Prólogo...



Helen Newell sentiu mais uma vez aquela curiosa sensação na nuca, como se estivesse sendo observada. Vinha sentindo o mesmo com certa frequência nos últimos três dias e começava a ficar paranoica. Espiou por cima do ombro e, como de costume, não avistou ninguém. Perguntou-se pela décima vez se não estava imaginando coisas, mesmo que ficar se preocupando com coisas irreais não fosse um de seus defeitos.



De qualquer modo, acelerou o passo. Chapinhou uma poça e se retesou ao sentir a água fria atingi-la. Sem gastar mais que um pensamento na provável mancha de lama que ganhara na roupa, continuou sua caminhada rápida pela rua deserta. Viúva aos vinte e cinco anos, ela criava os dois filhos sozinha trabalhando como caixa de um supermercado nos dias de semana e como recepcionista em um restaurante local nos finais de semana – e, querendo ou não, tivera que gradualmente abdicar da vaidade.



A pequena família Newell morava em um bairro simples afastado do centro da cidade, onde a maioria dos vizinhos se conhecia e todos fofocavam uns dos outros. Não podia pedir uma vida mais normal e, depois de tudo o que já havia lhe acontecido, era para o melhor.



Era uma sexta-feira à noite e Helen atravessava a rua úmida e silenciosa, o barulho dos saltos ressoando pelos becos. Trouxe o casaco mais para perto do corpo e se desviou dos buracos na calçada ao se aproximar de casa. Viu a vizinha mexer nas cortinas da janela e espiar, curiosa, sem perceber que fora flagrada. Helen bufou, acostumada àquilo.



Mal notando o poste de luz piscando, alcançou o batente da porta da casinha maltrapilha com um suspiro de alívio e a sensação gostosa de dever cumprido. Girou a chave na porta de madeira grossa e já ia entrando quando percebeu um movimento pelo canto do olho. Encarou com suspeita os arbustos altos que separava sua casa da do vizinho, mas não avistou nada fora do comum. Soltando um suspiro penoso, entrou em casa – muito provável que fosse outro xereta. Ou então um gato. Com certeza um gato, forçou a si mesma a acreditar.



Trancou a porta atrás de si e se sentiu bem de imediato com o calor emanado da lareira da sala. Ouviu um tropel de passos e só teve alguns segundos para largar a sacola com o jantar antes de Steven se atirar em seus braços.



- Mamãe!



Ela riu e abraçou o filho de dois anos, que já usava pijama e pantufas. Atrás dele vinha uma Joanne ofegante, quase tropeçando com suas pernas curtas para acompanhar o irmão. Ela sorriu quando viu Helen e foi participar do abraço.



- Oi, crianças – sorriu.



- Você demorou muito hoje, mamãe. – disse Joanne, com sua postura um pouco madura demais para a idade de cinco anos.



Eles quebraram o abraço e Joanne agarrou a sacola cheia que trouxera.



- Trouxe pirulito também? – indagou enquanto remexia dentro. Helen sorriu e afastou as compras das mãos da filha.



- Só depois do jantar. Quem é que vai querer macarronada?



- Eu! – esganiçou-se Steven. Saiu correndo para a cozinha e um momento depois ouviu-se o arrastar da cadeira no piso.



Joanne desistiu da sacola e foi atrás do irmão.



- Vou ajudar ele a subir na cadeira – disse.



Helen desejou ter o marido ali com ela naquele momento, que pudesse ver como estavam crescendo rápido. Nunca soube ao certo como Arthur acabara morto naquela noite e não tinha muita esperança de saber um dia. Tudo o que lhe contaram foi que o encontraram morto um beco do centro da cidade. Não havia suspeitos nem motivo do crime. Nada. E esse foi o fim. Sem mais investigações.



Ela suspirou profundamente e espantou o pensamento. Já haviam se passado dois anos desde o acontecido e tinha superado tudo aquilo. Levou a sacola de compras para a cozinha e deixou o macarrão cozinhando enquanto subia para o banho.



Despiu-se devagar, tomando um tempo para si. Recostou-se na parede fria de ladrilhos e suspirou pesadamente desejando que pudesse ser transportada para uma vida fácil e confortável, que pudesse prover mais para os filhos. Às vezes, em noites cansativas como aquela, se sentira bem lembrando do tempo em que ainda vivia com sua família e de sua boa infância, quando tudo era mágico. E então se recordava de que foram eles os que a renegaram.



Levantou a cabeça e encarou a pessoa no espelho. Gostava de pensar que estava bem para alguém de vinte e cinco anos que já tinha tido dois filhos e sofrido tanto. Sempre fora magra, mesmo sem tempo para exercícios. Tinha os cabelos incrivelmente ruivos, olhos verdes e sardinhas espalhadas por todo o rosto, com um concentrado delas na parte superior do nariz. Possuía a beleza clássica das famílias de alto nível, mas também o carma que elas carregavam depois da falência.



Suspirando de novo, entrou na banheira. Após um banho rápido, desceu e terminou o jantar simples. Com a família saciada, colocou as crianças para dormir e foi para o próprio quarto.



Deitou-se na cama de madeira barata e suas costas cansadas a agradeceram na hora. Pensou na pilha de roupa para lavar no dia seguinte, gemeu mentalmente e tentou chamar a inconsciência, ignorante ao fato de que alguém vigiava a casa com atenção, invisível aos olhos destreinados dos Muggles.



 



 



A alguns quilômetros de distância da casinha amarela dos Newell, um homem andava por uma rua sombria, o rosto coberto pelo capuz e a barra da longa capa se arrastando pela calçada. Parou em frente a uma das várias casas imponentes do lugar e esperou.



Um minuto depois, um rosto moreno apontou para fora da porta. Ele avistou o encapuzado e fez sinal para que fosse até lá.



- Achei que não abriria nunca – disse para o moreno aos sussurros quando se aproximou do batente – Por que demorou tanto, Denis?



- Entre – retrucou Denis, sério – Receio que as coisas não tenham saído bem como planejamos.



O homem de capuz passou pelo batente e entrou num hall em trevas. Denis trancou a porta atrás deles e não disse nada.



- De quem é essa casa, afinal? – indagou o homem um momento depois. Com os olhos acostumados à escuridão, pôde ver que era um lugar bem decorado, com móveis caros.



- De uma família Muggle que está de férias – respondeu Denis e se dirigiu para outro cômodo. O primeiro homem o seguiu com um misto de receio e curiosidade. Começava a se preocupar com o tom misterioso do amigo. Adentrou a biblioteca dos Muggles e parou de chofre quando viu o que Denis tomava nos braços.



- Espere. É ela? O que ela está fazendo aqui com você? Onde está Adhara? Ou Roger?



Denis acomodou melhor o embrulhinho de cobertores brancos nos braços e suspirou. Talvez fosse impressão do primeiro homem, mas parecia que ele tentava ocultar o rosto.



- Denis? – ele insistiu, o tom seco.



Ouviu-se um fungar incomum vindo dele e o outro começou a se preocupar. Nunca vira Denis chorar e não achava que um dia veria.



- Como eu disse – tornou Denis com voz embargada – tivemos algumas complicações que não estavam nos planos. Receio que os resultados não foram os esperados. – Ele apertou o embrulhinho mais junto de seu corpo – Adhara foi até a casa dos Schaffor, Roger com ela... e também Otto.



- Cauldwell? Mas pensei que você fosse com ela e Roger e Cauldwell distrairia os Comensais que estavam lá. Eu topei com pelo menos dez e os apaguei. Não acho que sobraria muita coisa para ele fazer. Você sabe, ele... bom, costuma entrar em pânico.



- Sim, mas acontece que três me encurralaram e eu tive de manda-lo para ajudar. Eu não ia ter tempo de lutar com eles e ainda ir para o meu posto a tempo. Veja. – ele apanhou a varinha e a fez se acender na ponta, iluminando o pedaço do quarto em que estavam, assim como seu rosto.



A sala caiu em um silêncio pesado. Denis estava deformado. Havia vários cortes em seu rosto, um particularmente grande que ia da têmpora esquerda e terminava abaixo da bochecha direita. Magia Negra. Ficaria com elas para sempre.



- Você tem razão, Cauldwell entra em pânico. – continuou Denis, meio pesaroso – Sempre entra em pânico quando sente muita pressão. Não foi diferente dessa vez e não sei o que aconteceu ao certo, mas alguma coisa saiu tremendamente errada. Eles o pegaram e levaram para Deus sabe onde. Eu cheguei bem a tempo de ver acontecer, mas não o suficiente para fazer algo a respeito. E Adhara... Adhara está... – ele respirou fundo – Eu matei hoje. Foi um momento de fraqueza, não tive escolha... Matei um dos que me encurralaram. Foi uma luta difícil e eu tinha que sair de lá! Fui para a casa dos Schaffor o mais rápido que pude, mas... já era tarde. Estava uma bagunça, só destroços. Eles todos tinham fugido e encontrei Roger nos escombros, ainda sobre o bebê, protegendo-o. Cheguei para tira-lo dali, mas estava...



Ele engoliu em seco e abaixou a cabeça. O outro deu dois passos à frente e o agarrou pelo ombro.



- Diga-me, Denis! O que houve?! – exasperou-se.



- Ele estava morto. – terminou como se estivesse carregando o mundo sobre os ombros.



O homem não reagiu. Continuou fitando o amigo, sem realmente enxergá-lo. Passaram-se minutos de silencio em que nenhum dos dois sabia exatamente como proceder, até que Denis arriscou.



- Sinto muito, mas eu não...



- Não. – cortou-o o amigo.



- Eu só queria...



- Não – repetiu – Ele não está morto. Não pode estar. Não pode. Não meu melhor amigo. Não.



Ele caiu sentado em uma das cadeiras estofadas, o capuz lhe cobrindo ainda mais as feições.



- Nós sabíamos do risco – tornou Denis – Também estou arrasado, mas precisamos do plano B. – ele pausou, parecendo tomar coragem – Tem mais.



O outro ergueu a cabeça, esperando.



- É Adhara. Não está em nenhum lugar. Já tentei de tudo e não posso encontra-la. Acho que eles a têm, não iria embora por vontade própria, ela se preocupa com esse bebê mais do que com a própria vida. Eu...



O homem de capuz se levantou de uma vez, o rosto em pedra e sem demonstrar qualquer emoção. Fitou o bebê nos braços de Denis e se obrigou a pensar nas consequências boas daquela noite.



- Como ela está? – indagou em um fio de voz.



Denis sorriu, hesitante, e lhe entregou o embrulhinho.



- Bem.



- E Marcus?



- Inteiro. Está rastreando Otto e Adhara enquanto conversamos.



- Bom. Também procurarei por ela. Prometo que viro esse planeta de cabeça para baixo, mas a encontrarei. Agora precisamos terminar o que ela começou.



Denis aquiesceu brevemente, sem conseguir conter um suspiro.



- Grace está a postos? – ele indagou.



- Sim. Mandou uma mensagem um pouco antes de eu vir pra cá. Já podemos ir em frente



- Certo. Você quer que eu...



- Não, eu faço. – apertou o bebê mais junto de si e se dirigiu para a porta, sua postura anormalmente rígida. Denis mal teve tempo de se despedir e o amigo já havia ido.



 



 



Helen Newell soltou um berro que, tinha certeza, acordara a vizinhança inteira.



Não conseguira dormir, mas quando duas figuras se materializaram no meio de seu quarto, achou que estivesse sonhando.



Eles deram um passo à frente e a luz do abajur os iluminou. Um era bem alto e tinha o rosto coberto pelo capuz de uma longa capa negra. Ele se agigantava sobre ela e a intimidava.



O outro vulto era uma mulher pequenina de cabelo castanho avermelhado cortado curto, todo desfiado. Helen a achou ao mesmo tempo engraçada e fascinante. Tinha no máximo 1,60 metro de altura, magra, com mãos pequenas, nariz pequeno, boca pequena... Quase parecia uma menina.



- Mas o que...? – começou, sem saber como continuar.



- Olá, Sra. Newell. – disse o homem com voz grave. Helen se afastou dele o máximo que pôde, provavelmente tentando se achatar na cabeceira da cama.



A mulher pareceu perceber o receio dela e puxou o homem para trás, tomando seu lugar.



- Está tudo bem, ninguém aqui quer te machucar. – disse numa voz gentil – Sou Grace Wallace e nós precisamos conversar sério, Helen Newell.



- E seria melhor se você não ficasse achando que vou roubar sua casa. Facilitaria as coisas – completou o homem, ganhando um olhar cortante da sua colega.



- E quem é ele? – disse apontando para o homem.



Grace Wallace estava prestes a responder quando foi cortada por uma voz ríspida.



- Alguém que não interessa a você no momento.



- Mas quem... O que são vocês? – indagou Helen, tentando relaxar, sem sucesso.



- Achei que já soubesse o que somos. – tornou a figura encapuzada - Já se esqueceu de tudo?



- Eu... AH! – exclamou ela, finalmente entendendo – O que bruxos fazem na minha casa? Não tenho nada a ver com vocês e nem quero ter!



Grace pigarreou alto e o homem veio para perto novamente.



- Quero que saiba que se você aceitar o que vou oferecer, irá ajudar, e muito, o mundo da Magia. Você vai receber dinheiro Muggle e bruxo para as despesas e ganhará proteção para você e seus filhos.



- N-não estou interessada... – balbuciou, ainda se sentido reprimida pelo homem – E mesmo que estivesse, não entendo o que quer que eu...



- Manterá contato comigo – continuou ele como se ela não tivesse falado – e não revelará os segredos do nosso mundo até a carta de Hogwarts vir em mãos, entendido?



- O que?



- É melhor assim. – emendou a menina-mulher Grace – Acredite. Estamos falando em criar uma criança bruxa.



Helen arregalou tanto os olhos que não se surpreenderia se saltassem das órbitas.



- Criar uma criança? Para vocês?



Helen percebeu que começava a tremer, partes de um passado tortuoso vindo em flashes por sua mente enquanto encarava os desconhecidos e, de certo modo, não tão estranhos assim. Tentou relaxar um pouco. Nada daquilo fazia sentido!



- Não temos muito tempo, então precisamos que colabore e entenda. Você terá todo o suporte necessário, como já lhe disse – o homem parecia formal demais, como se não lhe agradasse muito deixar uma criança ali.



- Não é essa a questão. Quero saber por que. Por que eu?



- Não vão procurar a criança com você. Você é qualificada porque sabe o básico do nosso mundo e não é ignorante de toda a situação. Não terá um colapso quando chegar a hora dela saber quem é.



- Mas ainda não compreendo...



- Só o que precisa saber é que ela não estaria segura com algum de nós. – Grace a cortou – E ela não pode ser exposta de maneira alguma até estar pronta para o mundo bruxo, aos onze anos, Helen. Tudo deverá ser explicado a ela depois. Está me entendendo?



- Sim... – ela começara a se interessar pela tarefa. Evidentemente, era uma criança especial, que precisava ser protegida. Alguém deveria fazer isso e por que não ela mesma? Eles a tinham escolhido. Ela podia fazer isso. – E onde está a criança?



Grace Wallace encarou os sapatos quando o homem tirou o braço de dentro das vestes. Levava consigo um embrulhinho de pano branco. Com um pouco de hesitação, foi até Helen, deixou-o em seus braços e voltou para perto da colega. Helen olhou para aquela pessoinha ao mesmo tempo receosa e admirada.



- Mas... é apenas um bebê. Tem apenas dias!



- Dez dias. – explicou Grace – Nascida dia 21.



- Seu nome é Sarah Schaffor. – trovejou novamente o homem – Boa sorte.



Ela se assustou à menção daquele nome e os encarou de novo, de repente em alerta.



- Espere... você disse Schaffor? Ei!



Mas no instante seguinte se foram, deixando um saquinho de dinheiro sobre a cama. Helen ficou olhando o vazio deixado para trás, esperando, talvez, receber alguma luz indicando o que tudo aquilo significava. Olhou com receio para o embrulhinho. Era mãe de novo. Não tinha certeza como se sentia, se receosa, alegre ou admirada. Talvez tudo isso ao mesmo tempo.



Ali, sozinha, com Sarah nos braços, curtiu o momento. Ela estava tão quieta e quentinha em seus braços que Helen se assustou quando a neném despertou, se mexendo levemente e abrindo grandes olhos azul-céu. Helen suspirou. Era tão linda, tão inocente. E, ao mesmo tempo, tão perigosa.



Sarah piscou seus olhinhos claros para Helen, como se a conhecesse, fazendo-a sorrir novamente. Sim, era uma criança especial.


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