O Demônio de Viena



Capítulo Seis
O Demônio de Viena


31 de Julho
O DIÁRIO DE VIENA
Diretor da Academia de Artes e esposa são assassinados em casa

O Sr. Oswald Poll e a sua esposa, Margaret, foram encontrados pelos filhos mortos no quarto que compartilharam por mais de vinte e cinco anos. A Sra. Poll teve a cabeça degolada e depois “assada” no forno da cozinha do apartamento. O Sr. Poll, que dirigiu a Academia de Artes de Viena por duas décadas, teve o rosto desfigurado e os dentes arrancados. O corpo do Sr. Poll foi dependurado pelo assassino no lustre da sala, amarrado pelos braços, completamente nu. Agindo com evidente tranqüilidade, o assassino desconhecido desenhou em letras miúdas a mensagem TODO JUDEU É UM PORCO! no corpo da vítima, utilizando o que parece ser um canivete ou um estilete. No corpo degolado de Margaret Poll também havia uma mensagem semelhante, que dizia: EU SÓ GOSTO DE PORCO ASSADO.
A polícia não tem pistas de quem possa ter cometido a barbárie. Amigos do casal informaram que os Poll eram queridos por todos e não tinham inimigos. O Rabino Joseph Rosenberg acusa fundamentalistas radicais de direita e afirma que o crime trata-se de um ato político contra todos os judeus. As discussões continuam aceradas. O presidente preferiu não se pronunciar. Líderes judeus o acusam de conivência.


3 de Agosto
O DIÁRIO DE VIENA
2 corpos encontrados no condado de Franktorn

O Condado de Franktorn acordou atemorizado na manhã passada. Dois corpos ainda não identificados foram encontrados mutilados dentro de um celeiro pertencente ao Sítio da Boa-Venturança. O Sr. Guttman, o dono da propriedade, preparava-se para ordenhar as vacas quando se deparou com os cadáveres, segundo relatou a polícia. Tratava-se dos corpos de um homem (branco) e uma mulher (negra) – possivelmente estrangeira. Ninguém em Franktorn vira o casal anteriormente. A polícia acredita na hipótese de que o crime tenha sido cometido em um vilarejo próximo e os corpos tenham sido removidos e abandonados ali pelo assassino para dificultar o trabalho dos peritos.


4 de Agosto
O DIÁRIO DE VIENA
Filha do casal assassinado em Franktorn encontrada morta também

A menos de 500 metros do celeiro onde seu pai e sua mãe foram encontrados mortos, a menina Zirbone Hadzen, de 9 anos, foi encontrada pelos polícias do Condado de Franktorn. A pequena Zirbone teve o pescoço degolado e estava parcialmente enterrada atrás do canteiro de rosas pertencente à esposa de Elijah Guttman, dono do Sítio da Boa-Venturança, no qual todos os três corpos foram encontrados. Segundo os peritos, o assassino tencionara enterra o corpo de Zirbone, mas foi interrompido, provavelmente assustou-se com alguma coisa, largando o serviço pela metade – as mãos e os pés estavam visivelmente expostos, relatou uma testemunha, que prefere não se identificar.
Após descobrirem no dia anterior as identidades de William Hadzen e sua esposa Mancini Hadzen, uma imigrante africana, a polícia local começou uma busca nas redondezas pela menina Hadzen. Ziborne estava desaparecida até então. Tornando a visitar o Sítio da Boa-Venturança, o delegado e outros dois policiais acabaram tropeçando no corpo da menina enquanto vasculhavam o local.
A polícia ainda não sabe explicar o porquê do assassino ter tentado esconder o corpo da menina quando deixou os corpos de seus pais em lugar tão visível.


5 de Agosto
O DIÁRIO DE VIENA
Elijah Guttman acusado e detido pelo assassinato da família Hadzen

Às 19h30 de ontem, o Sr. Guttman foi detido pela polícia do Condado de Franktorn sobre a acusação de triplo homicídio qualificado. A mulher de Guttman ligou para polícia depois que o marido tentara supostamente assassiná-la. Segundo a Sra. Marie Guttman, o marido vinha se comportando de maneira estranha desde que os corpos do casal Hadzen haviam sido encontrados. A princípio, ela julgara tratar-se de nervosismo – o próprio Sr. Guttman encontrara os corpos de Will e Mancini Hadzen e chamara a polícia, na ocasião. No entanto, segundo ela relatou à polícia, depois que o corpo da menina Ziborne Hadzen, filha do casal assassinado, foi encontrado semienterrado no seu canteiro de rosas, a situação do Sr. Guttman se agravou.
“Ele não quis almoçar. Elijah jamais deixou de almoçar em toda a sua vida, nem mesmo quando a sua mãe morreu”, contou a Sra. Guttman entre lágrimas. Mais tarde, quando indagara ao marido se ele tivera alguma coisa a ver com aqueles crimes, o Sr. Guttman teria dito que sim, que ele os matara e que agora teria que matá-la também. Elijah Guttman teria empurrado a mulher contra a parede e subido as escadas para buscar a espingarda que mantinha no quarto do casal. Nesse ínterim, Marie ligou para a polícia e se escondeu no porão da casa. O delegado Radtz e seus homens chegaram a casa dos Guttman a tempo de evitar a tragédia. O Sr. Guttman tentava entrar no porão atrás da mulher quando foi abordado pelos policiais. Quando indagado a respeito, negou ter tentado assassinar a esposa.
Apesar da declaração de Marie Guttman, o Sr. Guttman ainda nega ter assassinado a família Hadzen. “Deus me fará justiça”, ele disse aos repórteres antes de ser encarcerado na delegacia de Franktorn.


6 de Agosto
O DIÁRIO DE VIENA
Elijah Guttman confessa ter assinado os Hadzen e outras 22 vítimas

A Delegacia de Franktorn foi acordada esta madrugada pelos berros de Elijah Guttman, que exigia ser levado a presença do delegado do condado, Tilby Radtz. Ele finalmente havia decidido confessar os seus crimes. Após três horas ininterruptas de depoimento, o Sr. Guttman assinou a declaração onde confirmava ter assassinado William Hadzen, 37, Mancini Hadzen, 32, e Zirbone Hadzen, 9.
Entretanto, a polícia ficou surpreendida com a insistência do Sr. Guttman em “confessar seus outros pecados”. Segundo Elijah Guttman, ele teria matado outras vinte e duas pessoas e enterrado seus corpos.
Essa informação ainda não foi confirmada. “Estamos empenhando todos os nossos esforços nisso”, declarou o delegado Radtz.


14 de Agosto
O DIÁRIO DE VIENA
Mais 10 corpos localizados pelo Departamento de Polícia de Viena

Hoje o Departamento de Polícia de Viena declarou ter encontrado mais dez corpos de vítimas de Elijah Guttman, que confessou os crimes na semana passada após ter sido indiciado pelo assassinato da família Hadzen, encontrada morta no Sítio da Boa-Venturança, de sua propriedade. O próprio Guttman revelou a localização dos corpos à polícia em troca de pequenos favores – fumar um cigarro e ler o caderno de esportes, por exemplo. Todas as vítimas de Guttman eram negras e/ou imigrantes.
Dois dos cadáveres – já em estado de decomposição avançada – permanecem sem identificação. A polícia acredita tratar-se de imigrantes ilegais. “Não temos como ter certeza, só Guttman poderia esclarecer essa questão”, informou um dos peritos a nossa redação. Guttman por sua vez disse não conhecer pessoalmente nenhuma das suas vítimas, que as escolheu por tratarem-se de estrangeiros. “Gente imunda que suja a nossa pátria”, definiu.


15 de Agosto
O DIÁRIO DE VIENA
Casa de Guttman é atacada em represália

Militantes anônimos tocaram fogo essa manhã na casa de Elijah Guttman em protesto ao assassinato de 25 imigrantes e/ou negros. Marie Guttman, que estava em casa e dormia, foi acordada pelas chamas que se alastravam pelo quarto. Por sorte, a Sra. Guttman conseguiu escapar ilesa do atentado e passa bem. O Corpo de Bombeiros conseguiu controlar a situação e salvar toda a ala norte da casa, que está assegurada. A polícia de Franktorn lamentou profundamente o incidente e alertou que nenhum ato de violência será tolerado.
Uma pichação feita no prédio da Delegacia de Franktorn (MORTE AO DEMÔNIO DE VIENA!!!) parece desafiar a ordem.


18 de Agosto
O DIÁRIO DE VIENA
Demônio de Viena morto

Na madrugada de ontem, Elijah Guttman, conhecido como o Demônio de Viena, suicidou-se na sua cela em circunstâncias misteriosas. O corpo de Guttman foi encontrado pelo carcereiro por volta das 7h. Quando chegou a cela de Guttman para entregar-lhe o café da manhã, o carcereiro encontrou-o caído no chão, de bruços, esvaindo-se em sangue. Elijah Guttman havia cortado os próprios pulsos com os dentes. Ninguém na Delegacia de Franktorn disse ter ouvido os gritos.
A mulher de Guttman, Marie, cuja casa foi atacada há três dias por manifestantes, afirmou que o marido foi assassinado com conivência da polícia e diz que vai recorrer. O delegado Radtz não quis comentar o suicídio de Guttman.
Os militantes “pela morte do Demônio” reuniram-se logo cedo em frente à delegacia para comemorar. Cartazes pintados com letras vermelhas anunciavam: “Deus nos fará justiça!” e “Que Deus o condene ao Inferno, seu monstro doente!”. O grupo foi disperso a tiros de borracha.


30 de Agosto
REVISTA ISTO É MISTÉRIO Nº 112
O Caso Guttman

“[...] É realmente espantoso que Elijah Guttman tenha assassinado todas as vítimas de que foi acusado. A exceção da família Hadzen, encontrada morta no sítio dos Guttman. Como E. Guttman conseguiu cometer todos esses homicídios em lugares tão afastados do condado de Franktorn e tão distantes entre si, permanece um mistério. Mesmo o cético delegado Radtz concorda que seria necessário uma velocidade impressionante para tal proeza, o tempo de diferença entre um crime e outro era coisa de 24 horas na maioria dos casos. ‘Parece até magia’, Radtz comentou em entrevista. A mim parece haver muito mais coisas por trás desses assassinatos do que a polícia deseja nos revelar. Quanto mais depois da morte suspeitíssima de Guttman. Como alguém poderia ter mordido os pulsos até a morte e não ter gritado uma única vez sequer como querem que acreditemos? Sim, senhores, é isso aí. Tudo não passa de uma grande conspiração. A polícia efetuou a prisão de um desses racistas homicidas e está querendo nos fazer acreditar que ele é todos. Assim podem deixar todos os outros livres e impunes para fazer o trabalho sujo deles [...]”


O garoto andava pelas vielas escuras da noite de Viena de cabeça erguida, comemorando em segredo o seu triunfo. Ah, o velhote judeu... fora bom matá-lo. Ah, os crioulos... fora bom matá-los também. Agora ele tinha aquele Poder, aquela pedra, e poderia limpar a Grande Pátria da Alemanha, a Pátria-Mãe, a maior de todas, louvada fosse. Sim, sim, sim. Ele tinha o Poder e expurgaria todos esses mestiços e judeus da Sua Terra. Faria coisas inomináveis com eles. Seria-lhes o pior dos pesadelos.
Adolf Hitler explodiu em risadas colossais. Era tão bom o Poder. Ele adorava o poder. Não, na verdade ele adora ter o Poder. E como adorava. O Poder o colocava acima de um simples homem, acima do Bem e do Mal. Acima de qualquer deus. Pois ele era Deus. Tinha a pedra e com ela nada poderia detê-lo, nem a morte. O destino de toda a humanidade estava na sua mão juntamente com aquela pedra, e ele sabia bem o que fazer com esse destino.
Imagine só: um novo começo. Um mundo puro. Uma humanidade forte. Uma humanidade ariana da qual se orgulharia. Uma humanidade para idolatrá-lo.
E Deus disse: “Haja luz”.
E houve luz.
E a luz era boa.
Sim, Adolf pensou. Ele podia fazer a luz.
Diante dele, parada na mesma esquina de sempre, estava a prostituta com a qual Adolf Hitler esbarrara no começo dessa história e que lhe oferecera o corpo – um corpo sujo de puta. De onde estava, da outra ponta da rua, podia vê-la perfeitamente. Era uma pena ter que fazer isso com uma irmã, uma filha da Alemanha, mas aquela piranha manchava o brio do sangue ariano. Traidora. Não haveria misericórdia para os traidores do sangue. O Sangue era sagrado, e não podia ser corrompido. E para os corruptores só haveria o mal, o castigo – filhos malditos entregues a perdição, morram todos, canalhas!
A pedra fosca dependurada no seu pescoço por um cordão improvisado de barbante começava a brilhar. O azul espalhava-se pela sua superfície como gás néon, rodopiando no seu interior, como um olho vivo e maligno. A mágica... de novo. Adolf se sentia apaixonado pelo seu novo brinquedo.
Avançou para a prostituta. Chegou nela mais rápido do que qualquer ser humano jamais chegaria, quase que instantaneamente.
“BU!”, gritou em seu ouvido.
A prostituta pulou, assustada. Voltou-se e deu de cara com o garoto olhando-a com olhos ansiosos.
“Mudou de idéia, querido?”, ela perguntou, entendendo aquele olhar de maneira fatalmente errônea. “Decidiu brincar um pouco comigo, meu principezinho?”
“Ehh... Decidi brincar um pouco com você...”
“Que bonito! O que é isso no seu pescoço?”, a prostituta estirou os dedos para a pedra azul que Adolf trazia na altura do peito, mas ele desviou-lhe a mão. “Nossa! Não vou te roubar, só queria dar uma olhadinha”
“Você gosta, não é?”
“Ah, claro, é tão bonita essa pedra”
“Eu digo se você gosta de ser puta”
“Ah, gosto o suficiente. É bom brincar com os garotinhos e com os garotões. Às vezes, até com algumas garotas, pra variar”
Se não fosse pela escuridão e pelo brilho cor de ciano que a pedra projetava na sua face, a mulher teria visto o rubro que surgira nas maças do rosto de Adolf. Cerrou as mãos em punhos. Aquela mulher era repulsiva. Ele iria disseminar com ela. A sua safadeza fazia-o morrer de raiva. Ele queimava de raiva. Ela ia queimar também.
A prostituta se inclinou para o garoto quando sentiu algo quente ardendo dentro de si.
“Meu coração”, foram suas últimas palavras. Massageou o peito, ofegante. Pensou que estivesse à beira de um infarto.
Adolf pousou a mão esquerda no ombro dela. Disse:
“Queime”
No instante seguinte, a mulher corria pela rua escura, em chamas, a princípio gritando alto, depois só murmurando e grunhindo, rolando pelo chão, lutando contra o fogo – o fogo azul que emergia das suas entranhas e queimava-lhe a carne e corroia a pele. Ela dançava pela calçada como a coisa-judeu que ele imaginara certa vez quando um certo “judeu de bosta” o recusara na sua insignificante Academia de Artes. Caminhando como um trapo de pano esvoaçando ao vento, a mulher, ou o que restara da mulher, vinha na sua direção. Seu crânio vazio não tinha olhos nem expressões. O esqueleto descarnado andava sozinho envolto numa austera áurea azul como uma criatura de um filme de terror B.
O fogo-mágico apagou-se tal um fósforo se apaga. Aos poucos, recuando para o centro, diminuindo aos bocados, por fim deixando apenas uma fumacinha com aquele cheiro peculiar pairando no ar.
Adolf sentou-se na calçada. Já havia se divertido demais. Precisava arquitetar um plano melhor. Não podia desperdiçar o seu tempo andando por aí, assassinando com suas próprias mãos esses infelizes, eles não eram dignos de tamanha honraria. E fazer essas coisas o deixava muito cansado. Nunca havia queimado ninguém como fizera agora, não restando nem os ossos, e nunca se sentira tão esgotado por ter usado o Poder. Poderia dormir por mil anos sem se preocupar, estava tão fraco e dolorido.
Era mais prudente controlar a raiva e a vontade de vê-los deteriorar-se diante de seus olhos e encantar outros para fazer o trabalho sujo. Como tinha feito com aquele cara em Franktorn. Matara pessoalmente todas aquelas pessoas, se locomovendo como um trovão. Por pura sorte, encontrara aquele casal mestiço, os Hadzen, e a filhinha meio-isso-meio-aquilo que eles tinham. Usara o Poder para paralisá-los e então fizera o trabalho lentamente. Penetrando-lhes a carne com prazer. A menininha feia fora a primeira a morrer. Cortara-lhe a garganta e deixara seus pais verem o sangue escorrer-lhe como escorre o sangue de um porco abatido. Depois despedaçara os dois. E despedaçara com um pouquinho mais de empenho o marido, o judeu. Não sabia nem quem era pior. Mais devia ser o cara. Os judeus sempre são os piores, ainda mais envolvidos com a crioulada.
Por fim, decidira matar aquele cara de Franktorn, o tal do Elijah Guttman. Vinha acompanhando as notícias pelo jornal. Usando Guttman, transmitiu sua mensagem para o Povo Alemão, como um prenúncio do Tempo da Glória que viria. E também o fizera de mártir, ao lançar-lhe o feitiço na noite fatídica que o reencontrou na cadeia – não fora difícil “transportasse” para dentro da cela. Ordenara-o que mordesse os punhos até a morte, e sentou-se para observar. No estado de transe que o colocara, o homem não sentira a dor, fazendo todo o serviço, do começo ao fim, em profundo silêncio. Assim terminando com o Demônio de Viena.
Ah, estava tão cansado. Iria adormecer ali mesmo, tendo longos sonhos.
A pedra continuava a brilhar, um olho sinistro vigiando no escuro.

Continua no próximo capítulo...

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