Onde está o meu anjo?
Era difícil andar, mesmo que Hermione já estivesse muito melhor do que quando chegara à casa de Rabbit, carregada em seus braços. Havia ainda mais cicatrizes do que ela imaginava que tinha, já que os cortes no campo de batalha haviam sido muitos. Enquanto vestia seus jeans e sua camiseta fina de mangas curtas, que fora lavada e estava dobrada junto a calça, pode tocar seus braços e pernas a fim de localizar as marcas. Os braços eram os maiores retentores, contendo quase três cicatrizes grandes em cada.
Suas pernas eram marcadas por largos hematomas roxos, assim como o rosto e o tronco. Sua cintura estava envolvida com uma larga faixa feita de tecido apertado, que deveria segurar suas costelas no lugar, enquanto estas se recuperavam e colavam-se novamente. Fora mais do que um desafio colocar os tênis, mas Hermione decidiu-se pela maneira mais divertida e que parecia ser a mais sensata. Deitou-se de costas no colchão e erguendo as pernas até que conseguirsse alcançar os pés e atar os cadarços.
Não havia realmente uma mudança brusca na paisagem do País das Maravilhas naqueles três dias. Havia uma mudança, mas esta havia acontecido dentro dela. Estava mais leve, sentindo o peso costumeiro em suas costas se esvair aos poucos, enquanto se certificava de que tudo estava na mais perfeita ordem. Os pássaros cantavam como sempre e lá estava o sol de luz esbranquiçada eternamente alto no céu extremamente azul. Suspirou quando cruzou um emaranhado de folhas conhecido e se viu em uma trilha tortuosa.
- Mas dessa vez, eu sei exatamente onde quero ir – disse a si mesma, sem esperar resposta alguma de sua consciência desconfiada costumeira. Em outras palavras, ela poderia traduzir o sorriso bobo que aparecera em seu rosto e o bater forte de seu coração como alegria. Alegria e alívio. Ela sentiu uma lágrima teimosa cair de seus olhos.
Não que ela estivesse triste ou descontente com a situação. Mas a lágrima desceu de seus olhos justamente servindo como seladora de uma fase. Era uma lágrima de despedida. Era uma lágrima solitária e seladora, mas que abria caminho para lágrimas de saudade e de uma dúvida imensa quanto a uma escolha. Estaria ela certa em cumprir o caminho que escolhera? Seus pés demoravam-se pela trilha, mas ela não tinha pressa. Queria levar cada pedaço alcançável do País das Maravilhas consigo.
A trilha se tornava cada vez mais densa, à medida que ela avançava com pés rápidos. De tempos em tempos, parava para admirar algum animal ou resgatar alguma fruta de uma das árvores que enfeitavam as laterais do caminho. Poderia aparatar e acabar diretamente em seu destino, mas essa parecia uma melhor maneira de se despedir. Caminhar por entre o país que ajudara a salvar parecia ser o tipo perfeito de despedida.
- Você deveria estar descansando – ela ouviu a voz arrastada vir de trás de si. Cerrou os olhos, parando de andar, sentindo que o peito se estufava e que uma bola começava a se formar dentro de sua garganta.
Hermione virou-se para encarar um Rabbit vestido como nunca antes o havia visto. Ele já não usava as roupas brancas, que lhe eram costumeiras, mas vestia-se casualmente com jeans escuros e uma camisa de manga longa azulada agarrada ao corpo. Os cabelos eram os mesmos, presos atrás das orelhas, mas a expressão em seu rosto era tensa. A garota mordeu o lábio, segurando a respiração para que a bola em sua garganta não se transformasse em um rio de lágrimas mal educadas que saíam as pressas por seus olhos.
- Cheshire me disse onde você estava – ele começou, se aproximando. Sua voz tinha o tom habitual, mas havia uma nota que ela não conseguiu identificar. Talvez uma nota de angústia ou de desconfiança. Rabbit não era bobo, ele sabia muito bem o porquê de ela estar onde estava. Ele devia imaginar o que ela iria fazer.
- Cheshire sempre abrindo a boca quando não precisa. – Hermione ralhou, sem ser verdadeira, virando-se e voltando a caminhar, enquanto o rapaz colocava-se ao seu lado na caminhada. Ela tinha certa vantagem, mas com as pernas longas ele a havia alcançado e, agora, inclusive tentava se controlar para não ultrapassá-la ou fazê-la quase correr.
- Eu imaginei que você estaria aqui – Rabbit disse, olhando para o tapete de folhas embaixo dos pés deles. Ele mantinha os olhos baixos e era evidente que não queria olhá-la. Talvez por desagrado ou por querer esconder algo que brilhava em seus olhos.
- Então você também imagina o porquê de eu estar aqui, não imagina? – Hermione tentou começar a conversa. A bola em sua garganta aumentou e ela sentiu a voz falhar, sentiu-a esganiçar.
Rabbit engoliu a saliva demoradamente, ainda controlando seus passos. A curiosidade em saber o que viria quando ele resolvesse falar alguma coisa fazia com que Hermione sentisse piorada a situação da bola na garganta. Agora, ela começara a sentir o estômago se revirar, causando uma desconfortável sensação em seu tórax.
- Você vai embora – ele disse, depois de um minuto. Aquele minuto durara mais do que seu tempo real, parecia ter se prolongado por uma década, o que só aumentava a expectativa da garota. Rabbit encarava seus pés e quando não o fazia olhava ao redor, mas nunca diretamente para a bruxa. – Você ao menos pensou em se despedir.
- Rabbit – ela começou, parando de andar. A frente deles já era possível de se enxergar a árvore que levaria Hermione de volta. Ela não saberia dizer se o aperto ainda mais forte que mexeu com seu estomago era resultado daquela conversa ou se era uma reação à visão da árvore enorme e cheia de ramificações. Era uma visão paradisíaca.
- Eu sei – ele interrompeu, parando de andar pouco a frente dela, deixando que a visão de Hermione se dividisse entre ele e o ângulo que ele formava com a imagem da árvore a distância. Ela não conseguiu não soltar um sorriso ruidoso. – você não queria se despedir por achar que seria mais doloroso e blá blá blá.
Hermione se viu mais uma vez obrigada a esboçar um sorriso. Ela nunca vira Rabbit falar daquela maneira e muito menos um dia imaginou que ele perderia o comportamento formal, o mesmo tipo de comportamento que Draco também tinha. Ele parou de falar e levou as mãos até que elas encostassem-se ao seu quadril.
- O que foi?
- Nada – Hermione respondeu, voltando a sua posição. – Você está certo. Eu não quis me despedir porque sabia que seria muito mais doloroso, tanto para mim quanto para as pessoas que eu iria deixar para trás. – Ela parou, olhando fixamente para o rosto dele, movendo os pés para que eles a fizessem chegar mais perto do rapaz. – Eu sei que seria bem mais doloroso para mim me despedir de você. E para você não seria nada fácil, imagino.
- Não.
- Então, eu quis evitar essa expressão no seu rosto.
- Que expressão? – ele era engraçado, mesmo naquele momento tenso. Seu rosto estava torcido e ele, agora, evitava a todo custo, que ela lhe olhasse diretamente. De repente, havia algo interessante no céu e nos seus sapatos.
- Eu me acostumei com você. – ela declarou, voltando a caminhar, obrigando-o a andar atrás dela. Dessa vez, ele não a alcançou. Permaneceu alguns metros atrás. – Às vezes eu prefiro pensar que, quando eu caí naquele buraco, eu bati a cabeça muito forte e estou desmaiada. Eu prefiro acreditar que esse lugar é o meu ponto de segurança, criado dentro da minha mente e que você é o ser perfeito para mim.
- Mas eu sou real – ele teimou, e Hermione pode ouvir apenas sua voz vindo distante. – Tudo que você viveu aqui é real. Tudo o que nós vivemos aqui foi real.
- Esse lugar pode até ser real. Você é real. O que vivemos aqui é real. Mas para esse lugar, eu não sou real, você entende? – Hermione parou, virando-se de repente. – Eu venho de um lugar completamente diferente. Um lugar que precisa de mim, com pessoas que precisam de mim. Eu não posso, simplesmente, me esconder no meu paraíso particular!
- E você não pode, simplesmente, ir embora! – Rabbit soltou numa voz trêmula que não parecia em nada com a voz que ele tinha. Hermione sabia o que havia acontecido para que sua voz ficasse daquele jeito.
De repente, ela sentiu a bola na sua garganta cessar, desaparecer. Mas ela não se esvaiu em lágrimas e muito menos em raiva, como muitas vezes acontecia. A bola simplesmente sumira quando ela apertou as pálpebras uma contra a outra e pediu, baixinho, que ele não a fizesse chorar dizendo aquelas coisas. Em breve, ele estaria pedindo que ela ficasse e, a isso ela ainda não sabia como responder.
- Rabbit – ponderou ela, sem se virar, ainda mantendo os olhos cerrados.
- Você não pode ir embora, Hermione! – ele insistiu e ela pode sentir mãos lhe tocando os ombros. Rabbit apertava sua pele a dele, roçando os lábios em seu pescoço enquanto falava. – Olhe o que você fez por esse lugar! As pessoas precisam ter no que acreditar e em quem confiar... Eles precisam de você aqui. – Ele parou e pousou os lábios muito delicadamente na pele dela, abraçando com força sua cintura, envolvendo-a por trás de seu corpo. – Eu preciso de você aqui.
- Isso não é justo, Rabbit.
- Você não pode ir embora – ele repetiu, ainda colado a ela. Era como um mantra que repetia mais para convencer a si mesmo do que a bruxa. Hermione já tinha sua decisão tomada. Ele teria que aceitar.
- Você falou do povo... – Hermione começou, afastando dele, relutante. Pôs-se de frente para o rapaz, vendo-se muita próxima da árvore, de repente. - Eu ajudei o seu povo. Vocês já me agradeceram. Agradeceram antes que eu tivesse realmente feito alguma coisa. Eu me senti acolhida, me senti em casa, apesar de estar em um lugar totalmente diferente do meu habitual. – ele sorriu ao ouvir isso. – Mas não posso ignorar o fato de que meu trabalho aqui está terminado e que existem outras pessoas que precisam de mim. Minha família e meus amigos estão correndo perigo na Inglaterra. – ela baixou a cabeça, buscando falar da guerra sem deixar-se cair em uma tristeza maior. – A Rainha de Copas parece apenas uma vilã de literatura perto de Voldemort.
Hermione ergueu os olhos, tencionando encontrar os de Rabbit e fazê-lo entender o que ela sentia e o porquê de precisar voltar para casa, mas os olhos dele estavam baixos e ele remexia os dedos das duas mãos em círculos curtos. Ele não era uma pessoa nervosa, pelo pouco que ela conhecia, e isso tampouco parecia um exercício de alívio.
- Eu, realmente, preciso ajudar os meus, agora.
Hermione tinha no rosto o olhar que guardava para os alunos calouros. Aqueles que estavam assustados com sua nova condição e que precisavam de um consolo, quase de um colo materno. Rabbit não precisava de nada disso, mas ainda assim ela lhe olhava com todo o carinho e empatia que olhava para os calouros de Hogwarts. Sua comparação não era muito justa, mas era o que ela tinha por Rabbit. Agora podia perceber. Tinha um carinho por ele. O mesmo carinho que ela tinha por um amigo muito querido. Alguém que lhe dera uma luz em momentos tristes e que lhe entregava o ombro quando esta precisava. Eu nunca deveria ter confundido as coisas, xingou a si mesma.
- Eu entendo – demorou para que ele falasse, mas quando falou sua voz não parecia mais sua voz. Também não era a voz trêmula que ele assumira quando se esganiçou. A voz era calma e ele ainda mantinha os dedos se remexendo.
- Entende? - Ela se espantou. Fora fácil assim?
- Eu tenho que entender, porque eu sei que você não vai mudar de ideia. – ele ergueu os olhos e eles estavam mudados. Ainda tinham o mesmo formato, eram visivelmente os olhos de Rabbit, mas a cor não era a mesma. Ao invés de ostentarem o habitual cinza, suas íris tomaram tons de vermelho, enquanto seu nariz se achatava e seu rosto assumia ares animalescos. Ainda eram traços delicados, mas pareciam cada vez menos com traços humanos. – Sério, eu não pretendo prender você aqui e forçar você a ficar comigo. Não é assim que vai ser e eu quero que você fique feliz entre os seus.
- Rabbit? – Hermione preocupou-se, afastando-se da figura que mudava.
- Está tudo bem. – ele certificou, distraído. Depois de um segundo, tendo os olhos dela ainda sobre si com extrema curiosidade e uma nota singela de temor, ele afastou-se um pouco, reforçando sua resposta. – Está tudo bem mesmo, isso é só um efeito colateral do meu posto de trabalho. – Ele cerrou os olhos, mexendo as mãos mais depressa. Alguma coisa começou a soar dentro do buraco escuro da árvore. - Eu preciso abrir os portais para você, afinal apenas os Cuniculus podem fazer isso. Você não iria a lugar nenhum sem a minha ajuda. Essa é uma das causas de ser inútil a sua tentativa de ir embora sem se despedir.
- Você está bem? – ela perguntou novamente e dessa vez, ele entendeu que a pergunta dela não abrangia um campo físico. Ela estava lhe perguntando como ele se sentia. E como responder, senão sendo sincero?
- Não. Na verdade eu não estou bem, você sabe disso. – ele admitiu, abrindo os olhos e parando o movimento das mãos. A transformação em seu rosto foi estagnada e agora, aos poucos, começava a se desmanchar. – Mas você também sabe que eu vou ficar bem. Um dia. – Rabbit estendeu a mão para tocar seu queixo. – Hermione, eu quero que você seja feliz. – Ele sorriu, deixando o rosto na altura do dela. – Então, deixe de ser cabeça dura e deixe que seu Draco seja mais como eu.
- Como assim? – ela perguntou, com a voz esganiçada, levando a mão ao queixo instintivamente. Rabbit aproximou-se mais dela, fazendo com que Hermione desse mais passos para trás. – Aquele Draco não é meu e eu, realmente...
- Hermione – Rabbit ergueu o dedo, prendendo os lábios dela severamente. – Deixe de ser boba e tentar enganar a todos e a si mesma. Você gosta desse rapaz e apenas vivemos o que vivemos porque eu sou parecido com ele. – ele a abraçou, afundando o rosto com aparência peluda no ombro dela. – Você precisa enxergar o que há de melhor nesse seu Draco.
Dessa vez, ela não contestou. Sabia que Rabbit não estava errado em afirmar aquilo. Ela não tinha como mentir e dizer que não gostava de Draco, porque ela sabia que até seu último fio de cabelo sentia-se tremer quando o sonserino lhe tocava. Ela sabia que tinha de voltar, não apenas por seus amigos e família, mas porque as pessoas precisavam dela. Draco precisava dela e ela precisava de Draco. Era inútil discutir.
- Está com a sua varinha?
- Estou – ela confirmou, tocando de leve o bolso dos jeans.
- Você sabe que sempre será benvinda, não sabe? - ele perguntou, afofando o cabelo dela, enquanto a afastava. Hermione sacudiu a cabeça concordando. Não foi novidade para ele que o rosto da garota estivesse molhado e que os ombros de sua camiseta tivessem absorvido a umidade.
- Você pode visitar Hogwarts quando quiser também. – Hermione acrescentou, passando de leve as mãos nas manchas molhadas da camiseta de Rabbit, como que para limpá-las. Seus dedos correram para secar suas bochechas depois disso. Rabbit sorriu, realmente parecendo contente com o convite.
- Agora vá de uma vez, ou então os portais fecharão e você ficará para sempre no país das Maravilhas! – ele deu uma gargalhada macabra, visivelmente brincando.
- Os portais se fecham quando seu rosto voltar ao normal?
- Exato!
Hermione guardou aquela visão animalesca do rosto de seu mais fiel companheiro no País das Maravilhas, tencionando lembrar-se dele sempre daquela maneira. Rabbit era um bom rapaz e esforçado demais para ter sua imagem sempre associada a Draco, de certa forma. Ela lhe sorriu, afastando-se mais do corpo dele, pensando em como entraria naquele buraco. Ainda estava de costas quando decidiu como faria. Saltaria.
Em um segundo, Rabbit estava sorrindo para ela, em retribuição. Num segundo momento, ele tinha as mãos na base dos ombros de Hermione e usara de uma força mínima para empurrá-la para longe. Aquilo soaria como uma ofensa ou, no mínimo, como uma agressão se não fosse uma tentativa brusca de enviá-la para seu mundo.
Em menos de um segundo, a bruxa havia caído dentro do buraco escuro. Lembrando-se de como havia caído dentro do mesmo buraco, do mesmo jeito, em seus primeiros momentos ali, ela esperou alcançar o chão e talvez quebrar mais alguma costela, mas o chão não chegou. Hermione cerrou os olhos e deixou que as mãos envolvessem a cintura, protegendo seu tórax, porque ela sabia que bateria em alguma coisa quando seus pés tocassem o solo do túnel no Salgueiro Lutador.
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