Sobre a Pedra Fria



Água e Vinho



Capítulo Vinte e Nove – Sobre a Pedra Fria

Antes mesmo que eu abrisse os olhos, ao retomar a consciência, senti uma dor das costas absurda, e meu braço esquerdo estava mole, como que sem energia alguma. Eu estava provavelmente jogada sobre o chão de pedra, de qualquer jeito, mas não podia imaginar onde. Abrir os olhos não me foi de grande ajuda também.

-Ora vejam, se não é a Bela Adormecida – ouvi a voz de Black resmungando sarcasticamente, quando pisquei e comecei a me sentar.

Olhei em volta rapidamente, tentando captar o lugar: era uma masmorra clássica, com aquelas barras que lembravam cadeias trouxas e chapas de metal, sobre as quais Black e eu na verdade estávamos deitados. Quando me sentei, senti uma fisgada brusca nos meus pulsos às minhas costas e notei que estava amarrada.

Calma aí... Que eu me lembre eu estava em Hogwarts, brava por Potter estar agarrando outra... De repente, eu apago e abro os olhos numa masmorra medieval?

-Onde... – balbuciei feito uma idiota, olhando em volta. O ar era pesado e eu podia ver um pedacinho do céu estrelado por um retângulo de poucos centímetros, que alguém ousaria chamar de janela.

-Pois é, Evans – a voz de Black tinha tanto sarcasmo e raiva misturados que eu quase não conseguia reconhecê-lo. Ele estava sentado sob sua chapa, também com as mãos amarradas e uma cara mais do que amarrada. – Seja bem vinda ao subsolo da Mansão Black.

Acho que minha reação a isso foi algo realmente assustador, mas não tenho certeza; mais tarde Black me disse que eu tinha arregalado os olhos e murmurado coisas sem sentido, entretanto eu só me lembro das engrenagens do meu cérebro processando a informação. Por Merlin, Hogwarts era absurdamente longe da Mansão Black, de acordo com tudo que eu sabia!

-Black, essa então é... Oh, Merlin... – eu fiquei subitamente sem fôlego, peço que relevem isso – Esta é sua casa?

-Para os padrões de Lílian Evans, foi uma conclusão bem lenta – resmungou ele.

Bufei, contrariada, mas ainda assim não conseguia me controlar. Droga, o que eu estava fazendo ali? Eu tinha sido mesmo muito burra! Sair daquela forma pelos corredores... Mas pensando bem, como eu poderia adivinhar, bom Merlin? Todas as minhas outras rondas haviam sido maravilhosamente tranqüilas... Antes que eu pudesse recomeçar a perguntar qualquer coisa, ouvi passos no corredor além das barras de ferro; passos rápidos e firmes, ressoando no chão gelado de pedra. Logo, um perfil denunciou-se, coberto por uma capa enorme e bem maior do que si mesmo, mas inconfundivelmente familiar.

Bellatrix Black estava nos olhando com uma expressão de triunfo e malícia. Demorei alguns segundos para registrar a informação.

-Ora, se não são os nossos convidados despertos... – ela falou, e eu me lembrei nitidamente da mesma expressão sendo usada pelo outro Black dentro da cela, havia pouquíssimo tempo. – Oh, espero que estejam sendo bem tratados...

-Maravilhosamente – ele retorquiu, irônico até o último fio de cabelo. – O serviço de quarto é realmente fantástico. Entretanto – ele fez uma pausa, respirando fundo e se controlando. – Evans e eu adoraríamos saber por que fomos trazidos de uma forma tão... repentina... Para esse calabouço adorável.

Bellatrix Black riu friamente, eu me forcei a ficar ereta e não demonstrar nenhuma forma de medo.

-Fiquem tranqüilos e descansem... – ela sibilou, tateando num falso vagar as mãos pelos bolsos. – Seu anfitrião logo dirá para que vão se encontrar com ele... Acho que ele tem alguns assuntos a tratar... Entendem? Apenas alguns conselhos... Coisas que andam fazendo e que não estão o ajudando muito...

Ela tirou as mãos dos bolsos e eu ali vi, para minha aflição, as varinhas minha e de Black. A garota odiosa girou nossas únicas armas entre os dedos, como se fossem instrumentos de malabares.

-E é claro que, por segurança, tivemos que tirar algumas coisinhas de vocês... – a voz dela me arrepiou até a nuca, e eu comecei a desejar com todas as minhas forças que ela fosse embora. – Para convencê-los a esperar o nosso mestre estar disposto a falar com vocês...

Virou-se num movimento lento e recomeçou a andar o caminho de volta aonde quer que ela estivesse antes.

Uma vez sem a presença dela, o meu cérebro recomeçou a trabalhar e a processar informações. Depois de analisar onde eu estava, tudo que eu tinha, as possibilidades e evidências cínicas gritantes no que ela acabara de dizer eu só podia chegar a uma conclusão lógica...

-Estamos mortos, Black.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

Pode ter soado terrivelmente dramático, mas eu não faltara com a verdade. Nós estávamos amarrados, sem varinhas, presos num calabouço, numa mansão cheia de Comensais da Morte até o último canto empoeirado, provavelmente com... com o líder deles... Pronto para nos matar, assim que tivesse vontade. Francamente, você conseguiria sentir alguma esperança numa situação daquelas?

-Ah, cale a boca, Evans – Black estava se contorcendo todo em sua chapa de metal, a partir dos pulsos atados. Gastou algum tempo fazendo isso, até que finalmente conseguiu ficar de costas para mim e de frente para a parede a qual suas mãos estavam presas. Ficou então se mexendo e tentando pegar algo nos bolsos, que eu não pude ver muito bem de onde estava.

-Que diabos você está fazendo?

-Se você parar de falar idiotices um pouco, talvez eu consiga salvar as nossas vidas – sibilou ele, com raiva. No momento seguinte, ele tirou um objeto de uma cor próxima do marrom, feito de madeira fosca. Logo depois, para meu imenso alívio, vi uma lâmina despontando dali.

-Black... – sussurrei, mal acreditando em minha sorte.

Ele passou alguns instantes numa árdua batalha contra as cordas; num glorioso momento, eu o vi erguendo os braços.

-Ao menos uma das lições do Aluado eu aprendi – resmungou ele. – Prevenção é a solução.

-Quando o Remo disse isso? – perguntei, estranhando.

-Na verdade, não tenho certeza se a frase é dele. – admitiu o outro, com seu melhor sorriso maroto. – De qualquer forma, ainda bem que eu segui a regra. – Levantou-se devagar, espiou a grade de perto, examinando se haveria alguém a caminho, e depois correu na minha direção.

Em pouco menos de um minuto, eu também tinha os braços livres, e comecei a massagear os pulsos enquanto pensava em quantas mais possibilidades aquele maravilhoso canivete denunciava para nós. Antes que eu dissesse qualquer coisa, Black notou meu olhar na arma.

-Isso é bem mais do que parece – ele disse. – Se nenhum deles resolver nos vigiar agora, conseguiremos estar fora da mansão antes que possam dizer “sangue ruim”... Ops, desculpe Evans, não quis te ofender.

Revirei os olhos.

-O que pretende fazer com isso? – perguntei.

-Fique ali, preciso de algum tempo a sós com a fechadura dessa cela – Black sibilou, me empurrando para o outro lado da pequena masmorra. Fiquei encostada nas barras, matutando comigo mesma. – Isso deve abrir a porta em três... dois...

-Shh! – exclamei, quando ouvi passos. – Volte para a chapa! Tem alguém vindo!

Corremos desabalados e eu aterrissei arfante sobre o lugar onde despertara ainda há pouco, rezando para que não notassem os nossos rostos afogueados. Meu coração martelava loucamente, e eu sentia como se pudesse infartar a qualquer momento. E pensar que a pior parte ainda nem havia chegado...

No momento seguinte, um perfil curvo, de cabelos nos ombros e um nariz absurdamente grande se denunciou do lado de fora da cela. Claro que Snape não podia ficar de fora daquilo...

-Ora... – Black disse zombeteiramente, por cima da respiração acelerada. – Agora creio que o circo esteja completo... Você sempre fez mesmo o tipo vingativo, não é, Ranhoso?

Ah, Merlin, pensei exasperada, o que ele está pretendendo com isso? Caso tenha esquecido, Black, ELE está no comando...

Mas Snape não ficou incomodado com a provocação de Black, e tampouco me assustei com isso.

-Eu sempre soube que o desespero enlouquece as pessoas... – ele retrucou, sem pressa nenhuma, enquanto Black fechava os punhos ocultos de Snape. – Você não teve poucos avisos para nos deixar em paz, Black... Oh, talvez esteja na hora de pensar em algo melhor para designar você... Porque Bellatrix e Narcisa realmente detestam ser lembradas de que pertencem a mesma família que uma escória como você...

Black estremeceu violentamente, e eu sabia que o maior desejo dele naquele instante era pular no pescoço de seu maior rival da escola. Mas para alívio geral ele se lembrava que não estávamos ali discutindo briguinhas de escola.

-Elas sabem muito bem que tampouco gosto de fazer parte dessa família maldita! Tanto é que nunca mais vou voltar a morar nessa casa!

-Ah, temo que essa sua ameaça realmente se cumprirá. – Snape deixou um sorrisinho muito fino perspassar sua expressão. – Nunca mais você irá morar nesta casa... Não morará aqui e em nenhum outro lugar deste mundo...

Que droga!, exclamei mentalmente. Aquela troca de provocações não nos levaria a lugar algum. Eu era seguramente a mais racional e mais equilibrada presente ali. Tinha que usar algum artifício para fazer Snape se sentir inseguro... Sim, eu teria que fazê-lo ver que aquele não era o lugar dele...

Joguei a minha expressão mais desesperada no rosto (coisa essa que não foi nada difícil de fazer) e ergui os olhos na direção de Snape.

-O que vão fazer com a gente? – perguntei, aparentando o típico estado do refém quebrantado.

Snape olhou rapidamente pra mim. Não sei dizer o que passou pela cabeça dele. Logo depois, o sorriso malicioso voltou ao seu rosto.

-Pensei que Bellatrix já tivesse dito mais que o suficiente. – ele sibilou em retorno. Mantive os olhos baixos para não tentar passar qualquer mensagem a Black. – Mas agora percebo que andaram se metendo nos assuntos do Lord das Trevas sem nem mesmo ter uma idéia clara do poder dele... Pensam que somos apenas nós que o seguimos? – Snape bufou desdenhosamente então. – Não... Os bruxos mais poderosos em que puderem pensar já reconheceram a grandeza da nossa causa. Você – e olhou inquisitoriamente para mim, como se eu fosse uma criminosa – não passa de lixo. Não é mais do que uma anomalia saída da escória dos trouxas idiotas que passam suas vidas inteiras sem conhecer uma ínfima parte da verdadeira magia.

-Snape... – murmurei, quase num sussurro. – Eu não tenho culpa de ser uma bruxa! Eu sempre fui! Ninguém escolheu isso!

Black arregalou os olhos para mim, enquanto até eu própria aceitava meu papel frágil naquela situação.

Nosso vigilante sacudiu a cabeça.

-Você não tem o direito de infestar o nosso convívio com seus modos tolos. Os trouxas sempre serão parvos demais para compreenderem os mecanismos mágicos. O Lord das Trevas vai criar um mundo onde apenas aqueles que sejam dignos convivam no mundo. Os trouxas apenas nos sufocam com suas leis. Por que temos que viver escondidos, como se fôssemos nós os anormais, se sempre tivemos poder o suficiente para destruir os trouxas e instituir a ordem?

Eu notei vagamente que Snape não estava muito equilibrado. Afinal, se eu era escória, para quê dizer tudo aquilo? Seria como explicar a Teoria trouxa da Relatividade para um rato de laboratório. Será que eu tinha alguma chance de fazê-lo enxergar... Eu não estava me sentindo bem para um joguinho psicológico. Mas notei que seria o único modo de ganhar tempo.

-Os bruxos sempre foram superiores aos trouxas, muito bem – falei, devagar, pensando no que dizer. – E foi dessa mesma forma superior que eles toleraram as bobagens daqueles não-bruxos, que precisavam de ilusões nas quais se sustentar... Você não vê que os bruxos sempre toleraram os trouxas por questões de pena? É só mais um modo de mostrar o quanto eles são superiores... Se os trouxas forem exterminados, isso não exigiria que os bruxos se rebaixassem ao nível deles, que vivem de guerras entre si mesmos por coisas tão irrelevantes?

O outro não disse nada. Nem Black. Por um rápido instante. Depois Snape desviou o olhar de mim.

-Trouxas são inúteis. Se ao menos tivessem serventia em estarem vivos. Mas não. Eles impedem o crescimento do poder bruxo, e por isso serão todos exterminados. Alguns já foram mortos, a título de exemplo. Mas como vocês realmente não parecem dispostos a se render... O Lord deu chances a você, Evans, não pense o contrário. Ele tem vigilantes. Em toda a parte. Ele sabe de cada um que ameaça o seu poder. E já chegou a hora de acabar com isso.

Estremeci inteira. Não podia acreditar que aquilo fosse verdade. Por que Você-Sabe-Quem estaria me observando? E se era assim, deveria haver muito mais pessoas ali, naquela cela, comigo e com Black. Este, por sua vez, me observava atônito. Acho que ele também estava se dando conta da loucura que tomava posse daqueles bruxos que estavam prestes a explodir a maior guerra do mundo bruxo de todos os tempos.

Eu não conseguia acreditar que ia morrer ali... Não, simplesmente não dava pra aceitar... Olhei de relance para o escudo da Grifinória em minhas vestes amassadas. Lentamente, senti lágrimas deturparem a minha visão, enquanto deixava mechas do meu cabelo grosso caírem para esconderem o meu rosto. Lembrei-me do que Dumbledore já dissera a respeito de Snape. Se algum deles ainda representava alguma esperança de voltar para o nosso lado, era ele.

Ergui a cabeça rapidamente.

-De que adianta ser um bruxo sangue-puro se tudo o que se faz da vida é uma grande farsa? Se as famílias são construídas por interesse em montar um anúncio de família feliz? Ao menos o meu pai não espanca minha mãe, Snape. Eles se amam! E eles são trouxas! – desisti de me controlar, e as lágrimas rolaram livremente. – Não é aqui que você vai conseguir poder pra se voltar contra o seu pai! Ele também é um Comensal da Morte, não é?

Os olhos dele se estreitaram, e Black encheu os pulmões de ar pra dizer alguma coisa, mas eu prossegui primeiro.

-Eu não sou culpada pela sua vida em casa ser uma droga, Snape! Nem nenhum trouxa, nem nenhum nascido-trouxa! O problema está nos próprios bruxos! E você não precisa afundar nos mesmos erros de sempre! – calei-me e baixei a cabeça outra vez. – Nos deixe ir embora, por favor... Saia daí enquanto você pode...

Snape me observou então com olhos estalados, provavelmente pensando em algo para dizer.

-V-vocês não podem ir embora... Eu fui designado para vigiá-los... – disse ele, e eu não soube se ele tentava convencer a nós ou a ele próprio.

Foi um tenso momento silencioso que se seguiu.

Black respirou fundo, denunciando suas mãos livres e enfiando-as dentro das vestes, novamente caçando alguma coisa.

-Você já ouviu tudo que era necessário – resmungou ele, sem olhar pra mim, e parecendo nervoso enquanto tirava um espelho das vestes. – Agora, se me der licença, eu não quero morrer...

Snape sacou a varinha e apontou-a para Black.

-Eu não vou deixar...

-Por favor – cortei, mesmo sem saber de onde surgira a inspiração de Black para um momento narcisista diante do espelho.

Snape ficou em silêncio, apontando a varinha ora pra mim, ora para Black, enquanto este último não se deixava atingir pela situação e segurava o espelho a centímetros do próprio rosto, chamando...

-Tiago Potter...

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