capítulo 4



Muito bem. Vamos tentar uma coisa. – Sarah sorria, parecia acreditar que daria mesmo certo.
John a fitou, curioso. Eles haviam decidido que ela o trataria apenas por John. Smith lhe incomodava, algo lhe dizia que não tinha nada a ver com este nome. Estavam na sala da assistente social, que ele já podia descrever de olhos fechados, embora o nome de algumas coisas lhe fosse completamente desconhecido ou parecesse estranho.

Na manhã anterior, quando ela colocara sobre a estante um novo enfeite de vidro, ele se surpreendera com o objeto.
- O que é isso? – perguntara, querendo se certificar de que estava certo em suspeitar que fosse...
- Um almofariz. Alguns chamam de gral, os leigos de pilão. Por que? – e ela percebeu imediatamente a expressão de vitória dele, sinal de que o objeto o fizera se lembrar de algo.
- Eu conheço isso. – ele dissera, simplesmente.

Por isso, agora, ela o chamara novamente, dizendo querer lhe aplicar um teste simples.
- Pois bem. Vou lhe dizendo o nome das profissões, e você me diz quando algum título lhe chamar atenção, ok? Vou começar pelos que têm alguma relação com os objetos que você já reconhece. Começando pelo almofariz. Pronto?
- Sim.
- Químico. – ele fez que não – Farmacêutico – de novo não – Bioquímico... - e mais uma vez, a cada profissão que ela tentava se lembrar de ter alguma coisa a ver com laboratórios e aquele tipo de instrumento.
Por fim, começando a desanimar, Sarah apelou:
- Alquimista.
O homem levantou uma sobrancelha. Alguma coisa soou no fundo da sua mente, e ele exclamou a palavra “Pedra”!
- Hein? – Sarah estranhou, piscando várias vezes.
- Alguma coisa a ver com pedra... – ele também parecia confuso.
- Está bem. – Sarah disse – Vamos ver... o que sei sobre alquimistas e pedras? Ah! – ela deu um sorriso, antes de lhe perguntar, quase se deitando sobre a mesa para aproximar bem o seu rosto do dele, no intuito de não perder por nada sua expressão – Será que você sabe quem foi Nicolau Flamel?
- O criador da pedra filosofal, capaz de produzir o elixir da longa vida...
- Ou transformar qualquer metal em ouro... Isso é só uma lenda, mas já é um começo.
- Não.
- O que? Não acha que já é um começo você demonstrar conhecer isso?
- Não. Não é uma lenda. Flamel ainda viverá alguns anos, graças ao pequeno estoque que ainda possui do elixir da vida, pois a pedra foi destruída por...Mas que diabos!
De novo, ele se calou, frustrado. Mais uma vez, uma sombra parecera querer saltar de seu inconsciente, e mais uma vez tudo sumira.
Mas Sarah não compartilhava de seu desânimo. Já tinham um dado interessante, embora muito curioso. Mas, para animá-lo, resolveu comunicar-lhe o que só pensara em contar no dia seguinte:
- Ah, já temos um lugar para você ficar... hospedado, até conseguirmos descobrir de onde você veio, afinal. Você deixa o hospital na sexta, após o almoço. Feliz?
- Não entendi... Pra onde eu vou? – ele se lembrou da idéia que “vira” em sua mente alguns dias atrás, mas preferia ouvir dela mesma.

Sarah, de repente, pareceu sem jeito pra dizer. Estava revivendo os piores momentos que passara em sua vida profissional, defendendo sua idéia na reunião da tarde anterior. Apenas Felipe, como sempre, concordara a princípio. Mas, como a Administração estava com um “pepino” nas mãos, eles acabaram concordando também, apesar de ainda discutirem algumas implicações, e de alguém até insinuar se ela não estaria “se envolvendo demais” com aquele paciente em especial...
- Não te falei ainda? –ela respondeu por fim, como se falasse algo completamente banal – Você vai ficar em minha casa, e como estou entrando de férias, poderei pesquisar pela Internet, poderemos visitar alguns lugares, para ver se despertam alguma lembrança sua, enfim: teremos todo o tempo do mundo, como meu querido irmão gasta tanto de repetir.
- Isso não causará problemas para... sua família? – ele estava reticente em perguntar. Por mais informais que os brasileiros lhe parecessem até agora, não conseguia imaginar um marido ou namorado aceitando sua presença com naturalidade.
- Eu moro sozinha, John. Bem, nos fins de semana, vou pra casa de meus pais, numa cidade aqui perto. Mas já falei com ela. Você...
- Ela quem? – John indagou, interrompendo-a.
- Minha mãe! E claro que você será bem-vindo, se quiser ir comigo pra lá no sábado. Ela já deve até ter arrumado o quarto de meu irmão André pra você. Ele está em Londres.
- Verdade? – ele cada vez se surpreendia mais. Não conseguia imaginar algo assim tão despojado de preconceito... ou prudência. Afinal, a única pista que tinham de seu passado apontava para a possibilidade de ser um criminoso – Mas isso não parece usual ou... correto.
- De fato. – ela admitiu – E vamos ouvir algumas gracinhas a respeito até na sexta, se isso vazar... Esteja preparado.
- Sempre estou. – ele respondeu automaticamente, sem entender porque.
Sarah piscou, ele se ergueu e saiu, sem dizer mais nada.
Estava cada vez mais surpreso e confuso. Aquela mulher tinha atitudes muito estranhas em relação a ele. E, ao mesmo tempo que se exasperava com seu jeito maternal, ele aceitava como se fosse tudo o que esperasse dela. Não se lembrava de ter agido assim com mulher alguma, mas, que diabos! Não se lembrava de nada mesmo!

Com um suspiro involuntário, caminhou até a sala de jogos, sentando-se em frente ao tabuleiro de xadrez e olhando para as peças, como se esperasse que algo acontecesse... até que um homem chegou e perguntou se queria um parceiro para jogar.
John se desculpou e saiu. Não queria jogar xadrez, apenas tivera uma impressão forte a respeito e tentara forçar a mente a se lembrar. Mas não funcionou.
Pelo jeito, teria mesmo que se contentar em ser hóspede da “Dra” Sarah, pelo menos por enquanto. Manter posição, e esperar. O pensamento veio à sua mente repentinamente, como uma ordem gravada e repetida muitas e muitas vezes...
Estava quase chegando à enfermaria E, quando alguém às suas costas gritou:
- Ei! Professor!
- Sim? – ele se voltou, para ver quem o chamava, e só viu um jovem que chegava perto de um daqueles médicos, com os braços cheios de livros, obviamente pra fazer alguma pergunta acadêmica.

Um novo estalo em sua mente, e John saiu quase correndo, de volta ao escritório de Sarah.
Entrou quase como um tufão, fazendo a mulher desviar a atenção daquilo que chamava de computador para ver quem chegara assim tão intempestivo.
- John, o que... – ela começou, mas ele já se apoiava na mesa com as mãos, debruçando-se até falar bem perto dela:
- Professor... Sou algum tipo de professor. Consigo me ver vagamente em uma classe cheia de... crianças... não, jovens... mas muito novos, suponho.
- E... – ela o incentivou a continuar.
- Não sei... Só vejo sombras, como se o lugar fosse escuro, frio...
- Mas que maravilha! – ela levantou-se e rodeou a mesa, abraçando-o efusivamente.
John quase caiu, tal a surpresa, mas ela já se afastava e voltava para o computador, para a tal Internet.
- Vamos ver. Isso é um dado precioso. Professor, com conhecimentos antigos... quem sabe, professor de história? Ou de alguma matéria ligada à Química, que não conseguimos ver... Vou passar um correio para um amigo meu, que é do Depto de Química da Universidade. Ele tem contato com outros centros, de outros países. Às vezes tem alguma pista. Algum professor desaparecido em viagem ou pesquisa...

Ela não parava de falar, enquanto digitava freneticamente. John sentia-se levemente irritado, como se toda aquela animação e barulho fossem completamente incompreensíveis e desnecessários.
Das poucas coisas de que conseguia se lembrar até agora, uma era de que adorava silêncio, sossego, solidão. As melhores horas, para ele, eram sempre as noturnas, onde os outros dormiam e ele podia pensar, sem ter alguém tentando conversar ou atraí-lo para alguma atividade... como era mesmo o nome?

Por algum motivo, sabia que palavras importantes lhe faltavam. Palavras que aquelas pessoas não usavam freqüentemente, então, ele ainda não as escutara para se lembrar o que eram. Então, na sexta, partiria. Quem sabe, assim, teria contato com outras pessoas, que tivessem informações capazes de preencher aquelas grandes lacunas em sua mente?
Agora, já sabia que era um professor. Embora sentisse que isso não lhe fosse totalmente agradável, como que... um desperdício. Como se os alunos, quem quer que fossem, não tivessem a capacidade de compreender na íntegra o que tentava lhes ensinar.

Mas não disse nada disso a Sarah. Ela continuava ali, a mandar os tais “correios”, coisa que também o intrigava. Sabia com certeza não ter nenhuma familiaridade com algum daqueles aparelhos e máquinas estranhas de que ela se utilizava o tempo todo. Computador, telefone, fax... não conhecia nem mesmo a tal televisão, onde acompanhara com os companheiros de internação noticiários e outros programas. Mas nenhum deles havia despertado sua atenção em especial
- Prontinho. Talvez, hoje mesmo, tenhamos alguma resposta interessante. – ela falou, enfim, virando-se definitivamente para ele – Que bom que você se lembrou disso, John. Como foi?
- Ah, eu ouvi alguém chamando no corredor e respondi instintivamente. – ele explicou.
- Que ótimo. Ótimo mesmo. Isso significa que sua mente já está querendo se abrir. É só uma questão de tempo...
- E temos todo o tempo do mundo – ele repetiu.
- Exatamente! – Sarah sorriu. Neste momento, ele se enterneceu com a expressão dela, que demonstrava estar feliz... por ele.
E ele sorriu também, embora tristemente.
- O que foi? – ela indagou.
- É que... você sempre me surpreende.
- Eu? – ela ficou encabulada – Por que? Não faço nada de mais. Esse é o meu trabalho.
- Mas você gosta do seu trabalho. E parece gostar de todos... até de mim.
- Por que não gostaria? – ela sorriu ainda mais encabulada – Olha, realmente faço o que gosto, e nem todos podem se dar a este luxo. E sou assim mesmo, gosto de todo mundo, mas... por que não deveria gostar de você? – ela tinha um brilho estranho no olhar.
- Não sei. Isso não me parece... normal.
- Lá vem você de novo com essa história de parecer normal... Tudo bem, sei que os ingleses são mais secos... os europeus, pelo menos os não latinos, são mais frios mesmo,sei disso. Mas você age como se qualquer demonstração de apreço fosse novidade pra você. Como se tivesse vivido sempre rodeado de inimigos... Alerta o tempo todo, como um espião.
Ele deu um salto que assustou até a ela.
Mas Sarah riu tanto em seguida, que o motivo do susto foi perdido.

E John retornou à enfermaria, sem pensar mais naquilo. Pelo menos por enquanto.

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