capítluo 2



Em sua sala de trabalho, Sarah preparou-se para mais uma rodada de busca pela Internet. Pela enésima vez... Por sorte, todos os outros casos da Enfermaria “E” já estavam encaminhados. Alguns sairiam neste fim de semana. Outros esperavam a chegada dos parentes para o final da outra. Sarah já providenciara o envio de recurso para compra de passagens de três familiares do Interior. Agora era só aguardar. Mas o John Smith...

Há duas semanas que tentava insistentemente, sempre que tinha uma chance. E mais uma vez, o dia passou sem que encontrasse nada. Naquele dia, não ia à fundação infantil em que trabalhava à tarde, então resolvera intensificar a pesquisa. Nem saíra para almoçar, comera um lanche que uma funcionária lhe trouxera a seu pedido. Consultara sites de consulados e embaixadas. Nada. Nenhuma notícia de algum turista ou funcionário inglês perdido no Brasil.

Assustou-se ao ver que já eram quase seis horas da tarde. Nem percebera o tempo passar, mas o corpo reclamava do esforço excessivo, isso ela não podia negar.
Suspirando profundamente, afastou-se um pouco da mesa e fez uma longa seção de alongamento. Sentia dores nas costas, nos ombros, nos braços...

Levantou-se e foi fazer uma “ronda final”, já que estava ali mesmo. Depois de desejar boa noite a todos os outros cinco pacientes da enfermaria, chegou ao leito sete. Seu ocupante mantinha-se quieto, ao contrário dos outros que conversavam sentados, ou jogavam damas ou viam tv. Claro que a barreira da língua contribuía muito com esta condição, já que nenhum dos pacientes falava inglês e as enfermeiras que estudavam o idioma ainda não dominavam o suficiente para se arriscar a uma conversação com alguém tão arredio. Só lhe arrancavam respostas monossilábicas. Entretanto, parecia entender as ordens médicas, pois sempre seguira as orientações dos fisioterapeutas com seriedade, e já se exercitava e caminhava normalmente, em pouco tempo de tratamento. Afinal, o acidente ocorrera há pouco mais de um mês...

Sarah chegou até ele, sentou-se na cadeira ao lado da cama, e o fitou em silêncio. Aquele homem era intrigante. Nas duas semanas que estava ali, depois da liberação da ala clínica, não fizera o mínimo esforço para se relacionar como os demais, ou ser gentil com a enfermagem, mas ela tinha certeza de que alguma coisa ele já entendia do português. Se já se lembrava de alguma coisa a cerca de quem era ou de onde viera, não demonstrava.

- "Por que? "– ela indagou mentalmente, ainda pensando se adiantaria perguntar em voz alta – "Por que se recusa a nos deixar ajudá-lo? "
- "Porque vocês não podem." – a resposta dele em voz baixa e rude a assustou.
- "Como faz isso? "– indagou já em voz alta.
- "Isso... o que? "– ele a fitou.
- "Como sabia o que eu estava pensando? "– ela retribuiu o olhar, sem medo.
Mas ele pareceu não ter resposta. Seu olhar ficou perdido por uns segundos, antes de completar com voz cuidadosa:
- "Eu simplesmente adivinhei, pela sua expressão." – mas parecia não convencer nem a si mesmo.

Sarah suspirou, antes de continuar o diálogo em inglês, que os outros pacientes, agora calados, acompanhavam mesmo sem entender praticamente nada. Gostavam da assistente social, e recriminavam aquele estranho por sua constante grosseria com alguém tão atenciosa e gentil com todos.
- "Eu não entendo porque você não confia... "
- "Em sua capacidade profissional? Não é esta a questão. Apenas sei que, veja bem, no “meu” caso, ela não vai adiantar muito. Mesmo com toda essa... experiência em casos difíceis que você parece ter."
- "Por que não? "
- "Porque eu não sou um de seus costumeiros “casos difíceis”... "
- "E o que é, então? "
- "Sinceramente... gostaria de saber. Mas estou sem respostas, por enquanto. Sinto muito. "
Ele fez um gesto de impaciência, demonstrando o quanto estava igualmente frustrado por não conseguir se lembrar de nada ainda.
- "Parece que tudo sumiu... como foi que você disse? Ah, sim! Num passe de “mágica”! "
O tom irônico da última frase se deu a Sarah a certeza de que ele registrava tudo à sua volta e só não cooperava porque não queria.
- "Está bem. Quando achar que eu posso servir pra alguma coisa, mande me chamar então. Porque tenho certeza de que você já se vira o suficiente pra fazer isso".. em nossa língua. – ela completou em português, depois fez um último aceno para a enfermeira que observava do fundo do aposento, fingindo estar apenas ajeitando uma cama, e saiu, cumprimentando os demais com a cabeça.

Entretanto, ao fechar a porta escutou o paciente do leito 6, o Sr. Justino, um lavrador que aguardava a filha para levá-lo pra casa, comentar:
- Ela fez mais por você do que por qualquer um de nós, o que já não é pouco...
- Why? – John indagou, sem conter o espanto, mas ainda não dando o braço a torcer de que entendia o que o outro estava falando.
- Ela lhe deu seu sangue, amigo. Isso é pra qualquer um ter pelo menos um pingo de gratidão.

Sarah não pode ver, mas John Smith entendera perfeitamente o colega de alojamento, e isso só serviu pra deixá-lo mais confuso. Enquanto todos retomavam o que faziam antes, deixando de prestar atenção no “gringo turrão”, ele tentou se lembrar de como chegara ali.

Só conseguia se lembrar do instante em que abrira os olhos, deparando com uma luz forte sobre sua cabeça, que o fez fechá-los novamente. Sentia que pessoas o tocavam, ouvia conversas sussurradas e rápidas, ordens curtas que se sucediam... sim, eram ordens, que alguém cumpria em completo silêncio, mas ele ouvia ruídos de pessoas se movendo, objetos de metal se chocando levemente... mas não entendia uma única palavra do que conseguia captar. Um cheiro estranho que não identificava tornava ainda pior a sensação de estar completamente insensível à dor. Isso, o fato de não sentir dor, era o mais intrigante. Será que morrera? Por isso não sentia nada? Tentou fazer força para respirar, e percebeu que um estranho objeto transparente estava preso ao seu rosto, mas não o impedira. Pelo contrário, o “ar” entrara límpido e fácil até os seus pulmões.

Alguém comentou alguma coisa, à sua esquerda, outro alguém se aproximou pelo lado direito. Notou-lhe os olhos abertos, trouxe um instrumento pequeno com uma luz na ponta – a primeira coisa levemente familiar que viu – e examinou seus olhos com atenção. Curioso: usava uma máscara e uma touca verde, os olhos azuis atrás de lentes redondas sorriram e outro comentário que ele não entendeu foi feito.
Tentou levantar os braços, e não conseguiu. Sentiu uma mão gentil, embora coberta por algum tipo de material que ele não reconhecia, segurar seu pulso, examinando o braço. Alguma coisa ali queimava levemente, mas ele não conseguiu erguer a cabeça. Virou-se lentamente, mas a visão se turvou, numa vertigem. Murmurou alguma coisa. O homem ao seu lado se virou para os demais – sim, porque tinham outros na sala, isso ele tinha certeza, e perguntou algo. Alguém à sua esquerda respondeu em voz baixa, uma voz feminina.

Então, depois de alguns minutos, a voz soou mais clara, agora compreensível para ele. Alguém, uma mulher, também naqueles estranhos trajes verdes, a voz suave meio abafada pela máscara em sua boca, falou com ele em um inglês límpido e claro:
- "Está tudo bem, agora. A transfusão correu bem, e você logo se sentirá melhor. Fique tranqüilo, esta é a melhor equipe médica do melhor hospital da cidade. Você está em boas mãos."
Equipe médica? Hospital? Transfusão? Aquilo tudo soava muito estranho pra ele. Algo lhe dizia que nunca em sua vida vira qualquer uma daquelas coisas de... como era mesmo o nome?
Então, abismado, ele percebeu. Não se lembrava de nada! Quem era, onde estava, porque... Apenas uma vaga lembrança de uma... explosão de luzes. Essa era sua única certeza, antes de abrir os olhos naquele lugar estranho, iluminado e intensamente limpo.

- "Não se esforce agora. Você se feriu bastante, principalmente nas pernas. A explosão atirou você longe. Mas vai se recuperar totalmente." – ela tinha a voz gentil, como se falasse a uma criança, e o som parecia querer arrancar alguma coisa do fundo de sua mente, mas quanto mais se esforçava, mais a cabeça latejava.
Depois, a enfermaria, as agulhas em seu braço, incomodando-o terrivelmente. Os cuidados da enfermagem, aquelas estranhas pessoas de roupas verdes ou brancas... E ela.

Sim, Sarah, a dona da voz suave, estivera presente naqueles dias estranhos. Quase sempre vestida de branco, invariavelmente com uma camisa estranha e longa sobre as roupas, e um homem negro, também com roupas brancas, e a mesma veste branca que ele logo registrou como sendo “jaleco”... uma das primeiras palavras que registrou daquela língua estranha aos seus ouvidos, embora sentisse que conhecia sua base...

O homem, Dr. Felipe, também conversava com ele em inglês quando o visitava, mas além dele e Sarah, ninguém mais parecia saber falar inglês. Então, foram eles que lhe contaram estar no Brasil, numa cidade cujo nome tinha certeza nunca ter ouvido mas que soava agradável.

Percebeu também que ele e Sarah deviam ser íntimos, pois se tratavam pelo primeiro nome e sorriam com naturalidade. Mas isso não queria dizer muito. Todos ali pareciam se tratar com demasiada intimidade, e sorrisos eram constantes. E uma de suas poucas certezas era de que não estava acostumado com tanta amabilidade... e intimidade.

Vieram homens fazer-lhe perguntas, de terno ou de roupas militares, mas sempre Sarah a lhes servir de intérprete. Viera um funcionário do tal de Consulado da Inglaterra, este sim, conversara mais tranqüilamente com ele, mas de nada adiantou. Não se lembrava de nada, e a única coisa que conseguira concluir fora o fato de ser um “súdito de Sua Majestade”... como o tal oficial do Consulado dissera.

Com o passar dos dias e semanas, a sensação de inadequação a tudo aquilo apenas aumentara, mas ele de alguma forma sabia que estava a salvo... de que, não entendia, mas isso o fazia permanecer ali, apesar de tudo. Afinal, não saberia pra onde nem como ir, se saísse agora.
Atento e silencioso, conseguira sim, assimilar muitos vocábulos e expressões. Os companheiros de enfermaria pareciam fazer questão de conversar de forma que ele acompanhasse os assuntos, então ele já entendia muito, embora não se arriscasse a falar, ou a demonstrar que entendia.

Mas aquela mulher era esperta. Percebera isso. “Lera” seus pensamentos naquela tarde, depois de constatar por dias seguidos que se fixasse alguém poderia perceber algo de seus pensamentos, sem entender direito como isso acontecia. Então, sabia que ela desconfiava de que já os compreendia pelo menos parcialmente, e também que estava ressentida por não confiar nela.

Por outro lado, ouvira as enfermeiras comentando com um dos homens que, antes dela assumir a função, passavam-se meses antes que muitos conseguissem voltar para casa ou pelo menos ter notícias dos parentes. Todos a respeitavam e admiravam. Por isso, a chamavam de “Dra”.

Mas... aquela história de sangue... algo estava errado... Pensou nisso, e pela manhã, tentando falar o mais amistosamente possível, dirigiu-se ao velho Justino.

- Por favor... – começou, hesitante.
O velhinho, já sentado em sua cama, aparentemente fazendo suas orações matinais em silêncio, olhou pra ele, surpreso. Mas sorriu, e isso lhe pareceu lembrar outro velho... Será que fragmentos de sua memória estavam emergindo? Então, perguntou:
- O senhor... falou ...sobre... sangue... Não entendi. O que... quis dizer?
- A transfusão... – Justino viu seu ar de desconhecimento – Você não sabe? Precisou de sangue. Estava muito ferido. Quase morto.
- Mas... como? Eu nunca vi isso – essa era uma de suas poucas certezas.
- Meu filho. Você recebeu sangue da Dra. Ela é doadora e tem seu tipo sanguíneo, um tipo muito raro, ouvi dizer.

John Smith tentava absorver as palavras, ditas bem devagar pelo outro homem, com a intenção clara de se fazer entender o melhor possível. Compreendeu afinal, que ela estava naquela sala com ele, no momento em que acordou, por este motivo. Seu sangue... Mas como faziam isso? Odiava ser ignorante de alguma coisa. Mas no momento, era ignorante de praticamente tudo, então, se deu por vencido, caindo novamente no travesseiro.

Como o outro ainda o observasse, esperando alguma coisa, murmurou com esforço:
- "Thank"... Obrigado.
- De nada. – Justino sorriu. E levantou-se para usar o banheiro, antes que os outros companheiros acordassem.

Lá fora, o dia clareava ainda. E John Smith tomou uma decisão inusitada: a partir dali, seria mais gentil com a assistente social. Alguma coisa lhe dizia que, afinal de contas, sem a sua ajuda não conseguiria se lembrar de quem era e voltar para casa. Se tivesse uma para onde voltar...

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