A Pedra



“... o homem mais forte do mundo é aquele que mais suporta a solidão.”
Henrik Ibsen
Um inimigo do povo

Capítulo 1
A Pedra


O garoto andava pelas vielas escuras da noite de Viena, curvado, cabisbaixo, amaldiçoando em segredo o homem que destruíra seu sonho. Como se já não lhe tivesse bastado o pai!, agora falecido, que nunca entendera sua vocação – e nem poderia, roceiro como era. Ah, o maldito judeu! Judeu! Até o som da palavra soava sinistramente, como uma coisa suja, lamacenta. Havia muitos judeus no mundo, achava, e por isso o mundo era a merda que era. O que aquele judeu sabia? Do que podia entender com sua enorme cabeça de judeu? Vinha formulando umas teorias sobre um inchaço de ar, enorme e horrendo – afinal, tudo em judeus era enorme e horrendo, vide os narizes –, crescendo dentro do crânio deformado daquelas criaturas. Pois cérebro é que eles não tinham, burros daquele jeito. É, era mesmo um inchaço. E ele era mesmo um gênio por percebe-lo quando todos os outros não o notavam, não compreendiam. A mãe, também já falecida, costumava confortá-lo, abraçando-o, dizendo que não podiam compreendê-lo porque ele era inteligente demais. Eles riem de você, querido, porque não podem acompanhar o seu grande pensamento. Você é inteligente demais. Demais! Sim, ele era mesmo! Subitamente, sentiu uma enorme falta da mãe e do conforto dos seus braços. Desatou a chorar; caminhando na semiescuridão das calçadas, ninguém notaria suas lágrimas solitárias. Não havia sequer derramado lágrima no enterro do pai – mas que Deus o tivesse, papai (ou quem sabe o Diabo) – contudo ainda hoje não superara a morte prematura da mãe. Tão jovem, tão bela, com seus límpidos olhos azuis faiscantes e suas madeixas de cabelos dourados; uma perfeita alemã, diferentemente dos inescrupulosos judeus que viam tomando conta da grande pátria, a Alemanha. Então, tomado novamente pelo ódio do diretor “judeu de bosta” da Academia de Artes, afastou os pensamentos da mãe morta, voltando a praguejar em voz baixa. Pelo caminho, cruzara com vagabundos jogados a sarjeta, muitos deles alemães, o que o entristecera profundamente. Eram os judeus os vagabundos que deviam estar ali largados. Estrangeiros, a maioria, apossando-se das terras germânicas, das suas terras, exterminando silenciosamente o povo da Alemanha, o seu povo. Como aquele diretor que... como ele pudera!... o rejeitara. Fizera-o por inveja, inveja do seu sangue ariano, da sua pele branquíssima e do azul silencioso dos seus olhos. Divertiu-se ateando fogo mentalmente no diretor da Academia. No seu devaneio, o judeu corria envolto pelas chamas vermelhas e douradas que o consumiam rapidamente, derretendo a pele do rosto até lhe revelar o crânio. E a coisa-judeu pulava, rolava pelo chão, suplicava, estrebuchava, mas as chamas prosseguiam, implacáveis, assim como ele o seria um dia.
Um dia...
Dobrou a esquina e deu de cara com uma prostituta. Uma loira, gordinha, olhos claros, verdes, com uma roupa que ele reconhecia como sendo coisa de puta. Ela lhe ofereceu o corpo. Mas ele recuou. Olhou-a bem dentro dos olhos, e alguma coisa neles fê-la estremecer; ódio, talvez. O garoto recuou um pouco mais e atravessou a rua afastando-se da mulher.
Pensou nos planos grandiosos que a Alemanha poderia realizar. Nos planos que ele poderia realizar. O mundo que a Raça Ariana poderia criar, um mundo maior, forte, superior – implacável. Limpo, principalmente. Mas não enquanto seus irmãos estivessem degenerados daquela maneira, enquanto não compreendessem (Você é inteligente demais) a importância e o poder que tinham... E não antes que seus Inimigos Eternos fossem (queimados) disseminados da terra que era deles.
Sim, sim. Os judeus eram muito perigosos. Precisavam dar um jeito neles ou poderia ser tarde demais em breve. Ele sabia disso, mas que poderia fazer se não lhe davam ouvidos? Você é inteligente demais. Sim, sim. Ele era mesmo. Talvez devesse tentar pensar como uma pessoa burra para avaliar um modo de fazê-los entender. Era a sua missão, sua responsabilidade, seu carma, não se afastaria dele. Ainda mais depois da afronta de hoje mais cedo... apercebeu-se que já passava da meia-noite... de ontem mais cedo, corrigiu-se.
Agora mais do que nunca tinha consciência que algo deveria ser feito de imediato contra as criaturas que infestavam a Alemanha. Senão daqui a pouco viriam os crioulos também. Havia visto alguns deles na Rênia. Um daqueles macacos inclusive tivera a ousadia de passar de braço dado com uma loira maravilhosa. Louca!, provavelmente, ou tinha parte com os judeus, ainda mais provavelmente. Judeus é que tinham esse costume de misturar-se; e toda aquela mistura ia acabar deteriorando a humanidade. Vira uma vez uma criança mestiça. Pavorosa. Era um dos Bastardos da Rênia. O pai era alemão, mas de ascendência judia, e a mãe uma negra africana, de Zurique, que viera numa barcaça para o continente europeu. A filhinha deles tinha a pele pálida, não branca como a do pai, mas longe de ser escura como a da mãe. O nariz da menina, no entanto, era achatado, no melhor estilo negroide salpicado de sardas. O cabelo tinha uma coloração castanha-clara, crespo de doer. Não tinha palavras para descrever seu sentimento quanto à criança. Perplexidade não seria o suficiente. Aspirou fundo o ar noturno. Não podia permitir que continuasse.
Porém estava de pés e mãos atados. Os alemães deteriorados. A crioulada invadindo o país. Os judeus governando uma nação e uma gente que não era sua. Tudo estava vindo por terra, se desintegrando. Como interviria nesse apocalipse?
Não sabia.
Parou debaixo de uma marquise. Fazia um bom tempo que estava caminhando. Precisava descansar um pouco. Olhou para o céu. Nuvens avolumavam-se lá em cima, mas não choveria até o começo da manhã. Largou-se na calçada sem importar-se com a sujeira. Admirou a cidade adormecida, e em seguida imaginou a si próprio sobre um palanque regendo o povo com uma vara assim como o maestro rege a sua orquestra.
Começou a desenhar círculos no chão sujo marcando um borrão preto no dedo indicador. Em seguida deu-lhes um corpo traçando retas simples. Pôs um sorriso imenso no rosto de cada um de seus bonecos. E mãos, para que aplaudissem.
Flutuando sobre eles, seu nome; um coro em uníssono aclamando por Adolf Hitler.


Devia ter adormecido pois quando abriu os olhos a madrugada estava bem mais clara. Cochilara por duas ou três horas, calculava. Ouvira um estampido ao lado de seu ouvido, e isso o fizera acordar; sonhara, provavelmente. Espreguiçou-se e pôs-se de pé. Ali perto viu um ancião caminhando a passos trôpegos. Um bêbado, pensou. E teve de conter a vontade súbita de estrangular o camarada.
O velho ia se afastando do local onde Adolf estava. Teria sido ele que o despertara?
O velho falava com pessoas imaginárias, arfando.
“Damboudorr...”, dizia num ronco gutural.
Louco varrido, Adolf conjeturou.
Entretanto, o velho estava elegantemente vestido. O que o espantou. Seria um daqueles ricos judeus voltando da farra? Talvez valesse a pena ir ter com ele. Era somente um homem de muita idade, baixinho (ah, um judeu!), de músculos fracos, afinal. Ele poderia abordá-lo facilmente. E então, arrancar-lhe algum dinheiro. Judeus sempre andavam com os bolsos cheios, não é? Mesmo que não, valeria a pena só pelo prazer de atazaná-lo, fê-lo pagar por tudo quanto os Filhos de Abraão tinham feitos os alemães e ele passarem.
“Judeu de merda”, disse.
O camarada continuou em frente, sem dar-lhe atenção, clamando por alguém que não existia ou ao menos não estava presente.
“Dambou...”
Adolf empurrou-o com força.
O ancião rolou pela rua abaixo. Estava mais fraco do que deduzira a princípio. Quando o tocara, fora como um saco de ossos. Ou o judeu estava terrivelmente doente ou não era de comer muito – descartou a hipótese em seguida; todos os judeus comiam como porcos.
Pegou o judeu doente do chão. Seu braço tinha a espessura de um cabo de vassoura. Por um momento, imaginou se não seria contagioso.
“Tem dinheiro?”
“Damboudorr?”
O ancião delirava.
Seria um estrangeiro? Talvez não estivesse falando alemão.
Um segundo depois, porém...
“O segredo precisa ser protegido... Dambou-dorr... Pegue-a”, o ancião passou a Adolf um embrulho pequeno, precariamente embalado, amarrado por um pedaço de barbante.
“Mas... o que...”
“Pegue-a”
O ancião projetou a cabeça para frente, vomitou numa torrente espessa sobre o garoto e morreu. Adolf deixou-o cair no chão.
Observou a expressão vidrada dos seus olhos abertos, brancos como duas luas, a fitá-lo. Daí, sem saber bem o porquê, saiu correndo, pela noite que se dissipava, tendo a salvo no punho o objeto que lhe fora confiado.
A certa distância, Adolf parou de correr, enojado com o vômito na sua roupa. Droga, droga, droga! Mataria o velho se já não estivesse morto. Mil vezes droga! Abriu o embrulho na esperança de encontrar algo valioso.
Só havia uma pedra.
Rústica. Comum. Sem nenhum valor.
Quase a atirou longe.
Depois mudou de idéia e a pôs no bolso da calça.
Droga, droga, droga!

Continua no próximo capítulo...

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