capítulo 7



Só uma explicaçãozinha básica pra quem não é fluente em francês (hihi, que nem eu ) : "Laurent" se pronuncia "lorrãn", ok? O pai de Sarah descende de imigrantes da Guiana Francesa.

Ah, quase me esquecia... neste capítulo, alguém que vocês "conhecem" será citado. Quem´será capaz de descobrir?

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Ao contrário do que imaginara, Sarah dormiu bem o resto da madrugada e acordou no meio da manhã.
O apartamento estava tão silencioso, que quase se esqueceu de que tinha um hóspede. Ele estava sentado à mesa, lendo um dos livros que pegara na estante do quarto.
Sarah murmurou um bom dia, foi para o banheiro e tomou um longo banho. Vestiu-se e rumou para a cozinha. Viu que ele já tinha se virado por lá, tomando leite frio e comendo biscoitos. Resolveu preparar um café decente e levou para a mesa.
Ele parecia concentrado na leitura, mas se ergueu assim que ela se aproximou da mesa.
- Não acredito que você esteja satisfeito com o que achou na cozinha. Fiz um café de gente grande!
E lhe estendeu o prato com torradas, ovos mexidos, serviu-lhe uma xícara fumegante de café e ainda trazia uma jarra de suco de laranja, uma de leite e copos.
- Sei que pelo menos assim fica mais parecido com um autêntico café inglês.
- Obrigado. – ele disse, sem erguer os olhos do livro, mas depois de alguns minutos, deixou-o de lado e começou a comer.
Comeram em silêncio, cada um concentrado em seus próprios pensamentos. Sarah terminou primeiro, já foi ajeitando as coisas e limpando tudo, enquanto John terminava.
Quando ele lhe entregou as coisas que haviam ficado na mesa, ela agradeceu e, inexplicavelmente, começou a rir.
- O que foi? – ele perguntou, intrigado.
- É que... parece que fazemos isso há anos... você não acha? Pareceu tão... família!
- Mas eu não tenho família. – a informação saiu, rápida demais pra ele se conter.
- Tem certeza? – ela perguntou – Você é ainda jovem, garanto que não tem nem 40 anos, e... é bem atraente.
Ele a fitou, curioso. Ela ficou sem jeito.
- Ora, não me diga que não notou a turminha que vivia jogando charme pro seu lado no hospital! Você chama atenção, ainda mais com essa amnésia. Te dá um ar misterioso, e isso é um charme, pra algumas mulheres. Pra outras, você parece desamparado, desperta o “instinto maternal” delas.
Ele recordou a conversa dela com a mãe, e indagou:
- E em você? Também desperto seus instintos maternais?
Ela o fitou, piscando, meio confusa, antes de responder:
- Sim... e não. Seu caso mexeu com meu orgulho profissional, quero resolver isso a qualquer custo, ou não me chamo Sarah Laurent! – ela sorriu, encostando-se na pia e cruzando os braços – Mas esse meu jeito de mãezona, ou de irmã mais velha, não se preocupe, é crônico, mesmo eu sendo quase a caçula... André é o mais novo. E te adotei pra minha “ninhada”, como meus irmãos dizem, com toda certeza.
- Você até parece com a esposa de um conhecido meu... – ele falou quase sem querer.
- Quem? – ela perguntou, tentando não demonstrar sua ansiedade com o novo “insigth” dele.
- Não me lembro... – ele fitava a parede, como se um quadro fosse se formar ali, mas nada – Só consigo pensar em um mar de cabeleiras vermelhas...
- Uma família de ruivos? Que interessante! No Brasil, isso é muito raro. Mas na Inglaterra, é mais comum. Pelo menos, é mais uma pecinha para nosso quebra-cabeça... Bom, vou me trocar e te dar a sua primeira aula de informática, Professor Smith...
- Não é Smith, é... – e o nome fugiu de novo.
Sarah, sorriu, compassiva, batendo-lhe no ombro.
- Não se esforce demais. Dê tempo a si mesmo. Olha quanto já caminhamos em... 3 dias? Você já sabe que era professor, que não morava em Londres,que tem amigos ruivos, que seu nome realmente começa com “S”...
- E que posso ser um criminoso procurado há quase uma década.
- Não se preocupe mais com isso, ok?
- Ok... – ele deixou escapar um suspiro desanimado.
Sentia-se preso àquela situação, numa posição nada agradável, mas uma voz lhe dizia bem no fundo que já estava habituado a situações incertas...

Sempre é tempo para aprender algo novo. Por mais improvável que pareça que vamos conseguir dominar aquilo em pouco tempo. Foi isso que John descobriu dali a pouco.
O computador era de longe a máquina mais louca com que fizera contato até então. Todos aqueles botões e instruções... Mas Sarah era a paciência em pessoa para lhe explicar quantas vezes fosse necessário, e na hora do almoço, ele já tinha feito um bom progresso. Na opinião dela, claro!
Ela mesma preparou a refeição deles, e pouco mais de uma hora depois, estavam saindo para a casa de seus pais.
John não demonstrou, mas estava apreensivo. E se a família dela reagisse com hostilidade à sua presença? O que faria? Não podia simplesmente dar meia volta e partir.
“Você já está acostumado com isso, meu velho. Hostilidade é coisa comum por onde você passe” – uma voz lhe dizia dentro de sua mente.
E ele constatava que só podia ser verdade. Não se achava um homem sociável, não tinha facilidade para jogar conversa fora, para rir das piadas dos outros, para fazer suas próprias, as várias semanas dentro de uma enfermaria com mais meia dúzia de homens lhe mostrou isso claramente. E também parecia incomum passar tanto tempo ao lado de alguém sem ser por motivo de trabalho, como agora com Sarah. Mas – lembrou a tempo – ele era “o trabalho dela”. Isso pareceu confortá-lo e então relaxou, passando a ficar atento à paisagem, a partir dali. Já haviam deixado a capital para trás, mas logo passavam por outras menores, mesclando sempre paisagens mais rurais e rústicas com paisagens urbanas. A estrada era muito movimentada, com carretas e caminhões, mesmo aos sábados, ele constatou, mas Sarah dirigia com segurança e mantinha a concentração.

Por volta das quatro da tarde, chegavam à sua cidade, e ela estacionava em frente a uma grande casa com varanda e um amplo jardim florido.
Já abrindo o porta-malas e entregando a John sua mochila, foi logo entrando, carregando a sua própria.
Uma mulher jovem e negra vinda de um dos cômodos a abraçou efusivamente, ao mesmo tempo que o examinava com curiosidade. Então, exclamou:
- Mas esse é o Alan Rickman!
Sarah olhou para ele como quem dizia “eu não te disse?” e caiu na risada.
- Está é Berenice, minha “gêmea” – ela explicou, ainda rindo.
- Pode me chamar de Berê, como todo mundo. – ela se adiantou, apertando sua mão e lhe dando três beijinhos sem nenhuma cerimônia. – Então, você é o amigo inglês da Sarah? Cara, esta cidade vai virar um fervedouro...
- Menos, Berê, menos! – Sarah ainda ria – Cadê mamãe?
- Na cozinha, onde mais? – Berê riu, um sorriso amplo e quente.
- Vem, John, venha conhecer nossa mãe! – Sarah puxou-o pela mão.
Ele cruzou com ela outros cômodos e um corredor até o que deveria ser a cozinha: um varandão nos fundos da casa com uma ampla mesa, plantas e móveis enfeitados. E um grande fogão, e um forno à parte, de onde uma mulher corpulenta acabava de retirar um grande tabuleiro fumegante.
Ela os viu entrando, quando se virou para a mesa, pousou-o ali e já foi se encaminhando para lado deles, tirando as luvas de cozinha e abraçando Sarah com alegria.
- Minha filha, que saudades! Pensei que ia ficar sem vir aqui até o Natal!
- Que exagero, mãe. – Sarah falou, de dentro do abraço.
- E esse – a mulher já a soltara e se dirigia para John – é o moço que você falou?
- Sim, mamãe. Este é John.
A mulher o examinou detidamente e pareceu se dar por satisfeita depois de alguns segundos.
- Bem-vindo, meu rapaz. Você parece ter a idade do Felipe... Apesar desse ar triste que lhe deixa mais velho. Mas, venha, aposto que vocês só fizeram um daqueles lanchinhos da Sarah. Venha comer direito. Já está na hora do lanche, mesmo!
- Pronto, não escapa mais dela! – Sarah comentou e Berê a acompanhou na risada.
John sentou-se na cadeira indicada pela mãe de Sarah, pensando que realmente efusividade era o ponto forte daquela família. Aquela senhora, que parecia capaz de meter medo em qualquer um se quisesse, o envolvera em uma onda de carinho e atenção, e ele entendeu de quem Sarah assimilara aquele jeito de ser. A Sra Laurent era um modelo perfeito. E que logo o repreendeu por estar sendo formal, e mandou que lhe chamasse apenas de Beatriz, ou de mãe, como todos, se preferisse.
- Isso – Sarah sorriu – Beatriz, aquela que te faz feliz!J
ohn pensou que seria intimidade demais para ele, chamá-la de mãe, e Sarah ria, divertida com sua expressão.
- Alguém aí está fazendo um lanche e não me chamou? – o vozeirão pertencia a um homem negro, alto e forte que entrou na cozinha, vindo de um dos cômodos da casa que John ainda não descobrira.
Abraçou a filha adotiva com imenso carinho e se dirigiu a ele com cordialidade:
- Então, você é o professor inglês? O que conhece Nicolau Flamel?
John olhou para Sarah, indeciso.
- Comentei com papai sobre seu conhecimento de história antiga. É um de seus assuntos favoritos.
- Mas ninguém vai filosofar na minha mesa, por enquanto, “seu” Martinho.
- Claro, querida. Vim aqui atrás do cheiro do bolo de fubá. Acredite, rapaz, você nunca provou nada igual.
- Tenho certeza disso – John comentou.
Logo, todos realmente se deliciavam com o bolo recém-assado e um café saboroso.
Mas foi impossível deixar de “filosofar”, como queria D. Beatriz. Com Martinho à mesa, a conversa acabava girando em algum assunto científico ou filosófico ou algo similar.
E, para surpresa de Sarah, John conversava com seu pai com grande tranqüilidade, demonstrando uma versatilidade de conhecimentos e opiniões que ela desconhecia até então.
Ela acabou concluindo que a conversa descontraída, no clima familiar, estava contribuindo para liberar suas lembranças, pelo menos as “acadêmicas”. E, depois de algum tempo, nem se surpreendeu quando os dois homens foram juntos para a biblioteca do seu pai.
Quanto a ela, tratou de guardar as suas coisas no quarto que ainda dividia com Berenice e levou as coisas dele para o quarto de André, que sua mãe realmente já arrumara para o visitante.

No início da noite, quando todos conversavam na sala, Berê se levantou de repente:
- Sarah, lembra-se da Izabel, aquela garota novinha de Santa Catarina que estudou inglês conosco?
- Lembro sim. Aliás, falei com ela há uns quinze dias, acredita? É uma senhora “dotora adevogada” agora! Um casal de Santa Catarina adotou um dos garotos da Fundação, ela que tratou da papelada pra eles.
- Ah, ela nos mandou uma carta, esta semana. Deve ter sido por isso, então, falou com você e se lembrou da gente.
- E o que tem a carta?
- São as cópias das fotos daquela festa de “Dia das Bruxas” que a professora de inglês fez, lembra? A gente nem sabia direito o que era isso.
- Nossa! Nem lembrava desta festa...- Sarah riu.
John ficou atento. “Dia das Bruxas” era algo pra prestar atenção, ele não soube bem porque.
Mas Berê já correra ao quarto, e voltava com um envelope pardo, cujo conteúdo despejou na mesa de centro.
Em praticamente todas as fotos, jovens com vestes pretas e chapéus cônicos, narizes falsos e grandes abóboras com caretas recortadas.
Mas as “irmãs Laurent” eram as diferentes. Berê usava uma esplêndida peruca loura, com um vestido longo em preto e roxo, e estava muito engraçada.
Sarah vestia algo parecido, o vermelho em lugar do roxo, e trazia o cabelo preso de uma forma diferente, ao estilo anos 60.
Em outra foto, elas usavam vestidos “normais” também “anos 60”, contrastando com as colegas ainda mais.
- Nossa! Você ficou ótima de Samantha... – Sarah comentou, rindo – eu nem me lembrava o quanto.
- Ridículo, não? – Berê riu também, mas estendeu a foto para o pai – Olha só, “papi”, não fico ma-ra-vi-lho-sa de loura?
O pai examinou a foto com interesse, mas parecia horrorizado. Passou a foto para John, comentando que aquelas meninas sempre “aprontavam”...
- Mas... – John indagou, confuso – O que vem a ser isso,a final? Por que vocês estão vestidas... desse jeito?
- Ah, nossa professora de inglês resolveu fazer uma típica festa de “Dia das bruxas”. Hoje, já é moda, os cursos de inglês difundiram o costume que virou mania das crianças. Mas na época, não era comum.
- É, e nós resolvemos “encarnar” nossas personagens favoritas.
A um levantar de sobrancelhas, Sarah explicou:
- Nosso seriado de tv favorito era “A Feiticeira”. A história de uma bruxa casada com um mortal. Era muito engraçado. Ele não gostava que ela usasse magia, então sempre tinha confusão, principalmente se alguém da família dela aparecia pra fazer uma visita e se houvesse mais algum mortal presente, principalmente se fosse o Larry, o chefe dele.
- E tinha a prima dela, a Serena, que aprontava todas... era a predileta da Sarah.
- Isso. Por isso, me vesti de Serena. Olha só.
- E eu pus uma peruca loura pra fazer a Samantha. Ficou muito louco... mas acho que não pagava esse mico por nada, hoje em dia.
As duas riam, comentando sobre a festa, enquanto John observava a foto, curioso. A notícia de filmes de tv falando de bruxas e feiticeiras lhe provocou uma sensação estranha....
Mas tentou contornar, indagando:
- Foi a esta Serena que você se referiu, ontem, no shopping?
Encabulada por ele ter percebido seu pequeno desabafo no dia anterior, ela concordou em voz baixa:
- Às vezes, dá vontade de ser como elas... mexer o nariz e transformar algum idiota em sapo...
- Mexer o nariz? – ele indagou, ainda mais surpreso
- É... era o jeito delas fazerem mágica, no filme. Mas não conheço ninguém que consiga mexer o nariz daquele jeito – e ela passou a olhar para a ponta do próprio nariz, obviamente tentando o movimento certo, o que fez sua irmã cair na gargalhada.
- Acho que varinha mágica deve facilitar as coisas – Berê comentou, e as duas continuaram rindo e olhando as fotos.
Mas John permaneceu em silêncio. Algo naquela conversa o incomodara visivelmente, mas apenas o Sr. Martinho percebeu sua expressão de questionamento íntimo.

O dia de domingo amanheceu ensolarado e festivo, e John descobriu o que era um almoço de domingo em família. Pelo menos, em se tratando da família Laurent.
Além de Sarah e Berenice, teve também Neuza, a filha mais velha, que foi pra almoçar com o marido e os filhos, dois pré-adolescentes que ficaram olhando meio desconfiados para o amigo da tia. Mas não falaram nada, e Sarah até sentiu alívio por isso. Seus sobrinhos costumavam fazer perguntas constrangedoras, mas pelo jeito algo no hóspede os intimidou. Ela os viu cochichando e apontando pra ele umas duas vezes, mas não se aproximaram.
Ao fim da tarde, quando Sarah se despediu dos pais e das irmãs, John partiu com um sentimento diferente de tudo que pensava ter sentido na vida, pelo que se lembrava. Sentira-se parte daquela família barulhenta e grande.
Martinho Laurent fora uma surpresa. Culto, tranqüilo, conversara com ele de tudo um pouco, sem qualquer esforço. E já tinham assunto programado para o próximo fim de semana, com certeza.
Sarah gostou de ouvi-lo falar do seu pai. Eles pareciam ter realmente se tornado amigos. Isso aqueceu seu coração de uma forma estranha. Queria que ele se sentisse parte de algo, de uma família de verdade. Mas não entendia porque isso era tão importante para si mesma...


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