Hermione Subterrânea



A lenha, feita de troncos grossos, queimava com estalos na lareira enorme do salão comunal da Grifinória. O salão estava barulhento, apinhado de alunos que corriam de um lado para o outro, carregando seus malões ou então explodindo em conversas animadas ao redor das mesinhas espalhadas pelo cômodo avermelhado e quente. Os sofás macios, feitos de tecido nobre não estavam ocupados, apesar de tudo. Havia apenas uma garota sentada em um deles. Por sobre seu colo, repousava um livro recém aberto e a cabeça de um gato laranja entediado.


Hermione Granger ergueu os olhos para o fogo, afastando os pensamentos das intrigantes histórias de Sherlock Holmes, um de seus preferidos. Sua mente trabalhava muito rápido, apesar de aparentar ser um ser humano muito calmo sentado junto ao fogo, esperando pelas férias de inverno. Ela quase podia amaldiçoar a si mesma por passar as férias de inverno em Hogwarts, quando nem um dos seus amigos ou conhecidos passaria.


A família de Rony seguia para a Romênia com Harry e Lilá Brown a tiracolo. Fora difícil convencer a Sra. Weasley de que não havia mal em deixar que Lilá e Gina dormissem no mesmo corredor em que Rony e Harry dormiriam, mas ao final as duas já haviam arrumado seus malões e passavam quase cada segundo do dia em cochichos e planejando programas de casais pelos corredores de Hogwarts.


Hermione afastou os olhos do fogo, detendo-se em quatro figuras que entravam animadas pelo buraco do retrato da Mulher Gorda. Tanto Harry e Gina, quanto Lilá e Rony, tinham as bochechas e narizes vermelhos e sorrisos estampados no rosto. Era quase nojento tentar imaginar o que eles andaram aprontando pelos corredores. Era ainda mais nojento imaginar que eles pudessem ter aprontando alguma coisa pelos corredores, enquanto estavam um perto do outro.


A bruxa balançou a cabeça, livrando a mente dos pensamentos repugnantes. Já não bastasse o que passara na noite anterior, ainda se pegava imaginando coisas. Noite anterior, ela repetiu dentro de si, mordendo o lábio inferior, quase ao mesmo tempo em que balançava a cabeça novamente. Ela não queria ter que lembrar o que fizera e muito menos ser lembrada por ninguém... Talvez tivesse sido por isso que ela resolveu permanecer no salão comunal até que o trem de Hogsmeade saísse da estação.


Sua cabeça pendeu para o lado, enquanto o semblante assumia uma expressão de tristeza que ela nunca imaginou que possuiria um dia. O mundo realmente estava sendo muito injusto com ela. Aquele era o último dia de aulas antes das férias de inverno e ela estava sozinha sentada em frente ao fogo, carregando um livro recém ganho pelo natal. Hermione sempre fora boa com livros, como eles sempre foram bons com ela, mas nem a leitura interessantíssima de enigmas que ela gostava tanto, prendia sua atenção.


Onde estavam seus amigos? Essa não era uma pergunta que denotava uma recente solidão, mas ela se perguntava exatamente onde estavam seus amigos de verdade. Ela podia contar nos dedos de uma só mão, às vezes em que Gina viera lhe falar de algo que não fosse relacionado com Harry, ou que Rony e Harry viessem lhe falar sobre algo indiferente à Hogwarts. Sim, ela era uma estudante aplicada e uma boa ouvinte, mas lamentava-se principalmente por não receber nenhuma interrogação quanto ao seu estado emocional ou geral por parte dos amigos.


- Hermione? – chamou a voz de Parvati Patil, acordando a bruxa de seus devaneios tristonhos. Ela não tinha a intenção de chorar, mas as lágrimas, estagnadas em seus olhos castanhos, faziam com que eles brilhassem. Parvati não notou as lágrimas, ou fora gentil demais para comentar qualquer coisa.


- Ah, olá, Parvati – ela cumprimentou, passando as mãos nas bochechas irritadiças muito delicadamente. Não percebera que Parvati já havia se instalado no sofá há algum tempo, aninhando-se ao seu lado, mas ainda mantendo certa distância. Não havia intimidade suficiente entre elas que permitisse qualquer aproximação como aquela.


- Você viu a Lilá? – Parvati perguntou, quase constrangida. Hermione esboçou um sorrisinho com os lábios fechados. Sabia exatamente o que a colega de turma sentia. Lilá sempre fora a melhor amiga de Parvati e, em certos modos, sua única amiga, já que sua irmã pertencia a uma casa e a uma rotina totalmente diferentes das suas.


- Com Rony – começou, apontando o dedo para o andar de cima. - e com Gina e Harry – ela torceu as feições enquanto a outra apertava as sobrancelhas, numa expressão que podia exalar confusão. – Não vai encontrá-la tão cedo.


- Posso dizer que já me acostumei – Parvati riu, sem realmente querer rir.


Hermione esboçou outro sorriso, assim como o de Parvati, sem vontade alguma. Ela tentou voltar à atenção ao livro, mas não conseguia sair das primeiras páginas do primeiro conto daquela coleção enorme. Bichento remexeu-se em seu colo, sendo obrigado a erguer as costas, espreguiçando-se, quando a dona ergueu-se de repente do sofá, esticando os dedos. Parvati acompanhava os movimentos dela com os olhos.


- Vou sair um pouco – Hermione disse, resgatando o cachecol de lã grossa que estava caído ao lado do sofá e buscando atrás de si o casaco muito grosso que lhe caía até os joelhos. Parvati a olhou surpresa.


- Está incrivelmente frio lá fora.


- Eu sei – Hermione disse em voz baixa, enrolando o cachecol no pescoço, dando duas voltas. Seu rosto quase ficara totalmente escondido, graças à franja recém cortada e ao cachecol que lhe cobria a boca.


Ela caminhou em direção à saída da sala, com o livro de Conan Doyle debaixo do braço, seguida de perto por um bichento que reclamava miando alto. Hermione não saberia responder se estava apenas sendo ranzinza, ou se ela sempre odiara a neve. Os flocos brancos caíam pesados por sobre os bancos e por sobre a grama do pátio da escola, deixando tudo molhado e escorregadio. As coisas pareciam implorar pela primavera. Até mesmo a Floresta Negra parecia mais sensível e simpática, agora que estava tomada pela neve.


Ela andava devagar, ainda sendo seguida de perto por Bichento, quando decidiu atender aos caprichos do gato. Ele estava com frio, mas ela ainda não entendera o porquê de ele não ter rumado até sua cama no dormitório. Ela desenrolou o cachecol do pescoço, abaixando-se perto do animal sentado, largando o livro no chão de pedra. Bichento ainda estava um tanto tonto, então não fora difícil enrolá-lo no cachecol e aninhá-lo no colo.


- Oi – Ela ouviu a voz arrastada atrás de si. Cerrou os olhos automaticamente, apertando-os, como se o aperto fizesse a voz ir embora, junto com o trem de Hogsmeade, que estava partindo exatamente naquele momento.


Hermione não se levantou do chão, ainda tendo Bichento aninhado em seu colo, ronronando muito alto. Também não respondeu ao cumprimento, porque sabia exatamente quem a cumprimentara e o porquê de ser cumprimentada. Abriu os olhos, pegando o livro do chão de mau jeito, sem nem olhar para trás. Draco não deteve os passos pesados, mesmo depois de ser ignorado.


- Você não vai parar?! – perguntou ele, acenando desconcertado com as mãos. O castelo estava vazio, ainda mais naquele corredor, que era um dos últimos antes do pátio extremamente gelado. A voz dele ainda ecoava pelo lugar deserto, quando ela resolveu parar e responder, ainda sem olhar para trás.


- O que foi?! – ela bradou, fazendo sua voz reverberar pelas paredes de pedras. Realmente sentia vontade de pular no pescoço dele e quem sabe, ver aquela pele pálida demais se avermelhar aos poucos, enquanto era enforcado.


- Eu – começou, enlaçando os dedos das mãos uns nos outros, por cima da luva grossa de couro. Assim como ela, ele também estava carregado com casacos, mas em contrapartida, não tinha os coloridos do cachecol, das blusas de linha e das luvas para iluminá-lo. Malfoy usava roupas de um preto fosco, que pareciam sempre novas, por mais antigas que fossem, contrastando com a pele e os cabelos muito claros.


- Hoje não, Malfoy – Hermione finalmente virou-se, deixando a voz atingir um tom que quase emanava súplica. Via-se que ela estava cansada. Talvez cansada daquela escola, cansada dos colegas, dos amigos, mas era visível que ela estava principalmente cansada de Draco.


- Mas, Hermione, eu queria pedir desculpas! – teimou ele, andando dois passos em frente, para que conseguisse se aproximar dela, mas a garota afastou-se, como quem conseguia prever os passos dele.


- Pedir desculpas para que?


- Para que eu possa não ver mais essa expressão magoada no seu rosto.


- Isso vai ser muito difícil!


- Não se você aceitar minhas desculpas! – ele brincou, abrindo um sorriso.


- Não seria tão fácil porque a culpa não é só sua.


- Não? – Ele apertou as sobrancelhas.


- Não – Ela esclareceu, deixando mais em dúvida ainda. Aquela dúvida estampada no rosto dele era quase um presente, porque além de conseguir fazer com que ele pensasse nela, ainda conseguia vislumbrar a expressão de confusão de que gostava tanto.


- Pensei que isso fosse algum resultado de – ele hesitou.


- Mais um motivo para eu continuar meu caminho, ignorando sua presença aqui. – ela urrou, brava, virando-se de costas. Não era apenas a confusão dele que a deixava irritada. Era especialmente o fato de ele ser tão desligado a ponto de não perceber que aquela mágoa já vinha em seu rosto há muito. – A propósito, você não deveria estar em um trem tomando a direção da sua casa, agora?


- Eu não vou para casa, eu fui deixando em Hogwarts. – ele disse, recomeçando a andar quando viu que Hermione já havia se afastado bastante. Bichento balançava feliz no colo dela. – Só para você saber.


- Oh, tristeza! – Ela ironizou.


- Porque você não para, para que possamos conversar?


- Porque você não merece que eu pare.


- Mas ontem você parou – ele soltou, estancando os passos, assim que percebeu o que aquela frase fizera. Hermione obviamente parou, derrubando, sem intenção, o livro e Bichento, que reclamava. – E anteontem, no dia anterior e no mês passado...


- Chega! – ela gritou, virando-se e andando decidida até ele. Seu rosto estava vermelho e o ar saía quente demais do nariz. Deixou suas coisas jogadas no chão de pedra, apenas cuidado para não tropeçar nelas enquanto apontava o dedo na direção de Malfoy e apertava os olhos.


- Você parece um gato – ele brincou, gargalhando.


- Não tem graça, Malfoy! – bradou ela. – Você é um garoto idiota, mimado e estúpido! – ela bateu com o dedo no peito inflado dele – Você não vê o que essa sua dupla personalidade está fazendo comigo? Você não pode ser uma pessoa quando “paramos para conversar” – ela fez o sinal de aspas no ar - e outra quando me humilha na frente dos seus amigos! Se você acha que minha mágoa tem algo a ver com você, então saiba que fico principalmente magoada quando você insiste em fingir não gostar de mim!


O rosto de Draco assumiu um ar de pura tristeza e se tingiu com um rubor de vergonha. Sim, parte daquela culpa era dele, mas ela fora avisada desde muito cedo que aquela relação daria errado. Não fora exatamente avisada por alguém, mas avisada pelos acontecimentos. Devia ter imaginado que um garoto frio e arrogante, ainda mais pertencendo à Sonserina não daria um bom namorado, ou seja lá o que eles ainda haviam pretendido ser um dia.


- É melhor que você fique sem palavras - ela voltou ao lugar onde estava, preocupando-se em recolher o livro e segurar um Bichento ainda reclamão em seu colo. – de verdade. – Completou, sem ver se ele ainda permanecia parado no corredor.


Isso ardia dentro dela, mas o que mais poderia fazer, além de cortar aquela relação antes que ficasse mais do que magoada ou que fizesse uma loucura. Afinal, a natureza de Draco era aquela, ele não poderia simplesmente mudar de uma hora para outra, mesmo que ela esperasse aquela mudança há, pelo menos, dois meses. Dois meses, surpreendeu-se.


Dois meses em que fingiam se odiar. Dois meses em que fingiam não se encontrarem sempre que possível pelos corredores ou se aventurarem numa sala precisa apenas imaginada por eles. Enfim, dois meses em que ela esperava que o arrogante Malfoy resolvesse assumir que gostava da sangue-ruim Granger. Agora que ela pensava sobre isso, via que era algo praticamente impossível.


- Ele não vai mudar – ela disse para Bichento, como que encontrando nele uma companhia e um ouvinte para seus lamentos. Estava, ainda, agradecida pelo gato não conseguir falar a língua dela.


Hermione buscou um lugar no pátio que não estivesse completamente coberto pela neve. Foi bem sucedida, porém o único que encontrou precisava de um feitiço de secagem ou, no mínimo, um que a preservasse da poça de água que se formava. Ficava embaixo de uma marquise e sua vista era encantadoramente perigosa: O Salgueiro Lutador descansava com os galhos totalmente cobertos pela neve espessa.


A bruxa não hesitou em murmurar um feitiço impermeabilizante e sentar-se, recostada no muro de pedra da escola. Puxou bichento para o colo, aninhando-o nas pontas de seu cachecol e abriu o livro de folhas recicladas nas páginas onde havia parado. O conto dançava em sua frente, sem que ela conseguisse prestar atenção nas palavras. Pudera, com Malfoy pairando em seus pensamentos era quase impossível pensar em qualquer outra coisa.

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Comentários (2)

  • Kathleen Ferreira

    Eu amo o Draco! Você escreve muito bem e a riqueza de detalhes permite que eu possa imaginar todas as cenas...mal posso esperar para continuar!! Em relação a ausência dos amigos, acho que isso é até meio 'normal' né? Parece que quando nossos amigos namoram esquecem de nós e vice-versa.

    2011-08-13
  • GabiMoura

    A idéia da fic é muito interessante, mesmo que eu não goste muito de Dramione, e você escreve super bem! Ah, e deu pra ver que você gosta de Sherlock Holmes, eu também adoro! *-* Parabéns!

    2011-07-30
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