Fawkes, a Fênix



Capítulo Três
Fawkes, a Fênix


Fawkes cantava tristemente. Os agentes do Ministério haviam acabado de sair deixando Dumbledore a sós no quarto. Ao seu lado na cama, estava a gaiola da fênix e o malão que lhe foram entregues; os pertences de Bargaroff. Quanto à mansão, os duendes afinal conseguiram por suas garras nela. Os objetos pessoais e os inventos do amigo ficaram para Dumbledore, entretanto. Bargaroff não deixava herdeiros nem possuía qualquer parente vivo.
O canto de Fawkes terminou num gargarejo sofrido, melancólico. A magnífica ave derramava lágrimas abundantes pelo dono no terceiro dia consecutivo. Dumbledore deu-se conta de que chorava um pouco também. De onde estava, a fênix o estudava com atenção; o reflexo do bruxo se destacava dentro de seus olhos cor de âmbar.
Um assalto...
Foi o que disseram os dois bruxos do Ministério da Magia.
Mas quem assaltaria Bargaroff e por quê? Todos bem sabiam que o inventor falira anos antes e que vivia das migalhas do que fora uma fortuna próspera.
A casa revirada, de pernas para o ar. Gertrude, a empregada, que não recebia seu salário fazia tempo mas se afeiçoara ao patrão, morta na cozinha, alvejada por um único feitiço fatal: a maldição da morte. O escritório praticamente destruído. Fawkes piando sem parar no quarto de Bargaroff, no qual costumava ser mantida.
E Bargaroff a quilômetros de distância de sua residência, só com a roupa do corpo, caído na rua, morto por falência dos órgãos. Havia sido, presumidamente, estuporado repetidas vezes, e por algum milagre, conseguira aparatar indo dar em Viena, onde morreu chafurdado no próprio vômito.
Nada fora roubado...
Pelo que Dumbledore sabia, nada se havia a roubar.
Então... o que... Não conseguia entender. Não podia entender.
“Fatalidade”, resumira Gobbel, mais cedo, com legítimo ar de infelicidade. Não conhecera Bargaroff em vida, porém ambos tinham compartilhado a mesma paixão pelas invenções e pelos trouxas; por isso havia lâmpadas elétricas na Pensão Gobbel ao invés de velas, como era comum no mundo dos bruxos.
Gobbel acompanhou Dumbledore ao funeral. Uma cerimônia triste, muito triste. Quase ninguém compareceu. A não ser um punhado de gente que Dumbledore nunca vira na vida nem se dispusera a falar no enterro. A imprensa bateu fotos suas próximo ao caixão, mas nenhuma matéria chegou a ser publicada de fato. Naquele mesmo dia, uma bruxa muito famosa havia se casado com um bruxo igualmente famoso e eles ocuparam quase todas as páginas dos jornais. Em todo caso, os bruxos em geral não têm grande apreciação por inventores e seus inventos. Coisa de trouxa, dizem com freqüência. Não é à toa que o mundo-mágico evoluía a passo de tartaruga. Em mil anos, a sociedade deles pouco tinha mudado.
Dumbledore abriu o malão de Bargaroff, agora seu malão, para se distrair com o que pudesse ter herdado enquanto esperava pelo anoitecer quando regressaria para a Inglaterra. Não havia nada de tão interessante. Alguns vasos e esculturas de pouco valor, roupas, uma dúzia de anéis. Bargaroff adorava anéis. Mas somente um deles chamou a atenção de Dumbledore.
O dourado... com a fênix vermelha cravejada na face. Mesmo tratando-se de uma figura pequena, a minúscula pedrinha azul presa às garras do pássaro estava bastante visível. A marca.
Dumbledore olhou-a mais atentamente. Sabia que a conhecia de algum lugar, mas nada lhe ocorria. Por que a fênix era tão importante para Bargaroff?
Por causa de Fawkes?
Não... Devia ser outra coisa. Algo se insinuava na sua cabeça querendo emergir... a reposta, possivelmente... então recuava. Não conseguia lembrar o que era. Largou o anel de volta no malão. Preocuparia-se com isso mais tarde.
Continuou vasculhando o malão. Esbarrou no apagueiro; sem saber para que servia, deixou-o a um canto. Mais para o fundo, havia alguma coisa grande... estava envolto numa manta... puxou-a. O pano de cetim escorregou pelas suas mãos revelando um quadro. O rosto macilento de Bargaroff o encarou com piscadelas zombeteiras.
Dumbledore contemplou o quadro por um instante. De repente, toda a verdade o atingiu como um raio. Aquela pessoa estava morta. Não haveria volta. A verdade era... era implacável! Dumbledore não conseguia aceitar a morte, a barreira intransponível. Pensou na mãe e no pai (mais nela que nele), perdidos para sempre no... nada, no esquecimento. Pensou que jamais estaria com eles novamente nem com Bargaroff. A morte era terrível. Ele odiava a morte.
Sentiu-se só, sentiu frio. Tentou se lembrar que ainda tinha um irmão. Não se viam regularmente, é verdade, mas, bem, ele estava lá... Ao menos até que a morte viesse e o levasse. Porque ela sempre vinha.
Quis dizer: odeio você.
Mas a morte era tão cruel que nem tinha forma. Não havia meios de dirigir-se a ela. Nem de lhe acertar um tapa nas fuças por tanto sofrimento.
A morte era pior do que tudo. Nada havia que se pudesse comparar; a morte era o pior castigo.
Chorou, a boca mordiscando o punho. Envergonhava-se mas não conteve as lágrimas. No fim, chorou por si próprio. E pela droga da sua vida. Olhou o reflexo no espelho de fronte; estava com o rosto vermelho, molhado, pálido. Viu o rosto de seu pai surgir na superfície do espelho e mirá-lo; teria visto desprezo ali? Os lábios dele não se moviam mas Dumbledore ouvia-o perfeitamente.
Jure por mim que vai esquecer essa história de escola. Não há grandeza em desperdiçar seu talento com um bando de garotos. Não, meu filho. Você é maior que isso. Precisa honrar seu velho pai. Posso vê-lo como Ministro – o maior bruxo do mundo. Prometa-me, aqui, em meu leito de morte, que vai seguir a carreira.
A carreira... a maldita carreira! Sim, papai, eu a segui. E é por isso que cá estou eu, vazio. Vazio como o senhor que morreu. E que só existe como assombração nos meus pensamentos. Gostaria que estivesse vivo agora. Assim eu poderia te dizer o quanto me importo com a carreira. Porque bem da verdade eu não me importo nem um pouquinho com ela. Eu queria te dizer isso. Queria romper a promessa que fiz segurando sua mão no dia de sua morte. Queria, mas você não está mais aqui, não é mesmo? Está além de todas as fronteiras e de meu alcance. Longe o suficiente para não ter que ouvir... Ah, o que estou dizendo, como se você tivesse ouvido alguma vez antes. Não, não. Eu sempre tive que fazer o que o senhor queria, e ser o melhor em tudo. Pois o senhor mesmo não teve capacidade para tanto e precisava se provar que servira para alguma coisa na vida. Não fora o bruxo fantástico o qual imaginava ser mas seu filho seria. Não é o que sempre dizia na mesa? Esse menino vai ser famoso, querida. Olhe só os prêmios no meu escritório. Ele vai ser Primeiro Ministro, quem sabe até Rei. Porque ele nasceu para a grandeza (é ou não é, meu filho?) e não para ministrar aulas para uma cambada de fedelhos; não alguém com o seu intelecto...
Tomado de raiva e frustração, Dumbledore atirou o quadro de Bargaroff contra a parede. Depois se arrependeu. O retrato do amigo, o único que ele tinha, escapuliu da moldura no impacto; o vidro protetor quebrou-se espalhando fragmentos pelo chão. O quadro rugiu mil maldições para Dumbledore.
No mundo dos bruxos, quadros e fotografias podiam falar... ou gritar. Comumente, o difícil era fazê-los calar a boca.
Dumbledore usou a varinha para limpar os cacos de vidro pelo quarto. Pegou a moldura e o retrato. Com um agito de varinha reparou a moldura, que ficou como nova. Alisou o retrato, que se amassara, para então repor no lugar; o quadro ficou dando gritinhos como se sentisse dor.
Foi quando bateram a porta de seu quarto.
Dumbledore destrancou a fechadura com um aceno de varinha, e disse:
“Entre”
Gobbel apareceu na fresta. Trazia um envelope.
“Dumbledore, meu caro, desculpe incomodar, mas isso acaba de chegar para você”
Passou-lhe o envelope.
Dumbledore correu os olhos por ele.
“Muito obrigado, Gobbel”
Mas Gobbel já havia desaparecido.
Abriu a carta, leu-a.
Era a respeito da morte de Bargaroff. Alguém lhe prometia contar a verdade sobre o assassinato se ele comparecesse a um encontro dali a poucos minutos.

“... se quiser saber quem matou seu amigo, encontre-me as cinco da tarde na praça no centro da cidade, perto do chafariz.”

Não havia o nome do remetente.
Uma fonte anônima. Só faltava essa. Mesmo assim não podia deixar de investigar. Devia isso a Bargaroff. Pegou a capa de sair.
A fênix piou tentando chamar-lhe atenção.
“Não, Fawkes, você fica”
A ave piou mais alto, quase aborrecida.
“Não posso levar você”, Dumbledore já estava na porta.
Fawkes pulou na gaiola.
“Eu disse que não”, repetiu o bruxo.
Não obstante, Fawkes não desistiu.
Dumbledore inclinou-se para sair, a despeito do pássaro, mas desistiu. Voltou e abriu a portinhola da gaiola. Fawkes, a fênix, alçou para fora, planando graciosamente pelo quarto.
“Pode sair”, disse Dumbledore. “Mas não me siga”
Fawkes o sobrevoou contenta da vida, cantou mais alegremente do que nos últimos dias, então escapuliu pela janela – as penas vermelhas e douradas refletindo a claridade do sol.


Assim que Dumbledore saiu, deslizou tão sorrateiramente pelas escadas que ninguém o viu subir. Sem pressa, e sem hesitar, avançou pelo corredor calmamente, tentando não fazer barulho com os pés. Quando chegou a porta do quarto do embaixador, não teve dificuldade em abri-la. Pousou a mão na maçaneta, murmurou o feitiço (“Alorromora”), e a porta se abriu com leve ranger. Empurrou-a, passou para o outro lado, trancou-a por dentro.
Por muito pouco não deu um berro, o que estragaria todo o plano. Não estava lá, soube de imediato. Ainda assim percorreu o quarto revirando tudo a procura. Se soubesse antes... Droga, na ocasião não era importante... tinham estado atrás da pedra – que agora desaparecera.
Bargaroff conseguiu escapar de suas mãos. Estivera tão perto de por fim àquela busca milenar, mas o maldito inventor escapara. Mais que isso, passara adiante o segredo. Ele não poderia falhar. Se estragasse tudo de novo, o Mestre iria castigá-lo... severamente. Um arrepio frio percorreu o seu corpo. Conhecia bem o Mestre.
Droga! Como poderia saber?, pensou indignado. Tinha estado preocupado em procurar por Bargaroff... Se o Mestre tivesse lhe falado...
A princípio supusera que Bargaroff aparatara para a Pensão Gobbel a procura de Dumbledore, a quem o inventor tencionava confiar o segredo. Os dois tinham um encontro marcado naquela noite. Ele próprio interceptou o recado de Bargaroff marcando o encontro. Por algum motivo que desconhecia, Dumbledore não compareceu, ficando em casa lendo até adormecer.
Foi por causa dessa mensagem que tudo aconteceu. O Mestre, e seus fiéis seguidores, seguiram por muito tempo o rastro da relíquia – a mais valiosa de todas. Até que chegaram a Bargaroff, o filho do famoso clarividente. Poderiam tê-lo morto fazia anos, mas sendo assim jamais saberiam do paradeiro da pedra. O momento ideal, dissera o Mestre, seria quando a pedra fosse passada adiante. Quando Bargaroff a retirasse de seu esconderijo para entregá-la ao próximo guardião. O momento mais vulnerável.
O plano seguiu como planejado... até aquela noite.
Encontraram Bargaroff a sós em casa. E já haviam agido muito antes que pudessem se dar conta do erro. Dumbledore não estava ali, a pedra certamente também não. Porém, uma vez que Bargaroff fora alertado, não podiam voltar atrás. Se a Ordem da Fênix descobrisse o interesse deles e se pusesse a caça-los, não seria nada bom. Na verdade, seria péssimo. O Elemento-Surpresa era tudo o que tinham, ninguém suspeitava do envolvimento deles. Tinham sido discretíssimos.
Até aquela noite... O pensamento tornou a assombrá-lo.
Foi um erro ir atrás de Dumbledore na pensão, conjeturou, esvaziando o armário. Por sorte, Dumbledore não percebeu sua presença no quarto; dormia alheio a tudo que se passava. Aonde mais Bargaroff teria ido, afinal?
Quando soube a resposta, foi nas manchetes d’O Bruxedo.
Viena. Morto. Estuporado. Talvez não tivesse conseguido aparatar direito após ter sido torturado, indo parar naquele lugar aleatoriamente. De toda forma, a pedra não se encontrava mais em seu poder.
Um trouxa poderia tê-la pêgo, pensou.
Não, não. A pedra não teria qualquer valor para eles.
Mas nunca se sabe...
Estirou a palma da mão para o malão sobre a cama. Num redemoinho, todo o conteúdo do malão foi cuspido, caindo esparramado pelo chão. Livros, roupas, vasos, memorandos. Sabia que a pedra não estava com Dumbledore, ele não fazia parte da Ordem, se fizesse já teria partido, mas não custava dar uma conferida. Não se preocupou em pôr as coisas nos seus lugares. Era apenas questão de tempo até a Ordem da Fênix saber da procedência do ataque a Bargaroff. Não havia mais sentido em agir distintamente. Não podia perder mais tempo.
Foi quando ele viu o anel.


Avaliando posteriormente a situação, Alvo Dumbledore deduziu que tivera sorte. E que bem da verdade poderia ter sido muito pior que um anel perdido. Poderia estar morto agora.
Não havia informação alguma sobre Bargaroff nem houve encontro. O bilhete fora uma farsa para tirá-lo da pensão. Após caminhar quase 1Km até a praça (não podendo aparatar com risco de ser visto por um trouxa qualquer), esperou quase duas horas, de pé, sob o sol. Quando foi cinco da tarde, desistiu, injuriado, imaginando que aquilo pudesse ser brincadeira de algum engraçadinho que o vira no enterro. Foi para um local discreto da praça, não viu nenhum trouxa nas proximidades, aparatou.
PAM!
Gobbel estava a sua espera.
“Dumbledore, nem sei como isso pôde acontecer”, foi logo dizendo. “O elfo-domêstico subiu para dar uma limpezinha no seu quarto...”
Dumbledore ouviu apenas metade do relato. Logo que a palavra “invasão” escapuliu da boca do anão, correu para seu quarto sem dizer palavra. Embora não houvesse motivo real, foi armado de sua varinha.
O quarto estava novamente arrumado.
“Você disse...”, começou a dizer, mas Gobbel o interpôs.
“Mandei o elfo dar um jeitinho aqui rapidamente. Isso nunca aconteceu na minha pensão antes. Nem sei como explicar isso. Roubaram alguma coisa?”
Dumbledore vasculhou suas coisas, mas tudo parecia no lugar. Estava para dizer isso a Gobbel quando se lembrou do anel que deixara no malão. Gobbel chamou pelo elfo, e este informou que achara vários anéis espalhados pelo cômodo. Porém nenhum deles tinha a tal marca da fênix. Este não, senhor, ele não vira.
“Ah”, recordou o elfo-domêstico de repente. “Mas encontrei sua varinha, senhor”
“A minha varinha esteve comigo o tempo todo”, falou Dumbledore, exibindo-a ao elfo.
“Não foi esta que eu vi, senhor. Estou falando da quebrada”
“Eu não tenho nenhuma varinha quebrada. Que varinha é essa?”
O elfo foi até ao armário e retirou da gaveta de baixo uma varinha nova em folha partida ao meio. Um fio prateado ligava os dois pedaços.
“Pêlo de unicórnio”, disse Dumbledore, imediatamente.
Gobbel meneou a cabeça numa negativa. Levou suas mãozinhas a boca.
“Isso... Ah, não, Dumbledore...”
“O que é?”
“É a marca Deles...”
“De quem?”
“Dos Sem-Varinha”
“Sem-O-Quê?”
“Sem-Varinha. Uma fraternidade de bruxos e bruxas iniciados em Magia Negra muito avançada. Capazes de executar todo a sorte de feitiço sem fazer uso de varinhas. São poderosos, e muito, muito perversos. Há tempos que não se ouve falar deles. Desde a morte de Grindewald, acho. A varinha partida é o modo pelo qual se identificam”
“Mas o que querem comigo?”, Dumbledore nunca ouvira falar da tal fraternidade.
“Não sei, não sei. Mas é ruim. Um Sem-Varinha deixa a Marca para alguém como um agouro de morte. Quer dizer que a pessoa foi marcada para morrer, para ser assassinada”


Era nessas coisas que Dumbledore pensava sentado à janela do trem enquanto uma sucessão de imagens desconexas passava pelos seus olhos. Fawkes dormia tranqüilamente, recolhida em sua gaiola. Conforme avançavam para a Inglaterra, voando alto no céu noturno, o tempo esfriava gradativamente. O trem empinou-se mais para cima, serpenteando entre as nuvens como uma espécie estranha de cobra.
Por fim, exaurido, Dumbledore caiu no sono também.

Continua no próximo capítulo...

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