Parte I – Uma mente sem lembra

Parte I – Uma mente sem lembra



- Como está nosso paciente hoje, meninas?
- Ah... sem alterações. Mas à noite esteve agitado, murmurando palavras estranhas. – uma das enfermeiras respondeu.
- Inglês, novamente? – a Assistente social indagou, enquanto lia o relatório na papeleta do paciente do leito 7.
- Desta vez, acho que não... parecia latim... Sabe, aquelas frases enroladas que os padres falavam antigamente.
- Não sou tão velha assim, não me lembro! – ela retrucou, as enfermeiras riram, todas bem humoradas, risonhas e falantes, como sempre.
Sarah Laurent sorriu, enquanto continuava seu caminho pela enfermaria masculina naquela manhã. Naquela unidade, estavam os doentes ou feridos em acidentes que já estavam em condições de receber alta, mas não tinham como ir pra casa – geralmente moradores de cidadezinhas distantes e sem parentes conhecidos na Capital, ou então, como era o caso do paciente do leito 7, sem identificação segura.
O pessoal do hospital os chamava maldosamente de “os esquecidos” e à própria enfermaria de “Asilo”, mas isso longe da “Dra” Sarah...
Ela sabia disso, e se entristecia com a falta de consideração por pessoas tão sofridas como aqueles homens, que muitas vezes nem tinham uma casa realmente para voltar. Por isso, ela estava ali: para avaliar cada um desses casos, encontrar uma solução, conseguir contato com parentes, disponibilizar veículo para a condução e coisas desse tipo.
Mas o paciente do leito 7 era um caso raro e difícil. Encontrado muito ferido em um beco da cidade, próximo ao local onde ocorria um grande incêndio, fora levado pela polícia para o atendimento de urgência. Nenhum documento, nada, nem mesmo um pedaço de papel com algum endereço ou telefone.
Sarah riu do nome que inventaram para o pobre homem: John. Smith . Como em alguns momentos de delírio, ele gritara palavras em inglês, o haviam chamado assim.
- Ora – justificara a funcionária da internação – John Smith pros gringos não é que nem João da Silva pra nós? Então, se ninguém sabe o nome dele, pode ser esse, não pode?
Como não deixava de ser verdade, ficou por isso mesmo. E o desconhecido passou a ser tratado assim: de John Smith, ou, simplesmente, se referiam a ele como “o paciente inglês”, brincando com o nome de um filme que a maioria havia assistido.
Mas, para Sarah, ele tinha alguma coisa a mais, que não sabia explicar. Não era como os mendigos que circulavam pelo centro, muitos com família até em boa situação financeira, mas vivendo à margem de tudo, devido ao vício da bebida ou a doenças psíquicas. De vez em quando, as famílias até os recolhiam, alimentavam, tratavam, mas logo estavam de novo pelas ruas e praças da cidade.
Depois de conversar com todos os outros pacientes, chegou finalmente ao leito 7 e fitou com atenção seu ocupante.
Cabelos negros, escorridos pela face pálida e magra, já meio coberta pela barba sem fazer há vários dias, olhos também negros que refletiam uma dor contida e não revelada. Alheio a tudo em volta, ele fixara o olhar na janela defronte, que deixava ver uma réstia de céu muito azul além da espessa copa das árvores.
- “Bom dia!” – Sarah disse em seu bom inglês – “Como você se sente hoje?”
Ele a fitou por um segundo, mas não respondeu. Ela insistiu:
- “As enfermeiras da noite disseram que teve um sono agitado... Lembra-se de alguma coisa?”
- “Não.” – a voz seca saiu num murmúrio.
- “Alguma coisa veio á sua mente, algum detalhe? Qualquer coisa, por menor que pareça, pode nos ajudar a...”
- “Já disse que não. E vocês não podem me ajudar.”
- “Como pode ter certeza disso? Creia, me esforçarei ao máximo para..”.
- “E não adiantará nada.”
- Estamos falantes hoje, hein? – a enfermeira que trazia o medicamento do paciente no leito ao lado gracejou – A senhora foi brindada com 3 respostas. É mais do que qualquer uma de nós conseguiu até agora.
- Bom, vocês não falam inglês, né? Isso pode ter atrapalhado... – Sarah respondeu à mulher, em português, tentando disfarçar o quanto a fala do homem a incomodara.
Mas sorriu para ele, sentando-se na cadeira ao lado do leito. Fazendo de conta que ele não questionara sua capacidade profissional tão claramente, explicou com voz tranqüila, como fazia com todos os outros:
- “Já estou verificando nos registros de desaparecidos, inclusive com os consulados de língua inglesa, se há algo sobre alguém com a sua descrição. Se você era ou fazia parte de um grupo de turistas, ou nas listas de vistos de entrada. Mas qualquer coisa que você lembrasse, um nome ou lugar...”
- “Minha mente está vazia.” – ele comentou, depois de alguns minutos – “Como se...” – mas se interrompeu bruscamente, franzindo a testa, expressão curiosa.
- “Como se a tivessem apagado com mágica?” – ela tentou brincar, mas sua expressão de espanto foi tão assustadora que ela se retraiu – “Desculpe, não quis ofendê-lo, apenas uma forma de descrever o que aconteceu... bem, não sabemos ao certo, não é mesmo?”
Ele pareceu querer dizer algo, mas se calou. Parecia agora completamente imerso em pensamentos dolorosos.
Sarah, por sua vez, não sabia exatamente porque dissera aquilo. Vendo que não conseguiria mais nada com ele, afastou-se. Tinha muito trabalho a fazer, ainda pela manhã, pois à tarde já estaria em outro lugar, numa fundação em que trabalhava exaustivamente para encontrar lares adotivos para órfãos e meninos de rua que não tinham família. Sorriu, ao se lembrar dos “seus” meninos. Era muito mais agradável trabalhar com crianças, disso tinha certeza. Nenhuma era tão intratável como o Sr. John Smith...

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