Estranha
O interior da barraca da Rainha Branca parecia exatamente com uma barraca tão comum como, provavelmente eram as barracas do restante dos refugiados, mesmo que a dela tivesse o privilégio de ser erguida em estacas de metal. Ela tinha um andar muito leve, tocava o chão quase sem fazer barulho, assustando Hermione quando esta não estava preparada para vê-la sentar sobre as pernas em um colchonete embolotado. Era estranho para ela entender que poderia confiar em uma figura que exibia os traços tão delicados e fortes ao mesmo tempo, que pertenciam ao rosto de Lilá.
Os olhos da Rainha eram mais claros, de um azul leitoso e o modo como ela se mexia quase faziam a bruxa esquecer de que aquela em sua frente parecia exatamente como a namorada de seu amigo. A Rainha curvou-se, buscando alguma coisa atrás de si. Depois de segundos naquela curvatura que parecia dolorosa, ela puxou um cobertor para Hermione. Não era uma coberta para ela se cobrir e dormir, mas sim algo para que pudesse sentar-se sobre.
- Todos já se recolheram. – A voz de Rabbit invadiu a barraca, enquanto ele hesitava em entrar. A Rainha fez um gesto encorajador, segurando em uma das mãos dele e o puxando para dentro. Ela não parecia muito a vontade com o tratamento extremamente cordial.
- E os guardas? – Ela perguntou, largando a mão dele e a levando diretamente ao queixo. Ela segurou o queixo redondo encarando o chão.
- Todos em seus postos. – Rabbit anunciou, abaixando-se nas pernas até que suas nádegas tocassem o chão. Ele sentou-se ao lado de Hermione, esperando ansioso que a Rainha soltasse alguma coisa e saísse daquele coma momentâneo em que estava, ainda olhando para o chão, ou que pelo menos indicasse que ele poderia começar a falar. - Majestade? – Ele perguntou, apertando as sobrancelhas.
- Ora Rabbit, nos conhecemos há séculos, me chame pelo meu nome! – Ela ralhou, visivelmente irritada com a cordialidade que ele assumia. Porém, seu rosto não se desfez da expressão que tomara anteriormente. Seus olhos leitosos pareciam fora de foco. – Cheshire não está no acampamento, está?
- Possivelmente não. – Rabbit comentou, apertando ainda mais as sobrancelhas ao encarar os olhos fora de foco da Rainha. – Selene? – Era um belo nome que combinava com sua dona. Ou pelo menos era o que Hermione achava, já que se lembrava de já ter escutado que Selene era a deusa grega da lua, em algum lugar.
- Cheshire não está aqui e eu não consigo senti-la em lugar algum! – A Rainha tremeu, mas não de frio e muito menos tendo consciência de que tremia. Seus olhos viraram, sendo possível agora apenas ver um globo branco onde deveria estar o azul leitoso. Rabbit ergueu-se, sacudindo-a pelos ombros.
- Como eu imaginei. – Ele sussurrou para si mesmo, ainda sacudindo a garota. A respiração dela era abafada e muito rápida. Aos poucos voltou ao normal, apenas tentando revidar, sem chance, os sacolejos que recebera. Ela apertou os olhos, empurrando Rabbit para longe de si.
- O que há de errado com você? – Ela exclamou, aninhando-se contra a parede de tecido na barraca. – Me sacudir desse jeito não é um tratamento decente.
- Se você fosse mais cuidadosa e se lembrasse de nunca ficar nervosa durante uma localização, eu não teria de acordar você!
Os olhos da Rainha encararam o chão novamente, mas dessa vez ela os manteve em foco, remexendo os dedos no colo. Seus cabelos presos em um rabo de cavalo, caiam graciosos por seu ombro, indo de encontro aos lábios entreabertos. Ela, visivelmente, sentia vergonha. Não só era possível notar por suas bochechas rosadas, mas pela expressão que ela tinha no rosto quando o ergueu, tirando os cabelos dos lábios bem desenhados.
- Eu fiz de novo?
- Fez. – Rabbit afirmou, mantendo-se sério e em momento algum, demonstrando compaixão ou empatia pela criatura épica que estava em sua frente. Hermione sentiu pena, mas permaneceu como mera espectadora do espetáculo. Ainda estava pensando no que ele quisera dizer com “localização”. Ela avançou a mão em direção a Rainha enquanto segurava involuntariamente no braço de Rabbit.
- Você está bem? – Hermione perguntou, encostando de leve na mão da Rainha que repousava, ainda agitada, por sobre seus joelhos. Esta levantou a cabeça, exibindo um sorriso confortador.
- Me desculpe. – Soltou, respirando mais fundo e deixando as costas eretas. – Eu ainda não consigo controlar muito bem esse poder. E pensar em Cheshire sozinha por essa floresta me deixa mais preocupada do que eu ficaria se fosse qualquer outro refugiado. – Ela suspirou. – Minha irmã.
- Sua irmã? – Hermione não conseguiu não rir. Ela sabia que quebraria totalmente o momento emocionado e preocupado de uma irmã e rainha, mas não conseguiu não gargalhar ao imaginar aquele parentesco em seu mundo, onde estava acostumada a ver Lilá lançar olhares mal encarados para a excêntrica Luna. – Desculpe.
O olhar que Rabbit lhe lançava era tão duro quanto o aperto que ele dava em seu braço, que ainda o segurava. Foi inevitável e o que ela encarava como pior seria tentar explicar o porquê de achar graça em um fato ridiculamente isolado. Como poderia explicar o porquê de ter rido do parentesco sem ter de explicar tudo que acontecia em seu mundo? Não havia jeito de fazer um resumo.
- É que... – Ela começou, virando-se para Rabbit, implorando ajuda pelo olhar.
- Ela veio do mundo humano, Selene. – Ele a interrompeu, ignorando o suspiro de alívio que ela dava ao perceber que não precisaria contar a história toda. – E, por mais estranho que pareça, aqui no País das Maravilhas, algumas pessoas tem exatamente a mesma aparência que alguns dos conhecidos de Hermione no mundo humano. – Hermione mordeu o lábio. Nem ela mesma poderia ter explicado melhor. – Tanto eu, quanto Cheshire e Valete temos rostos conhecidos por ela.
- Inclusive Valete? – A Rainha perguntou curiosa, parecendo ter se esquecido do acesso de risadas da bruxa. Rabbit confirmou e ela recomeçou a contorcer os dedos no colo. Sua garganta estava inflando. Ela queria falar alguma coisa. – E eu?
- Você é exatamente igual à namorada de um dos meus melhores amigos: Lilá. – A bruxa declarou, pronta para despejar seus motivos. – E Cheshire é exatamente igual à uma amiga minha: Luna. Eu apenas achei graça porque seria estranho imaginar que Lilá e Luna fossem irmãs, porque as duas não se dão muito bem, porém aqui eu poderia ver, pelo menos no campo visual, como seria esse parentesco.
- Você não fica assustada?
- Com o que? – Havia tantas coisas ali que deixavam Hermione assustada, que a Rainha Branca teria de ser muito mais específica. Ela poderia muito bem estar falando de qualquer uma das impressões estranhas dentro do enorme leque de opções que a bruxa tinha disponível.
- Nossos rostos.
- Assusta. – Ela refletiu. – Mas acho que esta mais uma daquelas coisas da vida com as quais a gente pode se acostumar. Bom, eu caí aqui e Rabbit não quer me mandar embora – Ela o encarou com o canto do olho, vendo-o abrir um sorriso tímido. -, então eu tenho que me acostumar a ver as pessoas que eu conheço com personalidades e posições totalmente distintas das que elas tem no meu mundo. Acho que essa é a parte que assusta mais: pensar que as faces conhecidas serão como elas são em Hogwarts.
- Oh, quase me esqueci de que você veio mesmo do mundo humano! – A Rainha Branca se maravilhou, deixando transparecer uma curiosidade extrema. – Como veio parar aqui, a propósito?
Hermione endireitou-se por sobre as pernas, levando-as para frente e encostando-se de leve no braço de Rabbit, que lhe dava uma certa estrutura. Será uma longa noite, ela previu, preparando-se para começar a falar e tentar não se atrapalhar com as palavras rápidas que sairiam de sua boca nervosa. Era uma boa oportunidade de entender como ela poderia ajudar ali.
- Bom – Ela começou, encarando a parede atrás da Rainha. -, eu estava lendo embaixo de uma árvore em Hogwarts, quando meu gato perseguiu alguma coisa branca que corria para um buraco perto de uma árvore. Eu os segui e acabei escorregando para dentro do tal buraco. – Ela gesticulou bastante, nervosa, revendo todos os fatos dentro de sua cabeça. – Não era uma coisa que eu esperava que me trouxesse para outro mundo, afinal de contas eu já entrara naquele túnel, porém – Ela ergueu as sobrancelhas, como quando exibia descrença em sua expressão. -, acabei conhecendo um mundo que eu achava apenas existir na literatura.
Rabbit sacudiu a cabeça concordando.
- Maldito Carroll. – Ele sussurrou, agarrado ao braço da bruxa sem se preocupar em se mexer. Era visível a irritação que corria por suas veias quando era pronunciado o nome ou a fama de Lewis Carroll.
- Você não deve pensar assim para sempre, Rabbit, afinal Carroll já foi eliminado. – Ela tremeu, cerrando os olhos. – Ele meteu-se com quem não devia se meter... Por isso sempre peço que você tome muito cuidado.
- Eu tento.
Rabbit começou, contando para a Rainha o que havia acontecido mais cedo com Valete, naquela cena confusa que Hermione presenciara. A Rainha soltava grunhidos indecifráveis de tempos em tempos quando a narrativa se tornava aventurosa demais, distorcendo levemente os detalhes. Era evidente que eles se gostavam, mesmo que fosse algo fraternal. O que era melhor encarado pela bruxa.
Ciúmes? Ela ralhou a si mesma, cerrando os olhos e balançando de leve a cabeça para afastar aquele pensamento. Não havia motivos para ela se sentir como se sentia. Ele não era Draco. E mesmo que fosse, ralhou novamente encarando a Rainha, esperando que os dois terminassem a conversa e decidissem designar um lugar onde ela pudesse descansar. Segundo seu relógio, já passava da meia noite no mundo humano.
- Eu imagino que Hermione possa nos ajudar. – Rabbit declarou, baixando o tom de voz e aproximando o rosto da face arredondada da rainha. – Ela é um rosto desconhecido que caiu por engano de um empregado no País das Maravilhas... Um prato cheio para o nosso plano.
- E quanto ao empregado que a deixou chegar aqui? – A Rainha foi irônica, preocupando-se de verdade.
- Eu tenho privilégios... – Ele gabou-se, parecendo mais Draco do que nunca. – Eu sou o último Cuniculus, sem filhos, e enquanto nossa majestade fanfarrona pensa se me elimina ou não, Hermione executa nosso plano.
Os olhos dele brilhavam de excitação e seu braço apertava o de Hermione. Rabbit realmente exalava a esperança e boa vontade por todos os seus poros. A bruxa ainda não sabia o que deveria ser feito, mas tinha medo de tomar qualquer decisão que pudesse ser menor do que as expectativas do Cuniculus. Afinal, o que eles queriam que ela fizesse teria de ser dito logo, antes que seu coração parasse de tanta curiosidade.
- Eu estou aqui, sabem... – Ela suspirou.
- Você pode ser nossa carta branca, forasteira humana. – Rabbit brincou, apertando o braço dela, enquanto massageava lentamente seu ego. O que era melhor do que uma bela massagem no ego de alguém desfalecido nesse quesito? Hermione sorriu, convencida. – Queremos que você roube a coroa da Rainha de Copas.
As palavras dele foram muito rápidas, tão rápidas que foi quase impossível para Hermione entender o que quisera dizer. Quase. O plano era simples. Simples e suicida. A Rainha Branca assentia com a cabeça, sorrindo encorajadoramente. A bruxa expirou pesadamente, abrindo um sorriso confuso enquanto arqueava as sobrancelhas, descrente.
- Roubar a coroa de uma rainha? – Ela repetiu, sem acreditar. – Vocês querem que um humano faça isso para que nenhum habitante daqui perca a cabeça? – Ela foi irônica. – Porque isso é loucura, fiquem sabendo!
- Não queremos que um humano faça isso! – A Rainha defendeu-se. – Queremos um rosto desconhecido e, além disso – Ela apontou para o bolso traseiro dos jeans de Hermione de onde era possível enxergar a ponta da varinha. -, você tem um plus!
- Isso foi planejado?
Hermione desacreditou, suspirando muito alto e com um barulho pesado que a deixou com medo de si mesma. A raiva e a desconfiança subiam por seu pescoço, deixando seu rosto colorido de um vermelho arroxeado que era quase um sintoma de asfixia. Seus olhos estavam apertados.
- Não! – Rabbit bradou, expressando a inocência visível pelos olhos arregalados e cinzentos. Para além dos olhos dele, ela podia enxergar a mágoa da Rainha. – Você foi um presente que algum dos deuses nos mandou, Hermione!
- Parece muito promissor, não?
- Você é uma cética! – Ele ralhou, sem realmente ralhar com ela.
- Eu apenas quero as verdadeiras explicações!
- A verdadeira explicação é que você é como água depois de uma temporada no deserto. – Rabbit soltou com a voz num tom grave, muito sério. – Você pode nos ajudar a voltar a sermos o que éramos antes de Carroll e do reinado ridículo e forçado da Rainha de Copas. Você consegue entender o que é a esperança pela libertação de um povo das mãos de uma sádica?
Na verdade ela entendia. O mundo bruxo não passava por um momento diferente daquele. Com Voldemort cada vez mais reunindo aliados, os rebeldes tinham de se reunir e lutar pelo que acreditavam ser o certo. Se ela fosse pensar profundamente naquilo, veria que a situação do País das Maravilhas não era diferente daquela que ela mesma estava vivendo em Hogwarts. A diferença gritante é que ela era a protagonista daquela rebelião e não Harry.
- Eu consigo. – Ela disse, arrependendo-se por dentro do que havia feito.
- Então sabe que não queremos arriscar sua vida? – Disse a Rainha.
Hermione suspirou e contou a eles o momento pelo qual seu mundo estava passando. Em algum lugar obscuro de sua mente, algo lhe dizia que ficasse no País das Maravilhas e fugisse daquela guerra sangrenta. Sempre quisera que aquilo passasse e que ela pudesse ser uma adolescente normal novamente e agora ela tinha essa oportunidade, mesmo que seu senso grifinório a mandasse contra.
- Você está acostumada com batalhas, então? – Rabbit quis saber, curioso e alarmado ao mesmo tempo, transparecendo uma sede por informações da guerra bruxa.
- Isso não quer dizer que estou acostumada a batalhar.
- Mas já faz de você um tipo de especialista. – Ele constatou sem nem ao menos esperar que ela confirmasse alguma coisa ou que se explicasse quanto às aventuras enlouquecidas que tinha enfrentado ao lado de Harry e Rony. Ela não pretendia contar a eles que havia enfrentado dementadores, solucionado um enigma que parecia indecifrável e enfrentado Comensais da Morte adultos. O último caso há apenas um ano.
- Eu vou ajudar, mas eu não quero camisetas com meu rosto.
- Pretendíamos fazer bandeiras. – Rabbit brincou, levantando-se do chão e apontando para fora da barraca. A Rainha Branca acenou com a cabeça, indicando que estava na hora de eles saírem de seu local de descanso.
- Cuide dela, Rabbit. – A Rainha disse em um tom que não parecia mais o tom usual e amigável que ela usava, mas sim um tom de ordem. E era isso que ela estava fazendo, dando uma ordem.
- Com a minha vida. – Ele foi muito cordial, o que assustou a bruxa. Uma movimentação no exterior da barraca agitou a Rainha e ela sabia o que viria. – Cheshire. – Rabbit anunciou, saindo pela porta da barraca e puxando Hermione pelo braço, enquanto a garota aluada entrava correndo, sem calçados e usando o vestido listrado.
- Boa noite, Hermione. – A Rainha desejou, voltando-se para a irmã, que sentava ao seu lado. Rabbit fechou a entrada da barraca, fazendo um sinal para que um dos guardas viesse guardar o alojamento.
Rabbit começou a andar pelo que parecia o centro do acampamento, onde havia uma grande fogueira apagada, de onde saia agora uma fumaça que não parecia fumaça, devido a seu cheiro adocicado, parecido com incensos. Ele rumava para o que parecia a ponta do acampamento, mas não falava nada, apenas puxava a bruxa pelo braço.
- Aonde vamos? – Ela perguntou, tentando se livrar do aperto dele.
- Para minha casa.
- Achei que eu ia ficar por aqui. – Ela apontou para as barracas, espremendo-se no casaco pesado. Não era medo e nem falta de confiança nele, mas era inevitável não tremer quando se imaginava sozinha com ele em qualquer lugar afastado.
- A Rainha Branca mandou que eu cuidasse de você. – Ele começou, apontando para fora do acampamento, por entre algumas árvores. – Eu não posso cuidar de você estando longe, posso?
- Achei que você morasse no acampamento.
- Eu sou um Cuniculus. – Ele apontou para si, rindo.
- Você mora numa toca? – Hermione segurou-se para não gargalhar desagradavelmente como antes, mas como dessa vez foi Rabbit quem puxou a gargalhada, ela não se arrependeu de rir com vontade.
- Eu não moro em uma toca. – Ele corrigiu, depois do acesso de risadas, apontando para a base de uma árvore maior do que a que Hermione havia saído. – Eu moro em uma casa subterrânea com quarto, sala, cozinha e banheiro. Como qualquer outra. – Ele sorriu, parando de andar. – Tirando o fato de ela estar embaixo da terra.
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