havia muitos. Isso a deixou aflita, sabendo que havia tantos à disposição para atacar Godric e sua família.


Seguiu Harry para dentro, para um cômodo com um fogo brilhante ardendo na lareira. Gina se aproximou de lá, aquecendo as mãos. Um servo lhes trouxe comida e bebida, e ela comeu avidamente. Colin fez o mesmo, mas Gina notou que Harry não compartilhava do hidromel e do pão.


Ele tirou a capa e sentou-se, fechando os olhos por um momento. A postura permanecia ereta, mas Gina podia notar os sinais de exaustão. Ela pegou um pedaço de pão e o levou para ele.


— Deve comer alguma coisa.


— Não preciso de nada.


A voz soava áspera, o rosto parecia fatigado. Uma mecha do cabelo escuro lhe caía sobre os olhos, que faiscavam de dor.


— Precisa deitar e descansar. Sua ferida deve estar doendo. E você precisa aquecer seus pés por causa da água do mar.


— Estou bem.


Por impulso, Gina tocou a testa de Harry. A pele parecia quente e febril.


— Deixe-me em paz, Gina — ele disse.


Homem teimoso. A ferida provavelmente estava infeccionada. Os sinais eram visíveis. Contudo, ele era do tipo de soldado que se recusava a admitir um pingo de vulnerabilidade.


— Você salvou minha vida — ela disse, a voz quase um sussurro. — E eu salvei a sua. Mas você não teria este ferimento se não fosse por mim. Deixe-me cuidar disso. Não direi nada ao seu irmão ou aos seus homens. Diga a eles que me levará para um quarto onde eu possa descansar.


Harry segurou o pulso dela, detendo-a.


— Não preciso de ama-seca, tampouco pedi sua ajuda. — Gina o ignorou. Em voz alta, ela disse:


— Então? Não há lugar nesta fortaleza onde eu possa descansar?


Colin parecia pouco à vontade, mas um homem barbudo de meia-idade se adiantou. Algum tipo de mordomo, adivinhou Gina, a julgar pelo largo aro de chaves preso à cintura. Ele curvou a cabeça para Gina:


— Com sua permissão, Harry, eu a levarei a um dos quartos.


— Eu levo a dama ao quarto — disse Harry, levantando-se. Olhou zangado para Gina, mas ela o ignorou.


— Gostaria de um pouco de água quente e panos limpos para tirar a sujeira — ela disse ao mordomo. — Mande-os lá para cima, por favor.


O mordomo inclinou a cabeça. Gina achou a escada em curva que levava ao andar de cima, e Harry a seguiu. A fortaleza não era grande, e demonstrava sinais de reparos recentes no telhado. Ao longo das paredes havia armas de todos os tipos. Algumas pareciam decorativas, enquanto outras revelavam cortes e evidências de batalha.


— Por que me desafia? — ele perguntou, baixinho.


— Você está sendo idiota. A ferida pode estar infeccionada com o sangue ruim.


Harry se pôs diante dela, cruzando os braços.


— Não pretendo desistir do ataque a Godric, se é o que está pensando.


— Não. Isso seria demonstrar uma sabedoria que você não tem — ela rebateu.


— O que você está fazendo é ainda mais idiota — ele alertou. — Eu disse que não quero sua ajuda.


Gina entrou num pequeno cômodo contendo uma cama. A lareira abrigava apenas cinzas frias. Havia uma cadeira e uma mesa junto a uma das paredes.


— Sente-se — ela ordenou, quando se inclinava para acender o fogo. Com o movimento as costelas doeram Gina ignorou a dor concentrando-se na tarefa. Em minutos havia uma pequena chama ardendo.


Olhando para trás, viu que Harry a observava. Ele tentava manter a expressão neutra, mas ela podia ver a dor não manifesta. Isso a recordava dos irmãos mais velhos, quando não queriam admitir um ferimento do campo de treinamento.


Uma batida soou à porta e, ao atender, Gina viu o mordomo segurando uma bacia d’água e linho limpo. Gina agradeceu e fechou a porta.


Harry continuou de pé, mesmo com ela segurando a água e o linho para trocar as bandagens. O olhar raivoso em seu rosto a intimidava. A nova cicatriz na face se contorceu.


Ele se aproximou dela tão rápido que Gina encolheu-se cobrindo o rosto por instinto. Um instante depois, ela baixava os braços, o rosto inundado de vergonha.


— Não bato em mulheres — ele disse, o tom mais gentil. Gina ficou rígida, odiando-se por aquele momento de fraqueza.


— Eu sei. — Ela se ocupou com o linho, tentando recuperar a compostura. — Eu... você... você me assustou.


Harry se aproximou com deliberada lentidão, os dedos tocando de leve o lado lesionado da bochecha.


— Só um covarde ergueria os punhos contra uma mulher. Só alguém com necessidade de se testar.


Gina engoliu em seco e assentiu.


— Sim. — O leve toque fez o rosto dela corar. De repente, eIa quis desvanecer-se, fugir daquele olhar penetrante.


— Sente e deixe-me trocar sua bandagem — ela disse. Para sua surpresa, Harry obedeceu.


As mãos de Harry agarraram os braços da cadeira quando Gina colocou a bacia sobre a mesa. A tensão permeava cada músculo do corpo dele, e ela temeu lhe causar mais dor apesar do desejo de ser gentil.


Viu que precisaria desafivelar o cinto. Harry cerrou os punhos antes mesmo que ela lhe puxasse a túnica pela cabeça, mas não emitiu qualquer som.


Embora tivesse visto o peito dele na noite anterior, a intimidade de tocar a pele nua a deixava trêmula. Músculos fortes, formados por anos de treinamento, contraíram-se sob suas palmas. A pele quente guardava a cor bronzeada pelo sol de verão, e Gina o imaginou no campo de treinamento sem a túnica. Sulcos profundos lhe moldavam os músculos do tórax.


A ferida no ombro estava inchada, uma mancha roxo-escura se formando ao redor da carne aberta. Ela tocou delicadamente a beira da ferida e Harry se encolheu. Por todos os santos! Não sabia como ele tinha conseguido ir tão longe sem desmaiar! Mas os pontos estavam firmes, apesar da jornada.


Gina limpou o sangue seco com o linho, tentando não lhe causar desconforto. Dando uma rápida olhada ao redor do quarto viu grandes teias de aranha seus fios cintilando a fraca luz do fogo. Gina foi até um canto, esticou-se e apanhou um bocado do material grudento.


Manteve um pano sobre a fenda para tirar o excesso de sangue antes de enrolar o ombro dele com as teias. Já havia testemunhado seus poderes curativos e sabia que ajudariam na regeneração da carne. Por fim, enfaixou o ombro dele num linho limpo.


— Isso precisa de um cataplasma ela disse. — Pedirei ao mordomo as ervas de que preciso.


Harry não disse nada o rosto tenso de dor. Gina se ajoelhou e lhe tirou as botas desnudando seus pés. Então os apoiou no colo e massageou a pele fria.


Nunca tocara o pé de um homem antes. O gesto parecia estranhamente íntimo. Os pés dele eram ásperos, e Gina deslizava os dedos pela pele, tentando lhe recuperar a sensibilidade. Esfregou as panturrilhas firmes e fortes, prosseguindo com o movimento até readquirirem cor.


— Lamento que tenha sofrido por minha causa — ela murmurou.


— A dor faz parte da batalha. Estou acostumado com isso.


O rosto dele se contraiu e Gina adivinhou que parte de suas práticas começava a funcionar.


— Venha. — Gina o ajudou a ir para a cama. — Deite-se e descanse. — Afastou a coberta da cama e acomodou a cabeça dele num travesseiro. A pele de Harry ainda estava muito quente ao toque, deixando-a preocupada com a febre.


— Muito obrigado — ele disse, e então fechou os olhos.


Gina levou a palma da mão à testa dele.


— Agora durma.


Observou o torso nu, verificando se havia outros cortes. Não viu nenhum. Percebeu-se comparando Harry com o noivo. Diferente de Harry, a pele de Draco era pálida, da cor de uma massa crua. Gina estremeceu só de pensar.


Sentou-se diante do fogo, fitando seu calor tremeluzente. Seus olhos notaram a velha bandagem sobre a mesa, manchada de sangue.


Não havia como voltar atrás agora. Nunca deixaria que Draco Malfoy se aproximasse dela novamente.


 


 


 


 


 


 


 


 


 


GINA FICOU junto de Harry a noite inteira, embora tivesse revelado ao mordomo sobre os ferimentos dele. O homem foi solícito e arranjou as ervas que pedira. Ela fez um emplastro com confrei e outras raízes que ajudariam a curar a ferida.


O céu se tornara escuro, por isso Gina fechou as venezianas. O fogo na lareira trazia um pouco de calor para dentro do pequeno quarto, mas mesmo assim ela tremia. Sentou-se na cama ao lado de Harry, tentando fazer com que ele tomasse o chá feito de casca de salgueiro. Ele se debatia dormindo, a pele ardendo ao toque. Gina lhe esfregava a testa com panos úmidos, mas geralmente precisava segurá-lo para conter sua agitação.


Por fim, ele agarrou a cintura de Gina e a puxou. Ela relutou, mas a força dele sobrepujava a dela, mesmo com o ferimento. Só quando Gina se deitou ao lado dele foi que Harry se acalmou. As mãos se enroscaram nos cabelos dela, então ele dormiu.


Gina não conseguiria se livrar sem lutar, por isso acabou desistindo depois de um tempo. Se sua presença lhe trazia conforto, que assim fosse, Era um pequeno preço a pagar por ter escapado de Draco.


As horas da noite se estendiam, o congelante ar de inverno envolvendo-os. O pequeno fogo pouco a aquecia, então Gina se aconchegou ao corpo de Harry. Por fim, sucumbiu ao sono.


 


 


 


 


 


 


 


 


 


HARRY SONHAVA com Cho, com sua pele branca como leite, macia como as primeiras flores de primavera. Os cabelos pretos se enlaçavam em seus dedos enquanto ele traçava os contornos de seu rosto. A outra mão deslizava sobre ela, até alcançar os seios. Pareciam mais cheios do que em suas lembranças, mas era bom ter sua esposa nos braços novamente.


Seu corpo enrijeceu ao puxar o traseiro dela contra si. Por Deus! Como sentia falta de Cho! Queria rolar sobre ela e afundar-se em seu corpo, amando-a até que seus corpos tremessem em êxtase.


Uma dor intensa ardia no ombro, mas Harry se recusava a pensar nisso, dando toda sua atenção à esposa. Ele a trouxe ainda mais perto e lhe capturou os lábios com os seus.


Misteriosos e doces, como ele lembrava. Ouviu Cho emitir um gemido mudo, então lhe acariciou a maciez da nuca, saboreando-lhe a boca como se fosse a primeira vez.


— Meu amor — ele murmurou, pois ela era seu coração, sua alma. Nos recantos da mente, Harry sabia que havia algo errado, mas se esqueceu disso quando seus lábios encontraram os dela outra vez. — Não se vá — murmurou.


Harry a puxou para seus braços e ouviu o som do choro dela. Com o polegar, tentou lhe secar as lágrimas.


— Harry... pare — ela murmurou. As mãos o empurravam, o afastavam. Por quê? Saboreou os lábios dela mais uma vez.


— Deixe-me amar você, Cho. Deixe-me dar-lhe outro filho.


— Não! — Ela se empenhava mais desta vez, lutando para se afastar dele. — Solte-me!


As mãos dele pararam e, na obscura neblina de seu sonho, Harry viu a esposa abandonando-o. Ela não o amava. Ela não queria seu toque. Rolando para o lado, soltou Cho, sentindo um aperto na garganta.


— Você estava sonhando. Agora descanse. — Um pano úmido tocou sua testa e ele fechou os olhos. — Durma.


Gina puxou a cadeira para perto do fogo, seu corpo tremendo de medo. Sabia que Harry estava sonhando. Sabia que estava pensando em uma mulher.


Mas quando a mão de Harry lhe acariciou o seio, sensações tinham ganhado vida dentro dela. Eram sensações aterradoras diferentes da dor que Draco causava. O toque de Harry fez com que Gina revivesse aqueles momentos, mesmo assim sentira prazer. Estava prestes a empurrá-lo quando ele a beijou.


Bom Deus! Não sabia o que fazer! Harry tinha murmurado palavras carinhosas, palavras de amor, fazendo com que sentisse um desejo desconhecido. Draco nunca a beijava com amor ou compaixão. Só havia degradação em seu abraço.


Mas isto...


Harry usara a língua, idolatrando sua boca. Gina levou a mão ao seio, onde o bico ainda estava rígido e aparente. A enormidade de seu desejo tornara afastar-se dele a coisa mais difícil do mundo.


Mas ele não sonhava com ela. Não a tocava ou chamava seu nome. Era outra. A febre fizera com que ele perdesse a noção de onde estava.


Contudo Gina desejava ter conhecido amor assim. Houve um tempo em que Draco lhe oferecia presentes e flores. Seu coração pulava sempre que ele sorria para ela. Acreditou que isso fosse amor.


Mas o que sabia do amor, afinal? O próprio casamento de seus pais era uma raridade. Não deveria usar a união deles como comparação.


Começou a arrumar o quarto, qualquer coisa que lhe ocupasse as mãos, e espiou algo pequeno e branco no chão, perto da túnica jogada de Harry.


O pequeno pedaço de linho era menor que sua palma. Perguntava-se de onde aquilo tinha vindo. Na ponta, uma diminuta fileira de flores bordadas cobria a bainha.


Era pequeno demais para ser o lenço de uma dama. Gina franziu a testa. Devia pertencer a Harry. Para ela, não aparentava qualquer valor.


Então, por capricho, deixou aquilo em cima da mesa, dobrado. Sentia que o retalho significava algo para Harry e que devia ser guardado com cuidado. Que tipo de homem guardaria uma recordação dessas?


Ele dormia, a respiração dissonante de dor. Mas Gina acreditava em sua recuperação. Quando Harry estivesse curado, tentaria convencê-lo a esquecer a questão de Godric.


Quando o sol se levantou das águas, transformando o mar negro num reflexo prateado do céu, Gina rezou para que mais sangue não fosse derramado por sua causa.


 


 


 


 


 


 


 


 


 


DRACO MALFOY esfregava o pescoço. Linhas vermelhas marcavam a pele onde o prisioneiro ousara estrangulá-lo.


Gina havia ajudado o homem; ajudado ambos os prisioneiros a escapar. E agora o desgraçado tinha sua noiva. A pele de Draco ardia ao pensar em qualquer homem a tocá-la. Agora mesmo Gina devia estar dividindo a cama com ele, aquela meretriz. Não tinha demonstrado comedimento? Não refreava a luxúria quando ela o repelia? Era um homem paciente.


Mas agora Gina fugira dele, acompanhando um grifinório. Sua mão apertou os elos de metal da corrente.


Tinha descoberto mais sobre o prisioneiro, Harry Potter, graças a uma moça da aldeia. Não fora nada difícil convencer a garota a contar onde ficavam, as terras da família Potter.


Lembrava do olhar de medo nos olhos da moça quando ele a estrangulou, deixando o corpo inerte na floresta. Usara a mesma corrente que fora usada nele. Guardava a pesada corrente de ferro, pois pretendia apertá-la ao redor da garganta do grifinório até que a vida desaparecesse dos olhos de seu inimigo.


Mas não ainda. Precisava saber mais sobre Potter. Se o pai de Gina descobrisse o ocorrido, Draco correria o risco de perder a noiva e o dote. Não permitiria que nada ameaçasse a oportunidade de ganhar Godric e se tornar senhor de seu próprio feudo. A terra seria seu suporte; o primeiro degrau para se tornar um poderoso lorde. Não tinha dúvida de que o rei Severo lhe concederia um título um dia. Godric seria apenas uma propriedade entre muitas.


Mas primeiro precisava recuperar a noiva. Não havia dúvida de que Gina estava na companhia de Potter. Draco colocara seus homens para persegui-los, e eles conseguiram rastrear os prisioneiros até a costa. Agora não era hora de entrar em batalha, mas de planejar com cuidado.


As propriedades dos Potter estavam entre as fortalezas mais fortes da Grifinória. Draco não tinha homens suficientes para se lançar num ataque, não sem alertar o pai de Gina. Selecionou uma espada do arsenal, testando o gume com o polegar até um pequeno fio de sangue aparecer.


Rejeitava admitir qualquer tipo de fraqueza. Traria Gina de volta sem que o conde jamais descobrisse a verdade.


Escolheu uma maça como segunda arma e a girou, deixando que a pesada bola de ferro dentada quebrasse o tampo de uma mesa de madeira. Imaginou que era a cabeça de Potter.


Em breve, minha doce Gina, ele pensou. Eu a buscarei em breve.


 


 


 


 


 


 


 


 


 


PARTO para Hogwarts esta noite — disse Harry. Dias haviam se passado desde que Gina começara a cuidar de seu ferimento. Embora a pele ainda estivesse em carne viva, não mais vazava o sangue contaminado. Gina acreditava que Harry poderia usar o ombro livremente em poucas semanas.


Negava-se olhar para Harry, focando a atenção na ferida dele enquanto cortava a bandagem velha. Harry havia tirado a túnica para que ela pudesse cuidar melhor do ferimento. A visão da pele nua a deixava desconfortável.


— Você ficará aqui — ele acrescentou. — Estará em segurança até eu lhe arranjar uma escolta.


— Se é o que diz. — Nem por um momento ela acreditava que Draco havia desistido. Quando mais tempo ficasse, maiores eram as chances de ser encontrada.


— Há mais de 60 homens aqui — salientou Harry. — E ninguém ainda a rastreou até aqui.


Gina enfaixava o linho novo no ombro dele.


— Por enquanto, isso é verdade. Mas Draco virá atrás de mim.


Uma expressão sombria se acomodou em seu rosto.


— Está mais segura em Hogsmeade do que lá fora sozinha.


Gina amarrou a bandagem e cruzou as mãos sobre o colo.


— Isso é provável. Mas não quero ficar presa no meio de sua guerra contra minha gente.


— Esta batalha começou muito antes de você vir para Grifinória — ele disse. Godric me pertence, e não deixarei que caia nas mãos dos sonserinos.


— Sou uma sonserina — ela disse, um timbre duro erguendo-se na voz. Harry começava a se distanciar, colocando-a junto com os inimigos que desprezava. Gina não gostava disso.


— Eu sei. — O olhar se prendeu ao dela, sem intenção de recuar. Gina compreendeu de repente que a paz que havia entre eles desapareceria assim que voltasse para casa. Harry a consideraria uma inimiga.


Seu coração sabia que a propriedade pertencia por direito a Harry. Mas seu pai havia conquistado a terra e agora a defenderia. Não poderia permitir que Harry colocasse sua família em perigo.


Gina escolheu as palavras seguintes com cuidado.


—A propriedade é parte de meu dote, pertencerá ao meu marido quando eu casar. — A voz se tornou um murmúrio. — Você derramaria meu sangue para retomá-la?


Harry ficou de pé, sua sombra assomando sobre Gina. Os músculos firmes, marcados de batalha, flexionaram-se quando ele se inclinou em sua direção. Gina tentou recuar, mas ele a segurou pela nuca e rapidamente a deteve.


— Meus homens a levarão para a Sonserina. E sugiro que fique por lá.


A pulsação dela acelerou, mesmo que tentasse não sentir medo dele.


— Sua escolta não me protegerá — ela disse. — Draco matará seus homens e me fará cativa outra vez. A única pessoa em quem confio para me levar para casa é meu pai. Mande uma mensagem para ele e não precisará se incomodar comigo.


— E trazer os inimigos até nós? Não. — O tom dele era ríspido, ameaçador. Harry se sentou, vestindo a túnica e o manto com capuz.


— Ele virá por mim — ela disse baixinho. Gina acreditava nisso de todo coração, mesmo que Arthur Weasley não tivesse respondido uma única carta. Acreditava, acima de tudo, que Draco havia interceptado suas mensagens. — Sei que virá.


— Não pedirei nada a um sonserino. — Harry levantou-se e virou-se para sair. Tinha visto a mágoa nos olhos dela, o espírito ferido. Não pretendia falar de maneira tão desagradável, mas não se permitiria fazer amizade com um inimigo.


Gina de repente se aproximou dele, tomando-lhe a mão. Antes que Harry pudesse reagir, ela deixou algo em sua palma.


— Não vai querer deixar isto para trás — ela disse.


Ele reconheceu a lembrança e fechou os dedos em volta do retalho.


— Onde conseguiu isto?


— Estava com você. — Gina não havia afastado a mão da dele, e a suave inocência de sua palma provocava uma chama de desejo nele.


Nenhuma mulher o tocava assim desde Cho. Nenhuma tinha ousado. Lá fora, o vento rigoroso agitou suas roupas, mas Harry ainda podia sentir o calor do gesto impulsivo de Gina.


Isso não significava nada. Não ficaria se importunando com o assunto. Afastou as incertezas da mente, guardou o retalho de tecido e puxou a capa ao seu redor.


Harry murmurou um adeus, sem esperar pela resposta de Gina. Desceu para a praia e entrou em um dos barcos. Enquanto navegava as águas, Harry dirigiu o olhar para o horizonte. Dois anos atrás, as tochas dos inimigos tinham lançado seu brilho vermelho sobre o mar. Espadas sonserinas haviam derramado o sangue de seus parentes sobre a terra.


Ele apertou o familiar retalho de tecido que Gina lhe entregara. O pedacinho de linho era um lembrete de seu propósito — vingança contra os invasores sonserinos que haviam tomado Godric.


Sob o crepúsculo, uma gaivota circulava sobre o mar, girando mais baixo na direção da presa. O sol ensopava o horizonte num brilho cor-de-bronze, uma bênção de luz. Harry observou da praia os matizes rosados do céu se transformarem num roxo profundo.


Isso o lembrou de uma das noites que ele e Cho haviam passado juntos, esperando que as estrelas surgissem. Havia compartilhado com ela suas esperanças para o futuro, seus sonhos ainda a serem realizados. Havia pousado a mão sobre sua barriga volumosa, sua maior esperança de todas.


Deixou o desespero de lado e forçou a mente a se concentrar no presente. Encontraria outra batalha onde lutar como mercenário, usando sua indolente sede de sangue como ferramenta para esquecer.


E deixaria Gina para trás, tentando não pensar nas sensações que ela agitava dentro dele.

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