capítulo 10



Tomavam o lanche da tarde, quando Berenice comentou que um amigo delas, que se tornara músico profissional, e famoso, estava na cidade para as férias, e prometera uma “canja” no antigo ponto de encontro da turma. Isso significava uma roda de violão que provavelmente iria varar a madrugada... Afinal, além dos amigos antigos a cantar velhas canções, apareceriam os fãs novos, com certeza. A presença do músico não passaria despercebida.
A irmã insistiu, disse que ela não podia ficar isolada dos antigos amigos, nem perder aquela oportunidade de ver o “amigo” sem ter que pagar ingresso
- Ok, você venceu! Batata frita! – Sarah exclamou e as duas riram juntas, enquanto Snape levantava uma sobrancelha curiosa.
- Isso seria o nome de algum feitiço daquelas suas... personagens favoritas? – ele perguntou, por fim
- Hein? – Berenice o fitou, confusa, mas Sarah respondeu de pronto, entendendo o que ele queria dizer.
- Ah, não. É só um pedaço de música. De um conjunto chamado Blitz. É como uma novelinha, eles estão em um barzinho e a garota quer batata frita, mas o cara não quer comprar. Depois, ele se dá por vencido e diz: “Ok, você venceu. Garçon, traga uma porção de batata de frita.”
- Isso! – Berenice completou, risonha – E nós usamos pra dizer: está bem,eu faço o que você quer...
- Ah... – ele entendera... pelo menos esta parte, admitiu em silêncio, mas Berenice lhe perguntava algo – O que disse?
- Eu disse que você vai também, claro.
- Bem... – ele olhou pra Sarah, antes de responder em tom alegre – Claro, não vou ficar trancado em casa numa noite que promete tanto!
Sarah examinou sua expressão com cuidado. Nunca imaginara que ele concordaria em acompanhá-las num programa desse tipo. Ainda mais que tinha detestado o movimento intenso do shopping...
Mas Snape lhe sorriu, um sorriso inimaginável no antigo professor de poções de Hogwarts, ela concluiu. Então, disse em voz alta.
- A sua sorte é que não estou com a câmera de Colin Creevey aqui!
Ele fez um falso ar de susto, ergueu as mãos como para repelir a ação da câmera, e os dois riram então com vontade.
- Vocês poderiam pelo menos me explicar qual a piada, assim eu posso rir também – Berenice reclamou, e eles a fitaram como se ela fosse uma assombração. E riram mais ainda.

Intimamente, Snape pensou que, sem dúvida, muitos de seus ex-alunos não acreditariam se o vissem agora, rindo como se tudo em sua vida se resumisse àquela tarde na varanda programando um passeio noturno com duas mulheres, e o que era pior: duas trouxas. Uma vaga impressão de Lucius Malfoy fazendo um comentário maldoso a respeito também passou, fugaz, por sua mente, mas ele o expulsou sem pestanejar. Não nutria nenhuma “segunda intenção” para com Sarah ou sua irmã, com certeza. Nada parecido sequer passara por sua cabeça, e por um momento ele se perguntou porque. Mas depois, resolveu não pensar no assunto, pelo menos não por enquanto...

Quando, finalmente, estavam prontos para saíram de casa, Snape pensou por um momento se não seria um erro expor-se mais ainda, convivendo com tantos trouxas assim. Por um minuto, passou por sua cabeça a idéia de que talvez ali também existissem bruxos, não revelados. E se soubessem do ocorrido na Inglaterra, e o reconhecessem?
Sarah riu-se de sua preocupação. Estavam no “mundo real”... bem, isso não era um argumento muito forte, ela reconheceu, mas, quem sabe ele não atravessara o portal dimensional que dividiria o “mundo da ficção” e o “mundo real”? Quem sabe, ele não teria também passado por aquele véu misterioso, como Sirius Black?
A simples possibilidade de ter ido parar no mesmo lugar que aquele... “Pulguento” o fez ficar tenso.
Sarah se desculpou, era só brincadeirinha. E ele a ameaçou com uma “cruciatus”, caso pretendesse continuar com aquelas... brincadeirinhas.
Mas Berenice reclamou daquele papo de doido, enquanto Martinho os acompanhava até o portão, com as costumeiras e infindáveis recomendações de pai:
- Meninas, lembrem-se: se pedirem bebida, que seja aberta na sua frente. Se forem ao banheiro, quando voltar peçam outra, e...
Berenice interrompe: - Ora, pai, não somos mais crianças, sabemos nos cuidar. E todo mundo lá é de casa!
- Nunca se sabe, todo cuidado é pouco. Vigilância constante! Não é mesmo, Professor?
Entre divertido e espantado, já que o velho bombeiro acabara de repetir o "lema" do lendário auror Olho Tonto, Snape respondeu:
- Claro. Nunca se sabe se alguém vai pingar umas gotinhas de veritaserum na sua bebida e fazer você confessar seus segredos na frente de todo mundo...
- Meu Deus! Quanta bobagem! – Berenice retrucou – Gente, só vamos à Pizzaria do Bentinho...ali na praça da cidade!
Ao que Snape respondeu:
- Você ouviu seu pai, mocinha. “Vigilância Constante”!
Rindo, os três se despediram do velho coronel que resmungava um discreto “pelo menos alguém me entende” – e seguiram a pé até a tal pizzaria, que realmente era muito próxima.

Ao entrarem, viram logo o grupo já bem estendido de mesas e cadeiras, em volta de um homem de cabelos claros e repicados, tocando violão e cantando. John logo o reconheceu como o cantor da festa de Natal da Fundação. Ele também os viu, acenou-lhes, despertando a atenção dos outros, e parou de cantar:
O cantor pigarreou, enquanto alguns protestos eram ouvidos.
- Desculpem, mas... é que chegou alguém muito importante pra mim, e não posso deixar de cantar uma especial para ela, mesmo que pelo visto não tenha mais nenhuma chance... Mesmo assim, ela continua sendo a Dona do meu coração, por isso...
Ele posicionou novamente o violão, e cantou:
- “Donna desses traiçoeiros sonhos sempre verdadeiros... Donna desses animais, donna dos seus ideais...”
Sarah o fitou, embaraçada, mas sorriu. Murilo não tinha jeito, não mudaria nunca. Ele piscou, e enquanto cantava toda a melodia, permaneceu encarando-a sem inibição. Snape olhou de um para o outro, desconfiado. Desde que recuperara a memória, evitava sondar a mente de Sarah, mas neste momento não resistiu. Então, pode ver que ela e o homem que cantava já haviam partilhado alguma espécie de relacionamento.
Então, perguntou, em voz baixa, sem refrear a curiosidade:
- Vocês já foram... íntimos?
Sarah o olhou, confusa por um instante, mas foi Berenice quem respondeu, antes de se adiantar para as cadeiras vazias que já eram ajeitadas pelos amigos:
- As palavras “primeiro namorado” lhe dizem alguma coisa?
Sarah fez uma careta pra irmã, que já se sentava, cumprimentando alegre a todos, e explicou em voz baixa:
- Sim, foi meu primeiro namorado, eu era muito nova. Mas ele foi atrás da carreira, e nos distanciamos. Hoje somos amigos, mas praticamente só nos vemos em situações como esta, em que tanto eu quanto ele estamos por aqui. E quando ele aparece em alguma festa lá na Fundação, claro. Sempre podemos contar com ele por lá, se estiver na cidade.
E o cantor continuava:
- “Pelas ruas onde andas, onde mandas todos nós...”
Alguns cantavam junto com ele, outros só acompanhavam em silêncio. Mas um casal chamou a atenção de Berenice, que cutucou a irmã.
- Olha quem está ali do outro lado.
Infelizmente, alguns companheiros da mesa também perceberam, e comentavam alguma coisa baixinho, o que incomodou Sarah de verdade.
- O que foi, agora? – Snape perguntou, seguindo a direção de seu olhar levemente contrariado e observando o casal disfarçadamente.
O homem parecia sem lugar, com cara de quem queria ir embora naquele mesmo instante, mas a mulher mantinha uma postura altiva, desafiadora, e de vez em quando procurava por Sarah com o canto do olho. Ao perceber que Sarah, aparentemente, não estava sozinha como pensou, voltou sua atenção pra Snape, analisando-o descaradamente. Snape a fitou, entre curioso e contrariado. Nunca gostara deste tipo de situação, que a ele parecia pura perda de tempo, quando coisas muito mais importantes estavam acontecendo por todo lado... Não sabia, mas sua atitude o fez parecer um atento e perigoso protetor de Sarah.
Entretanto, Murilo terminava a música, sendo saudado por palmas efusivas.
- Então? Agora, vocês é que mandam... O que vamos cantar juntos? – ele perguntou, meio indeciso. – Já que puxei Sá e Guarabira, vamos de “Riacho do Navio”, que tal?
E começou uma série de outras canções.
Quando fizeram uma pausa, Murilo cochichou para Sarah, ao seu lado:
- Vejo que continua preferindo os “mais maduros”... – e apontou sutilmente para Snape.
Sarah entendeu e balançou a cabeça em negativa:
- Ele é só um amigo, Murilo. Não temos nada um com o outro. Além do mais, é mais novo que você! – ela completou com ar de troça.
Murilo a fitou uns instantes, depois falou sorrindo:
- É... pelo que conheço de você, deve ser isso mesmo. Ou você teria tido um troço, agora. – ele riu de sua expressão indignada - Então, posso esperar que você mude de idéia e volte pra mim? – e piscou, maroto, enquanto cantava baixinho, chamando a atenção de todos mesmo assim
“Agora entendo...Que andei perdido...O que é que eu faço...Pra você me perdoar? Ah, que bom...Seria se eu pudesse te abraçar...Beijar, sentir...Como a primeira vez...Te dar...O carinho que você merece ter...E eu sei te amar ...Como ninguém mais. Ninguém mais...Como ninguém jamais te amou. Ninguém jamais...Te amou, te amou......como eu... Como eu...”
- Seu bobo! Maluco! – ela riu, mas depois ficou séria – E a Maggie?
- Ah... – ele ficou triste de verdade – Nos separamos “de novo”... Talvez você pudesse... ter uma conversa com ela. Você me conhece mais do que ninguém, talvez ela te ouça.
- Ia ser engraçado isso... Tome juízo, Murilo! Onde já se viu? Vou lá me meter no casamento de ex-namorado? Se a moda pega... E vocês são mais maduros que eu, ou deveriam ser, que coisa!
Eles riram juntos. A diferença de dez anos entre eles nunca fora problema para se entenderem, nem antes, nem durante, nem depois do namoro terminado.
Então, ele se virou para Snape, comentando:
- Lembro-me de você, na festa de Natal. Sarah já te “aliciou” também?
- Como? – Snape foi pego de surpresa com a pergunta
- Ora! – o outro riu – Essa mulher é uma coisa, vira um "trem" quando quer convencer alguém a defender sua causa favorita. Precisa ver quando ela está cem um salão cheio, então. Sei lá, parece que enfeitiça a gente, os olhos brilham de um jeito, que todo mundo fica é pensando: “Por que ainda não estou colaborando?” Você precisa ver, pra entender o que estou dizendo. Essa mulher é uma bruxa... Consegue convencer até o mais insensível dos brutos de que é preciso ajudar aquelas pobres criancinhas...
- Deixa disso, Murilo!
Sarah ficou sem graça e deu-lhe um empurrão, enquanto Snape a observava, curioso e pensativo. Entendia um pouco do que o outro falara, claro. Afinal, ele estava ali, não estava?

Mas o pessoal reclamava de Murilo ter parado de cantar, e ele recomeçou, depois de brincar que não adiantava pedir, não ia fazer mais nenhuma declaração de amor para uma certa ingrata... Todos riram, alguns meio constrangidos, pois já estavam imaginando que o casal estaria voltando... e olhavam de soslaio para o tal professor inglês, como a dizer: - Como? E esse cara?

Murilo cantou suas “músicas favoritas” ainda um tempo, músicas que os presentes com menos de trinta anos reclamavam de não conhecer, o que o divertia muito, e respondia dizendo que podiam chamá-lo abertamente de “coroa” que não se importava.
E o casal da mesa do fundo se retirou, Sarah percebeu, acompanhando-os disfarçadamente com um olhar triste. Involuntariamente, suspirou. Berenice a cutucou e disse:
- Deixe de bobagem. Só é assim porque o bobo do Marcelo quis assim. Não sofra por causa disso. Não vale a pena!
Sarah concordou com a irmã, enquanto Snape a observava em silêncio. Ele e Murilo se fitaram, Snape percebeu a genuína preocupação do outro. Ele realmente gostava muito de Sarah e não gostava de vê-la assim. E Snape se viu compreendendo o sentimento do outro, uma espécie de zelo por alguém muito caro, que continuava sendo especial, mesmo sem o vínculo mais profundo.

Então, surpreendeu-se por estar entendendo isso. Nunca se preocupara com ninguém assim. E sempre fora julgado como insensível e frio.
Com certeza, o convívio com aqueles trouxas estava “mexendo” com ele...
Sacudiu a cabeça energicamente, chamando a atenção de Sarah com o gesto, que o fitou, intrigada.
Ele sorriu discretamente, concentrando-se no seu suco, como se fosse a coisa mais importante do mundo.
E a noite continuou alegre e festiva, pontilhada de canções e risos.

Já em casa, Sarah não foi imediatamente pro seu quarto. Deixou-se cair no sofá da sala, enquanto Berenice fazia uma “última ronda” na cozinha. Sua justificativa é que rira, cantara e conversara tanto , que se esquecera de comer e estava morta de fome.
Snape fitou Sarah por um minuto. E percebeu que ela queria ficar sozinha, então, foi fazer companhia a Berenice na cozinha.
Sarah, depois de alguns minutos com o olhar perdido em suas lembranças, com certeza pensando no tempo em que era uma adolescente apaixonada pelo melhor amigo do irmão mais velho, e que ficava horas, sentada no degrau da varanda, olhando pra ele com verdadeira adoração, enquanto ele e a turminha cantavam, ergueu-se dali e, com um suspiro cansado, foi se deitar, sem esperar pela irmã ou pelo hóspede.

Enquanto isso, Snape resolveu dar curso à sua curiosidade, e perguntou:
- Berê... perdoe-me se pareço inconveniente, mas... Por que a presença daquele casal incomodou à sua irmã?
Berenice piscou, fazendo uma pausa na tarefa de preparar um sanduíche para ambos, e depois de alguns minutos, sentou-se, preparando-se para contar:
- Bem... eu era jogadora de basquete do time juvenil da cidade. Foi assim que conheci Marcelo. Parecíamos ter muito em comum, nos divertíamos juntos, e começamos a namorar...
- Você e ele? – Snape espantou-se – Mas pensei que...
- Calma, homem, deixa eu contar! - Berenice riu e continuou – Logo no começo, percebi que Sarah ficava meio... esquisita, quando Marcelo estava perto. Mas nós logo vimos que era melhor terminar, éramos melhores amigos que namorados, nada a ver. E, aos poucos, também percebi que ele olhava “diferente” pra Sarah, mas nenhum dos dois tomava coragem, ele porque achava que ela ainda gostava do Murilo, ela porque achava que eu ia me chatear. Então dei um empurrãozinho...
Snape a fitou ainda mais espantado. Será que todos os trouxas eram assim tão despojados? Ou ele realmente estava convivendo com um tipo muito especial de trouxas? Berenice continuou:
- Eles começaram a namorar, ficaram noivos depois quase dois anos de namoro...Mas, aí, o cara pisou na bola!
- Como assim?
- É que... teve um jogo em outra cidade, do time masculino. Eu e Sarah não fomos nem na torcida. Ela estava super gripada. Depois, fiquei sabendo que ele tinha “ficado” com uma menina, lá... Primeiro, achei que era fofoca, depois, vi os dois juntos, no clube, se beijando. Aí, contei pra Sarah, achei que era muita deslealdade dele.
- Entendo. Eles tinham um compromisso, não?
- Sim, o casamento já estava marcado e tudo! E ele por aí beijando outra? Não podia deixar assim.
- Posso concluir então, que eles desmancharam o noivado?
- Claro, né? Sarah disse que não ia se casar com um cara em quem não confiava mais... Ele esperneou, xingou, chorou... mas ela não voltou atrás. Daí a seis meses, ele casou-se com a Lucinha. E... – Berenice suspirou –Sei que ele se arrependeu da burrada que fez e ainda gosta dela e confesso que até hoje eu pensava que a Sarah ainda gostasse dele... Mas ela reagiu super tranqüila, quando viu os dois. Tudo bem que Murilo dá um apoio incrível... e ainda tinha você lá...
- Mas eu... – Snape atalhou, mas foi interrompido.
- Sarah superou, com certeza. Só fica triste quando os vê, sabe que não estão bem. E que não tem mais volta. Mesmo sem estar apaixonada por ninguém, atualmente. O que é uma pena... Ela precisa fazer outra coisa que não seja trabalho, trabalho, trabalho...
A convicção com que Berenice disse isso o tranqüilizou. De alguma forma, temia que Sarah manifestasse um interesse maior por ele. Nos últimos dias, chegara a pensar nesta possibilidade, ao vê-la tão preocupada, tão atenta e solidária.
Mas Berenice continuou a falar, enquanto terminava o lanche, e ele a acompanhou por cortesia.

Intimamente, sentia que a noite fora rica em informações e conhecimento. Principalmente de si mesmo.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.