Os Newell



Sarah se esgueirou pela passagem atrás da cozinha, abriu uma greta na janela pelo lado de fora da despensa, escalou a parede apoiando-se no barril de cabeça para baixo que arrastara até ali e pulou para dentro tentando não fazer barulho – o que faltava no paladar dos cozinheiros, por servir aquela comida grudenta do orfanato, eles ganhavam nos ouvidos apurados. A garota já fora pega por eles mais de uma vez, fazendo exatamente aquilo que estava fazendo agora.



Sarah agarrou um pacotão de pimenta de uma das várias estantes do grande depósito que tinham e se dirigiu até a porta que dava na cozinha. Espiou dentro do grande cômodo lotado de utensílios de inox, cheio de gente falante àquela hora, e espirrou de leve com o cheiro forte de tempero que subia com o vapor das panelas, grandes o bastante para parecerem caldeirões. Um serviçal olhou para o canto onde ela estava, mas não exatamente para ela, e Sarah teve tempo de voltar para a despensa antes de ele detectá-la.



De longe, pôde ver Sir Lechaise, o cozinheiro do orfanato. Era um homem comprido e muito magro, que destoava da maioria rechonchuda que ali trabalhava. Era de fala rápida e parecia saltitar enquanto andava, com suas pernas longas e finas fazendo movimentos um tanto floridos. Com muita frequência, Sarah o chamava de Chef Grilo para Emily, o que sempre a fazia rir. No momento ele estava todo empinado enquanto instruía um ajudante, o chapéu de trabalho tremendo em sua cabeça enquanto gesticulava veementemente durante a explicação. Sentiu uma onda de prazer ao pensar na cara que ele faria após a bagunça. Ele podia ser um santo perto da Sra. Newell, mas sabia ser amargo com as crianças.



Esperou alguns minutos e voltou a arquitetar seu plano. Localizou a panela de molho de tomate e sorriu, já imaginando como rolaria de rir se desse certo.



Apalpou a jaqueta, abriu o zíper do bolso interno, tirou de lá o ratinho guinchante da Zoe e o soltou na cozinha. Preso por tanto tempo dentro de um bolso apertado, ele fugiu como louco de Sarah, justamente na direção dos cozinheiros. Um segundo depois, toda a casa pôde ouvir o grito agudo da primeira pessoa que o avistou, uma mulher baixinha que se jogou pra cima de um dos balcões e se equilibrou em um colega.



Logo, todos estavam correndo e gritando, uns para longe do bichinho e outros atrás dele com vassouras ou colheres de pau. Gritos eram ouvidos para todo lado ao mesmo tempo em que comida caía pelo chão, talheres voavam e pessoas eram atropeladas.



Aproveitando a deixa, Sarah engatinhou por trás das panelas e virou o saco inteiro de pimenta dentro da que continha o molho. Sorriu ante o sucesso e saiu por onde tinha entrado. Pulou de volta a fresta do depósito e fugiu com um sorriso maroto no rosto. Esperava não ter sido vista, da última vez que alguém a dedurou por uma de suas brincadeiras, ficara um mês encarregada de limpar o jardim, que era simplesmente enorme. Só precisava se lembrar de avisar Emily para não comer o macarrão no jantar.



Quase onze anos haviam se passado desde que a família Newell recebera Sarah naquela fatídica noite. Depois de a jovem Helen ganhar os benefícios prometidos pelos bruxos como parte do acordo de criar a menina, mudaram-se para uma nova casa – uma mansão antiga no estilo vitoriano que poderia ser considerada um patrimônio da cidade não fosse pelo mal estado de conservação. E Helen Newell também não se incomodou em reforma-la, a não ser o loft onde viveria com os filhos biológicos.



A mansão possuía mais cômodos do que podiam contar e localizava-se em um bairro familiar seguro e de boa reputação. Lá, Helen abriu um lar para abrigar e ajudar o maior número possível de crianças órfãs. Logo se vira administrando um orfanato onde, quase que mensalmente, uma criança era abandonada à porta. A Sra. Newell os criava como filhos, onde todos ganhavam seu sobrenome, mesmo que nem todos tivessem estado lá desde bebês.



O Lar Newell, com o tempo, ganhou o respeito da comunidade onde se localizava e sempre recebia ajuda financeira dos vizinhos, que eram, em sua maioria, muito ricos. Já eram abrigadas mais de sessenta crianças, e lá elas cresciam, aprendiam, competiam entre si e deixavam todos os funcionários de cabelo branco, até completarem 18 anos, quando ficavam livres.



Era a única casa que Sarah Schaffor conhecia.



Schaffor era o sobrenome destoante do lugar, a única que morava no Lar Newell sem ser uma Newell, o que levava a garota a ser excluída pelos demais. Adoravam dizer que ela não era parte da grande família. Todos, exceto Emily, com quem dividia o quarto. Esta era dois anos mais velha que Sarah e a tratava como uma verdadeira irmã.



A menina poderia ter superado toda aquela agressividade dos outros órfãos se não fosse pelo fato dela se sentir, de fato, diferente. Desde pequena, tivera mais facilidade nos aprendizados que recebiam; não tinha medo de coisas básicas que crianças têm, como escuro e monstros debaixo da cama; sempre gostara de brincadeiras perigosas que mais ninguém tinha coragem de brincar; costumava ter sonhos com pessoas e coisas tão estranhas que não conseguia contar nem para Emily. Mas, principalmente, porque para Sarah eles pareciam reais.



Isso também poderia, talvez, ter sido manejado se não fosse pelas coisas que aconteciam ao seu redor, coisas inexplicáveis. Desde que tinha cerca de três anos de idade conseguia escolher o cardápio do dia só concentrando-se no prato enquanto o cozinheiro estivesse no mesmo lugar que ela. Depois, começou a fazer coisas acontecerem só pensando nelas, mais ainda quando estava em apuros com as outras crianças. Em seu aniversário de sete anos, acordou flutuando acima da cama! Pensaria ser outro de seus sonhos mirabolantes se não tivesse se estatelado no chão após alguns segundos de incredulidade e ganhado um grande roxo na coxa. Uma semana depois, quando estava brava com Madame Fellon por injustamente colocá-la de castigo, fez o cabelo dela cair. No dia depois desse, quando um dos bebês do orfanato quase fora derrubado do balanço por uma criança descuidada, fizera o brinquedo parar no ar até que o perigo passasse. Ainda, teve a vez em que Rob viera até ela para lhe bater e não conseguiu chegar perto da garota. Ficou lá balançando braços e pernas a meio metro de distancia, impotente, como se houvesse uma barreira invisível ao redor de dela.



E não parou por aí. De vez em quando, aconteciam coisas assim ao seu redor e, por algum motivo, sempre se sentia responsável. Não porque tivesse feito, mas porque pensara em fazer. Tudo era muito bizarro, mas ela parecia ser a única a se lembrar de tudo, os outros apenas encontravam uma explicação plausível e pronto. Até já pensara em dividir seus pensamentos com Emily, mas sabia o que ela diria: “É tudo coisa da sua cabeça, pimentinha, você sonha demais.”.



No presente, Sarah continuou a ouvir a falação na cozinha enquanto andava pela parte malcuidada do jardim dos fundos. Urtigas e mamonas ficavam escondidas na folhagem por ali e só alguém que conhecia muito bem o terreno poderia passar sem ganhar evidencia de onde tinha estado. Chegou sã e salva à velha porta ornamentada que ficava daquele lado e entrou na mansão. Sem conseguir esconder o sorrisinho, atravessou toda a extensão do orfanato a caminho da saída da frente, que dava para o grande quintal, onde ficava o lado bonito do jardim. Enquanto andava pelo hall, abaixou-se bem a tempo de evitar que a parte debaixo do corpo de uma boneca acertasse sua cabeça em cheio.



- Preste mais atenção, Schaffor! – berrou Rob do outro lado da sala bagunçada e riu com sua turminha, apontando para ela.



- Se me acertasse, ia se arrepender! – gritou ela, fulminando o garoto. Deveria estar acostumada com aquilo já que recebia aqueles bombardeios ao menos uma vez ao dia. E isso quando estavam de bom humor.



- Olha só, a gatinha se estressou. – caçoou Ben e todos riram de novo.



Sarah revirou os olhos e marchou para os jardins. Rob, Ben e os outros eram alguns dos garotos mais velhos do orfanato da Sra. Newell e achavam que mandavam no lugar. Mas ela sabia melhor. Não passavam de pivetes mal crescidos e ela já dera boas lições neles em outras ocasiões. Sabia se defender. Fora a primeira lição que tivera que aprender.



Mas o humor de Sarah logo deu outro “up”. Madame Fellon passou apressada por ela, acompanhada de um dos cozinheiros, dizendo:



- Não tem cabimento isso ainda acontecer! Um rato! E na COZINHA! A sra. Newell ficará sabendo disso. Ainda não acredito...



Sarah se esforçou ao máximo para não rir, mantendo o rosto neutro. Viu a turma de Rob resmungar com nojo e achou que só por isso a missão já valera a pena. Deu meia volta e continuou seu caminho, quase dançando.



Emily estava lendo nos jardins quando Sarah saiu. Já era noite e quase na hora do toque de recolher para que fossem jantar e dormir, então Sarah precisava ser rápida. Era uma das coisas que não contava para a excessivamente correta Emily, que a proibiria. Era como um ritual. Toda semana, à mesma hora e lugar, deveria estar lá.



Passou sorrateira por trás dos arbustos gigantes – tão bem cuidados por Madame Fellon – testou seus suportes pelo muro, só para garantir que continuavam firmes, e escapuliu para a rua. Assim que estava livre, correu.



Encontrou-o onde sempre ficava, sentado num dos balanços enferrujados do parquinho.



- Noite, Tom – ela o cumprimentou, acomodando-se no balanço do lado – Desculpe o atraso, Rob e os outros estavam com suas gracinhas de sempre.



Ele apenas olhou para ela e riu.



- Bom, pelo menos você veio. Achei que fosse me deixar plantado.



Tom Watson era seu melhor amigo da vida toda, o único que conhecia todas as suas travessuras e que participava delas ocasionalmente. Também conhecia Sarah melhor que qualquer outro – o que deixava Emily com muitos ciúmes. Sarah possuía alguns outros amigos, mas nem se comparavam diante da amizade dos dois vizinhos.



O que mais gostava em Tom era que sempre a fazia rir, diferente das pessoas que conhecia. Era como ar fresco, longe daquele montante de Newells.



A família Watson morava do outro lado da rua e a garota vivia mais lá do que na própria casa. A Sra. Watson era estilista e o Sr. Watson, um importante empresário. Juntos, pareciam um casal de modelos... só que velhos. Os três eram altos, loiros e de olhos verdes, a típica família bela e perfeita, com seus carros importados e sua mansão maior até mesmo que o orfanato, que já era enorme.



- Minha mãe está mais insuportável do que nunca – disse ele – Tem esse desfile de moda chegando e a está deixando louca. E no processo, eu e papai também.



Sarah achou graça. Poucas pessoas se igualavam à histeria da mãe de Tom em tempos de crise. Bom, pensando melhor, Joanne talvez conseguisse.



- Pelo menos você tem a sua. A minha eu mal vejo. E quando posso ter um tempo com ela, tenho que dividir com todos aqueles babacas que me veem como uma leprosa. – ela pegou uma pedrinha próxima e a jogou longe. Podia quase sentir a frustração em sua voz.



- Mas você sabe que a Sra. Newell ama você. – rebateu Tom, tranquilo – Ela sempre teve esse cuidado especial por sua ovelhinha negra – e riu da própria piada.



Sarah não se manifestou, mas também não continuou o assunto. Tom já a ouvira se queixar vezes demais. Resolveu mudar para um assunto mais leve.



- Bom, não importa. Como foi o treino de lacrosse?



- Foi cansativo, mas o treinador disse que tenho futuro promissor. Ele mencionou esse time...



Ficaram conversando e brincando até bem tarde, aproveitando o companheirismo familiar. Foi só quando Tom caiu de cara no chão ao tentar pular do balanço que acharam melhor irem embora. Com a bochecha ralada, ele riu de si mesmo.



- Minha mãe ainda me mata por sumir assim – disse, passando a mão pelo barro manchado de sangue no rosto.



- Não faz isso, Tom! – exclamou Sarah fazendo careta – Deve estar doendo pra caramba!



- Ná! – desdenhou ele, mas deixou escapar uma pequena careta de dor – Sou muito macho, isso não é nada.



Ela riu alto.



- Sei. Vamos ver se é macho o bastante pra me vencer na corrida de hoje. Quem chegar por último na sua casa paga o sorvete de amanhã!



Os dois dispararam pela rua às gargalhadas, sem parar quando uma velha com sobrepeso olhou feio para eles em desaprovação.



 



Depois de voltar para casa e tomar um bom banho (sob os olhares intrigados de Emily), Sarah se dirigiu para a parte dianteira da casa, onde vivia a “Vossa Majestade a Imperatriz” Sra. Newell com seus dois rebentos. Bateu à porta e esperou no corredor. Um minuto depois, Steven apareceu. Era o caçula dos filhos biológicos, estando com seus treze anos. Tinha os cabelos muito ruivos característicos e olhos castanhos maliciosos. Vivia quebrando coisas em cima de um skate surrado e carregava aquela atitude de “badboy” que ninguém aguentava por muito tempo.



Ele sorriu quando viu Sarah.



- Olha se não é minha irmãzinha esquisita! – exclamou com gosto – O que você quer?



- Quero falar com a mamãe. – pontuou a garota. Os olhos de Steven se estreitaram.



- Ela não é sua mãe. E não tem tempo para você. Vá embora.



Sarah olhou feio para ele. Não conseguia entender como Steven podia ser filho da Sra. Newell, que era tão boa. Ela podia ser negligente e ter um complexo de grandeza, talvez, mas era uma pessoa de bom coração.



- Steven – chamou alguém de dentro – Quem é que está à porta? Diga que entre logo!



Era a voz da Sra. Newell. Sarah olhou para seu querido irmão e sorriu, triunfante. Pigarreou teatralmente e entrou, deixando-o parado na entrada. Seguiu por um corredor decorado com muito veludo que desembocava em uma sala de estar lotada de móveis e aquecida demais para uma noite de verão. A Sra. Newell estava sentada em uma das poltronas fofas enquanto mexia no notebook e olhou pra cima quando a garota entrou.



- Sarah! – surpreendeu-se ela, deixando a tarefa de lado – Sente-se. Fique à vontade.



- Obrigada – disse e se sentou longe da mãe, que soltou um muxoxo de impaciência e se mudou para o lugar ao lado da menina.



- Você está maior a cada vez que olho pra você! – disse ela e riu – Cadê minha menininha franzina que gostava de passar cola nos tênis dos garotos?



- Mudando, espero – brincou Sarah, ao que a mulher riu com gosto.



- Ainda tem a mesma língua afiada. – seus olhos faiscaram – Vou pegar um suco para você, querida. Não demoro.



Ela saiu em direção ao cômodo da direita ao mesmo tempo em que Steven vinha para dentro. Ele passou, fingindo que a garota não estava ali, e ligou a TV num dos programas de auditório que Sarah mais odiava. Baseava-se em mulheres rebolando em roupas muito curtas e piadas que ela não entendia, mas que sabia serem machistas e de péssimo gosto. Steven gargalhava.



Nesse momento, a porta da frente bateu com força. A garota se levantou de um salto, assustada, indo ver o que era. Uma coisa sólida se chocou contra ela no meio do caminho, quase derrubando-a no chão.



- Sai da minha frente, pirralha! – rosnou alguém. Joanne.



Ela entrou na casa como um furacão e se jogou no sofá onde Sarah estivera, cruzando os braços e fechando a cara. Joanne estava sempre emburrada. Gritava com a Sra. Newell quando não conseguia alguma coisa ou quando não ganhava a quantidade de dinheiro que gostaria (ou seja, sempre) ou quando era proibida de sair com as amigas. Também não havia a palavra “Sarah” em seu vocabulário, apenas “pirralha”. Uma gentileza reservada a ela e a mais nenhum órfão.



Tinha dezesseis anos, cabelos ruivos e longos, olhos castanhos, algumas sardas no rosto e aparelho nos dentes. Tinha também uma ou outra espinha que a deixavam neurótica. Sarah costumava rezar para não ficar com o gênio que nem o dela na adolescência (essa era a explicação da mãe para as oscilações de humor).



Enquanto a garota olhava Joanne como se fosse algum tipo de alienígena, a outra se virou e a enfrentou.



- Tá olhando o que? – cuspiu.



- Suas espinhas aumentaram. – respondeu simplesmente. Joanne levou as mãos ao rosto na mesma hora. Voltou sua atenção à Sarah e lhe jogou uma almofada ao sair correndo para o quarto, rosnando.



Sarah ficou rindo baixinho. Não gostava de fazer aquelas coisas, mas bem que ela merecia. Steven desviou os olhos da televisão e a espiou.



- Você não sabe com o que está se metendo, cutucando a onça desse jeito, pirralha. – disse, como se esperasse soar sábio. Sarah se limitou a sorrir.



- Avise sua mãe que vou embora, o toque de recolher já foi. – e saiu.


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