O Inferi



Capítulo Sete
O Inferi


O homem se aproximou do túmulo. Podia ver seu rosto escuro refletido no jazigo de granizo tão negro quanto sua tez. Posicionou o dedo indicador sobre a superfície lisa e brilhante, uma faísca cinzenta partiu dali. Um feixe de luz cinza-escuro migrou para os lados formando um retângulo. O desenho luminoso perdurou um segundo, desaparecendo depois. Em seu lugar, apareceu um buraco incomodamente delineado demais.
O negro enfiou a mão pela abertura escura e sombria que a engoliu. Uma claridade dourada projetou-se de sua palma. O caixão encerrado ali dentro ergueu-se no ar, flutuando sob a luz do luar, uma luminosidade esverdeada destacando o corpo espelhado do objeto. Era um belo caixão, na verdade – se é que uma coisa assim pode ser bela.
O negro, entretanto, pouco se importava com essas coisas. Tocou o caixão com o indicador e disparou novamente a fagulha prateada. Dessa vez a tampa do caixão abriu-se de um pulo ao invés de recortar-se.
Lá dentro, deitado num confortável acolchoado vermelho, estava Bargaroff; as mãos rígidas entrelaçadas sobre o peito. Os olhos fechados, os lábios contorcidos num risco marrom, a pele mortalmente pálida, uma secreção escorrendo pelo nariz. O cheiro forte de podridão subia do cadáver infiltrando-se pela narina do homem curvado sobre o corpo. Ele levou o dedo ao nariz e encantou-o para ignorar aquele cheiro insuportável.
Gostaria que o Mestre não tivesse lhe mandado fazer isso, pensou Tessio, chateado. Esmigalhou com a mão a barata que andava sorrateiramente pelo queixo de Bargaroff e atirou-a para o lado. Respirou fundo e passou o braço pelo morto. Era repulsivo ter de tocá-lo, mas seria bem pior se ver as voltas com a fúria do Mestre. E se tinha de ser feito, era melhor que fosse feito logo. Assim Tessio pensava.
Por baixo das vestes, a carne de Bargaroff era mole e fria. Parecia que um grande naco daquela carne ia se despregar dos ossos só por tê-la tocado. Ah, era uma sensação terrível, terrível. Por sorte, havia se livrado daquele odor rançoso e bolorento e fedido.
Mentalizou seu destino. Apertou ainda mais o defunto contra si; a pele das costas dele perigando arrebentar-se pela força de seus dedos. Fechou os olhos e... aparatou. No instante seguinte desaparatou com Bargaroff diante do Mestre.
O Mestre fitava-o do alto, contento.
“Boas notícias, afinal”
Tessio largou o corpo no piso de mármore e afastou-se dele como se fosse infeccioso. Arght! Aquilo era nojento!
O Mestre veio ao seu encontro. O cumprido traje vermelho descendo pelo seu corpo até o chão. Tessio curvou-se para dar-lhe passagem. Aguardou a um canto enquanto o Mestre inspecionava o homem morto que havia trazido.
“Sim, sim. Notícia muito boa”, o Mestre murmurava.
Envergou as mãos finas sobre o cadáver. O tronco de Bargaroff, como que atraído por um imã, levantou-se na direção da mão fechada em forma de garra. O Mestre disse rapidamente um punhado de palavras mágicas e os olhos de Bargaroff se abriram e o miraram, confusos e distantes, como um sinal de rádio mal sintonizado. Para o horror de Tessio, Bargaroff voltara do mundo dos mortos – ele já havia ouvido falar em inferis, mas até então nunca vira um deles. Gostaria de nunca ter visto. Os olhos da coisa eram foscos e sinistros, ocos de emoção. Era como se Bargaroff não estivesse ali mas tivesse sido captado de algum lugar muito distante.
“Ele não está vivo realmente”, explicou o Mestre, sem qualquer motivo aparente. “Nenhuma magia é capaz de trazer os mortos de volta à vida. Porém nada impede que ressuscitemos seus corpos. Por vezes, eles são de bastante serventia, como creio ser o caso deste aqui”
“Por quê?”, arriscou-se Tessio a perguntar.
“Porque as nossas últimas lembranças antes do momento da morte costumam permanecer gravadas na nossa antiga consciência por muito tempo. Talvez possamos descobrir para quem Bargaroff passou a Relíquia antes de ser encontrado morto por aqueles Trouxas”
“Ah”, resmungou Tessio, acuado de medo. O inferi era assustador com sua boca aberta num eterno “O” e suas pestanas que não piscavam nunca.
“Inferi! Fale-me de suas lembranças!”, ordenou o Mestre.
A voz da coisa subiu pela goela como se aumentada volume a volume por um controle-remoto invisível. Os lábios não se mexiam enquanto falava. O que ocasionava um arrepio frio na pele. Tessio queria que terminasse. Queria matar a Coisa-Bargaroff. Era inumano, irreal... era uma aberração da natureza. Nunca mais queria ver um morto de volta à vida. Nunca mais!
“Óioss zuis... AhGarrrottoooo...”, a Coisa-Bargaroff ia dizendo. A boca imóvel aberta como um túnel. A voz distorcida, rasgada e áspera, como se houvesse areia presa a sua garganta. Pouco se entendia do que ele falava e as palavras pareciam vir através de um longo túnel, ecoando, perdendo intensidade e fragmentos pelo caminho.
“Óioss zuis óios”
“Eu não entendo, Mestre. Que língua é essa?”
“A nossa língua. Os inferis não costumam falar, e se falam, são difíceis de se entender.”
“Então, ele não poderá ser usado?”
“Existe outros meios mais eficazes de se descobrir as últimas lembranças de um morto”
O Mestre enfiou dois dos seus dedos, o indicador e o médio, pela goela da Coisa-Bargaroff, que não pestanejou ou manifestou qualquer reação. Não havia saliva dentro da boca daquela criatura. A língua era um pedaço de carne arroxeada, seca e gelada.
Um brilho verde-oliva surgiu na boca escancarada da Coisa-Bargaroff. Os olhos da coisa também foram inundados pelo mesmo brilho. O Mestre empertigou-se e manteve-se firme, imobilizado, conectado com Bargaroff.
A sua consciência lentamente se deslocou de seu corpo para o de Bargaroff, misturando-se a ele. Imagens desconexas em sucessão, perdidas nas pontes do cérebro do morto, passaram pelo Mestre. Uma imagem de Dumbledore surgiu a sua frente. Aproximou-se da imagem até o rosto sulcado de meia-idade e de nariz saliente cobrir todo o campo visual. Como num cinema, viu Dumbledore olhando diretamente para ele da tela gigante, falando e gesticulando. “Ainda não me disse o que faz na Alemanha”, disse a voz de Bargaroff, que não podia ser visto. “Conferência”, respondeu Dumbledore. Então o filme se deteriorou e o Mestre foi impelido para adiante. Viajava rapidamente pelas pontes e muitas imagens de muitas épocas da vida de Bargaroff passavam por ele – por dentro dele – e então desapareciam sem deixar vestígios. Droga, pensou o Mestre preocupado. Como iria selecionar a última? Era como estar num lago. Algumas lembranças flutuavam pela superfície e outras submergiam para as profundezas. Desceu pelo redemoinho que as imagens faziam ao redor de si. A viagem era assustadoramente veloz. Mil pessoas diferentes falavam de todos os lados. Via casas campestres e grandes cidades. Via trens e carros e carroças. Trouxas e bruxos e homens e mulheres. Uma mulher jovem e morena inclinava-se para beijá-lo numa das “telas”. Foi levado para outra direção pela torrente. Começava a sentir-se confuso. Já não tinha idéia clara se estava no controle da situação ou o contrário. Foi quando encontrou o que queria. Sendo jogado diretamente contra o rosto de um jovem alvo de olhos azuis fantásticos e tenebrosos.
Na imagem, o jovem abordara-o e brandia o dedo diretamente para a sua cara – ou seja, para a cara de Bargaroff. “Tem dinheiro?”, disse o jovem de olhos claros no telão. Ao que a voz onisciente de Bargaroff respondeu: “O segredo precisa ser protegido... Dambou-dorr... Pegue-a”. Uma mão apareceu na tela e passou algo para o garoto. A Relíquia, o Mestre quase gritou extasiado. Em seguida a tela escureceu e o Mestre se viu tragado para um abismo profundo, cruzando rapidamente por uma penumbra, atravessando o espaço sem fim, indo dar num túnel que seguia direto para a claridade na outra extremidade. O véu da morte sorria para ele no fim da passagem.
Precisava sair dali rapidamente. Ou poderia não voltar mais. “Desligou-se” daquela imagem e tornou a rodopiar entre as outras. Depois, impelindo-se sempre para cima, emergiu na sua própria consciência. Puxou seus dedos da boca da Coisa-Bargaroff como se temesse que o inferi os devorasse.
“Mestre! O que aconteceu? Está tudo bem?”, perguntou Tessio, em pânico. Os olhos do Mestre tinham estado tão opacos quantos os do morto-vivo. Por um momento, temeu que ele tivesse morrido também.
“Estou bem”, respondeu o Mestre. “Sei com quem está a pedra. A Relíquia.”
“Oh, Mestre, isso é maravilhoso”
“É sim”
O Mestre retornou ao seu assento e largou-se no trono forjado por ele próprio. Sentia-se fraco. E a sua cabeça não parava de dar voltas.
“Vou dizer-lhe o que precisa fazer, Tessio. Pelo visto, nosso companheiro Randall não tornara a tomar parte de nossa companhia. Creio que Dumbledore e os outros já tenham dado cabo daquele idiota.”
“Não vou decepciona-lo, meu Mestre”, apressou-se Tessio em dizer.
“Não, sei que não vai. Você é o meu melhor homem”
Após transmitir todos os detalhes do seu plano a Tessio, o Mestre tornou a pôr-se de pé. Ainda fraco, mas mais confiante, foi ao servo, posou as mãos em seu rosto e beijou-lhe nos lábios. Empurrou-o para o lado e dirigiu-se ao inferi. Pegou a criatura pela nuca e aproximou-a o suficiente para tocar-lhe o nariz. Abriu levemente a boca e pressionou-a contra a do morto. Alguma coisa passou da Coisa-Bargaroff para o Mestre, uma espécie de energia, de um azul profundo e belo. Quando o Mestre largou a coisa, ela estava morta. O rosto impassível de Bargaroff fitava o vazio.
“Mestre...”, Tessio começou a dizer.
O Mestre, no entanto, ignorou-o e retirou-se do aposento.

Continua no próximo capítulo...

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