Capitulo 11



Capitulo 11

                                                          XXX--XXX


Não conseguia se convencer de que fora um erro, Hermione pensou na manhã seguinte, retocando cuida­dosamente o batom e olhando-se com severidade no espelho do banheiro do edifício da Granger Mídia, or­gulhosamente localizado no centro de Manhattan. Mas era. Claro que era. Como não poderia ser?

Ela fechou os olhos, enquanto as imagens da noite interior passa­vam pela sua cabeça, provocando-a, excitando-a nova­mente. Mal deram dois passos dentro do apartamento, antes de caírem nos braços um do outro, num intenso frenesi causado pela separação de algumas semanas. Fora uma confusão de bocas se encontrando, de mãos explorando, de roupas sendo arrancadas, e, por fim, a bênção de senti-lo dentro do seu corpo.


Arrepiou-se com a lembrança e sentiu o conhecido calor se espalhar pelo corpo. Harry era tão devastador em pensamento quanto era quando estava na sua frente. Talvez até mais. Não disseram nada. Só se deixaram mergulhar no êxtase, em cima do tapete persa que en­feitava a entrada do apartamento.


Depois, levara-o até o quarto, que dava para o Central Park, e através da janela as luzes de Manhattan cintilavam como labare­das que pareciam queimá-la por dentro, enquanto Harry beijava sua nuca e as costas, tirando o vestido de baile, os sapatos. Virara-a de frente, segurara-a pelos quadris e descera a boca até o centro do seu corpo, levando-a à loucura novamente. Havia gritado seu nome com selvageria e paixão e ficado surpresa por não quebrar o vidro das janelas.


V riu para a sua imagem no espelho, e o som da sua risada ecoou no silêncio do banheiro. Por que não conseguia tirá-lo da cabeça? Por que seu corpo exultava só de se lembrar dele? Por que estava presa e disposta a gostar do que a fazia sofrer mais? Pensou que precisava se concentrar. Ajeitou os cabelos e veri­ficou se a maquiagem que colocara estava discreta o suficiente para demonstrar seriedade, e não notorieda­de


. As roupas que vestira serviam ao mesmo objetivo: uma saia lápis marrom e uma blusa creme, um cinto, e sandálias muito altas, amarradas nos tornozelos. Pare­cia mais uma mulher de negócios que uma socialite em busca de atenção, mas tinha certeza de que as pessoas veriam apenas o que queriam. Apostava nisso.


— Por que vai à reunião de diretoria da Granger Mí­dia? — perguntara Harry na noite anterior, quando esta­vam jogados na cama, saciados. Por um instante, ficara muito tensa. — Pensei que esse tipo de coisa a aborrecia — ele continuara num tom de curiosidade.


Abrira a boca para dizer algo que o distraísse, como sempre, mas hesitara. A única luz que havia no quarto era a claridade pálida que vinha de fora. Estavam no escuro, deitados lado a lado, mas pensara que nunca haviam estado tão afastados. E mesmo assim... Ele não falara em tom de censura, de desdém. Falara com cuidado.


— Não sei se será aborrecido ou não — havia dito Hermione calmamente. — Nunca fui a uma dessas reu­niões. O meu pai e Theo sempre preferiram se mostrar condescendentes e me manter distante, porque gosta­vam de controlar as coisas. Ficava feliz por me livrar. — Sentira o corpo de Harry, esticado ao lado, e pudera perceber, mesmo de olhos fechados, que olhava para ela com atenção.


Imaginara o que ele estaria procurando, o que espe­rava ver. Ou ela tolamente desejava que quisesse ver alguma coisa sob a superfície? Virara-se para ele e, ape­sar da obscuridade, conseguira ver seu rosto, o brilho dos olhos, a silhueta sólida e reconfortante. Era de madrugada e o ambiente se tornara acolhedor, apropriado para confidencias. Íntimo. Um instante fora do tempo na vida dos dois. Tinha sido o que ela gostara de pensar.


— Meu pai quer que eu passe minha parte da empresa para ele. — Hermione soltara uma das suas melhores ri­sadas, clara e cristalina. Falsa. O som ecoara no vidro da janela, parecera se espalhar pela cidade, e se arre­pendera. — Aparentemente meu pai acha que eliminar minha ligação com a Granger Mídia será o mesmo que eliminar os laços que tem comigo. O que, consideran­do a obsessão que mantém com a empresa, deve ser verdade. — Ela suspirou e mudou de posição. — Está encantado com essa perspectiva.


Harry soltara um suspiro, e ela se preparara para um dos seus ataques. Havia esperado que a arrasasse como sempre, Diria que aquilo não passava de uma bestei­ra comodista? Mas ele se virará de lado, apoiara-se no braço e a encarara.


— Encontrei meu pai no dia de Ação de Graças — fa­lara Harry em voz baixa, afastando distraidamente uma mecha de cabelos do rosto dela, levando-a a sentir um nó na garganta. — Na verdade, é um dos motivos pelos quais odeio esse tipo de comemoração. Durante todos estes anos, tinha conseguido esquecer por quê. Em meio aos costumeiros sermões do meu avô, precisei sentar e ver meu pai beber até a última gota de uísque que havia em casa, e, depois, apalpar a esposa quase adolescente na mesa do jantar. — Emitira um som curto e seco de­mais para ser uma risada. — Para ser sincero, não sei se faz idéia de que eu existo. Duvido que se lembre de que temos uma relação para romper.


E então, algo acontecera entre os dois, no escuro. Algo intenso e profundo que parecera se expandir dentro do peito de Hermione, fazendo com que se sen­tisse muito insignificante e, ao mesmo tempo, muito importante. Prendera a respiração e não fora capaz de desviar os olhos de Harry. Queria se abrir com ele até que todos os problemas e o sofrimento desapareces­sem, como se tivesse o poder de fazer com que isso acontecesse.


— O que vai fazer? — perguntara de forma branda. Respeitosamente, ela pensara, assustando-se por não se reprovar por tamanha presunção.


Mas fora demais, e ficara com medo de levar mais longe aquele momento de comunhão em que não con­fiava inteiramente. Por mais que tivesse vontade de desabafar e acreditar que a seguraria, não sabia se Harry iria querer. Também se apavorara ao perceber que era isso que desejava, apesar de ter sido sozinha por tanto tempo.


 Não fora o que sempre desejara — Harry — por mais tolo que parecesse? Por mais que não tivesse ad­mitido? Mas já havia sido magoada demais pelos pró­prios desejos. Precisava mudar para melhor e reconhe­cer seus erros e defeitos. E nenhuma das duas coisas indicava que confiar em Harry Potter não seria um tre­mendo erro.


— Hermione Granger não é conhecida pelo seu inte­resse em negócios — ela respondera numa voz clara­mente irritada. — É muito avoada, e provavelmente também não muito inteligente. Deve servir de distra­ção, nada mais.


— Teve uma educação de primeira linha e tem sécu­los de poder em cada fibra do corpo — retrucara Harry em tom calmo e firme, fazendo com que ela sentisse o cor­po amolecer. Aninhados no escuro, pela maneira com que pronunciara as palavras, ela percebera que estava sorrindo. Ele passara o dedo no seu queixo e lábios. — Acho que ela consegue lidar com isso.


Hermione saiu do banheiro e pensou que precisava se agarrar a isso, e não ao que acontecera a seguir, que os levara a dormir nos braços um do outro, com os corpos molhados de suor, e nem à saída de Harry, pouco an­tes do seu despertador tocar, de acordo com o que ela mesma estabelecera.


Harry lhe dissera que seria capaz de dar conta dos negócios, e isso dava uma sensação de euforia, por mais que ela pensasse que não importava, que não deveria acreditar, que não passara de algo que ele dissera no meio da noite, que não significava que a odiasse menos.


Ela caminhou pelo corredor, enfiando os saltos no carpete. O andar ocupado pela diretoria no famoso edifício da Granger Mídia proporcionava uma lindíssima vista de Manhattan, e seu interior também era impres­sionante. Maravilhosos quadros nas paredes, prestando homenagem não só aos antepassados da família, mas também à história do conglomerado de jornais, cinema e televisão. Piso de madeira de lei e luxuosos cande­labros.


Cada centímetro exalava riqueza, história, os Granger. Já estivera ali mais vezes do que conseguia contar. Primeiro, quando criança, durante eventos espe­ciais onde se deixava fotografar na pose de anjinho lou­ro, de filha supostamente adorada de Bradford. Mais tarde, em ocasiões obrigatórias, no papel de adolescen­te mal-humorada. E, durante muito tempo, como noiva de Theo. Mas aquela era a primeira vez que atravessa­va sozinha os corredores acarpetados, por vontade pró­pria, como alguém cujo nome estava gravado na parede do edifício, e não como simples acessório.


 Gostava da sensação. Ao fazer a última curva do corredor, olhou o relógio de ouro em seu pulso e percebeu que fora perfeitamente pontual. Sorriu cordialmente para a se­cretária sentada do lado de fora da sala de reuniões, deu uma parada e respirou fundo para acalmar os nervos, para se preparar. Pensou nas mãos de Harry em seu cor­po, envolvendo-lhe o rosto, quase com afeição. Qua­se... Pensou na sua voz dizendo que deveria reivindicar o que lhe pertencia, quisesse ou não.


Desafiando-a a tentar. Desafiando-a a se mostrar diferente, embora não tivesse certeza de ter admitido isso para ele. Posso fa­zer isso: sou capaz, pensou, abrindo a porta. A sala de reuniões recendia a testosterona da espécie mais rica de Wall Street, vestida em elegantes ternos, calçada em sapatos italianos, feitos à mão, e banhada na autos-satisfação. Do tipo que fazia e desfazia a fortuna dos outros sem se importar com trocas de ações, antes da hora do chá.


Hermione notou imediatamente que era a única mulher na sala, e que também era décadas mais jovem que os outros. Isto a surpreendeu tanto quanto o inevitável olhar de reprovação de seu pai, ou seja, nada.


— Senhores — disse, dando o seu famoso sorriso en­quanto se sentava na cadeira que estava vaga. — Espero não os ter feito esperar.


Como resposta, houve um murmúrio desinteressado que ela supôs que fosse apenas automático. Não impor­tava. Sabia mais do que o suficiente a respeito de cada homem que havia naquela sala, e não os achava mais intimidadores que um bando de paparazzi munidos de câmeras na manhã seguinte a algum desastre. Não pre­cisava que fossem gentis, e não se importava que não fossem. Não precisava deles para nada.


— Está cinco minutos atrasada — disse o pai no seu costumeiro tom de desagrado. — Mas não há motivo para prolongarmos isto. Os papéis estão prontos para você assinar. — Apontou uma enorme pilha de pastas diante dela. Hermione pegou, folheou uma ou duas pá­ginas e se deslumbrou com a linguagem complicada. Como Bradford, era um misto de sonoridade e fúria usado para encobrir a verdade feia que encobria.


— No momento, detenho o controle da Granger Mí­dia, estou certa? — perguntou em tom casual, olhando os papéis diante dela. Fez-se um silêncio tenso, chocado, e percebeu que todos se entreolhavam como se fossem muito ocupados e importantes para se incomodar com alguém como ela, como se sentissem insultados com sua ousadia. Não passava de um objeto descartável, que po­dia ser manipulado à vontade. Não fora assim que o pai sempre a tratara? Não fora desta maneira que ela sempre se comportara? Estava se divertindo.


— Apenas assine os papéis — resmungou Bradford. — Assim que acabarmos com este problema, teremos negócios de verdade a tratar.


— Cinqüenta e um por cento, se não estou enganada — continuou, como se não o escutasse. — Ou será 52? Theo me passou suas ações, antes de ir embora. Um presente realmente adorável, considerando o rompi­mento do nosso noivado.


— Que tipo de jogo é este? — perguntou um dos ho­mens com voz alterada. Hermione sabia que ele adminis­trava um ou dois fundos de investimento, era proprietá­rio de grande parte do sul de Manhattan, e que era visto com admiração nos altos círculos de investimento. E também que não o temia. Voltou a atenção para o pai, que adquirira um lindo tom de lilás ao olhá-la.


— Um no qual não quero entrar — disse Bradford num tom gelado. Hermione apenas sorriu.


— Acho interessante que tenha jogado todo o seu tempo, energia e sentimentos nesta empresa, e não te­nha pensado em fazer provisões para o futuro — falou ela no tom calmo que sabia ser uma afronta a todos, assim como sua recusa em abrir mão dos direitos como fora ordenado, ou sua própria presença. — Não foi prá­tico, pai.


— O plano para o futuro era Theo, e foi você quem o expulsou daqui. Não que ache que se importe. O que é isto, Hermione? Os jornalistas não estão lhe dando atenção suficiente? Deveria cair de mais algum carro. Talvez isso os provocasse. Mas pare de perder o nosso tempo.


— Não é perda de tempo. — Ela percorreu os olhos pela sala, sorrindo luminosamente para cada um dos homens, desafiando-os a contradizer o que dizia. — É uma reunião de diretoria, e sou a maior acionista. Meus advogados me informaram que os estatutos exigem que eu participe. Portanto, estou à sua disposição.


 Ela ig­norou os murmúrios e olhou o pai, que parecia que­rer estrangulá-la, e sabia que ele seria bem capaz de fazê-lo. Entender isso deu-lhe uma triste sensação de poder, embora mostrasse o tipo de relação que havia entre os dois.


Aquele não era mais o Bradford controlado e frio: era um homem muito mais furioso, que tinha algo a perder. Nunca se importaria com a filha, mas com a Granger Mídia era diferente: a empresa era a única coisa que tinha. Hermione sentiu uma pontada de pena, mas resolveu esquecer. Ele não merecia seu lamento por tudo que poderiam ter tido.


— Durante anos, você participou através de um pro­curador — falou o pai com raiva, crispando os punhos. Hermione pensou que se fosse um pouco melhor, não teria tamanho prazer no que estava fazendo. Mas sempre lhe dissera que ela não servia para nada. — Não pode querer que alguém a leve a sério, agora que decidiu, por algum motivo maldoso, mudar tudo.


Recostou-se na cadeira e deu o seu sorriso de Mona Lisa, sabendo que isto era o que mais o irritava.


— Acho que não preciso mais de procurador. Mas obrigada.


— Há o pequeno problema da sua notoriedade em­baraçosa e prejudicial — continuou, fitando-a com um olhar que se tornara cortante como uma arma. Ela se forçou a ficar impassível. — Você claramente não se en­caixa, Hermione. Em todos os sentidos. Em nada, e cer­tamente não serve para se sentar à mesa da diretoria. — Ele pensou que vencera. Hermione percebeu no brilho dos seus olhos.


— Bem, creio que é uma pena que não haja uma cláu­sula a respeito de conduta — respondeu fria. — Nenhum comentário a respeito de comportamento, seja cair de carros, ou na porta do Gramercy Park Hotel, ou na por­ta da mansão Granger. Não há nenhuma cláusula que diga notória demais para assumir seu lugar de direito. Se houvesse, claro que toda a diretoria seria desquali­ficada, considerando que o comportamento reprovável está nos olhos de quem percebe, não acha? — Deu de ombros, sem deixar de fitar o pai. — Pense no que pode­ria fazer com o seu.


— Assine os malditos papéis — falou furioso, e foi como se a sala desaparecesse, e só restasse ele: o pai que a assombrara durante toda a vida, como uma som­bra. Mas isso era passado. E a começar de agora, preci­sava resolver como seria o seu futuro.


— Não — falou calma, impassível, deleitando-se com o momento mais do que deveria, mas sabendo que dava o primeiro passo para uma nova vida, melhor. Por fim, uma vida de verdade. Desejou que Jack pudesse vê-la se transformar na pessoa que ele dissera que po­deria ser, em meio à chuva de Endicott Island. Deu um sorriso quase verdadeiro. — Sinto muito, pai, mas não vou assinar.


 


 


Mais uma noite, mais um baile.


Harry disfarçou a cara de tédio e ficou ao lado do avô no amplo terraço aquecido do Museum of the City of New Work, no alto da 5ª Avenida, de onde se via o Central Park. A anfitriã conhecida por suas luxuosas festas, Madeleine Doremus Waldorf, não precisara se preocupar com o clima ou a estação. Apesar da baixa temperatura, tinham colocado aquecedores de ambien­te suficientes no terraço para que as socialites jovens pudessem mostrar seus ombros em vestidos decotados e para as senhoras a chamarem de corajosa. Harry só conseguia pensar em Hermione.


 Especialmente no fato de estar presente e de ele ainda não a ter visto. E mais especificamente no fato de ter se esforçado tanto para deixá-la há dois dias, adormecida e nua, e de ainda não entender por que fizera isso. Poderia facilmente ter fi­cado, apesar de ter concordado com o que ela havia dito. Quisera ficar, mas descobrira que não gostaria de ser igual ao pai de Hermione, um homem que ignorava o que ela dizia quando lhe convinha.


— Não vejo como ficar aqui fora com lunáticos irá ajudar a levantar fundos para a causa assistencial de Madeleine. — Harry ouviu o avô resmungar. — É mais provável que todos morram de hipotermia. — O velho resmungou algo como mulher tola, mas Harry preferiu ignorar. Era o que ele fazia aquela noite: ignorava seus sentimentos inconvenientes pela mulher mais inade­quada de Nova York.


 Para ser sincero, era o que fa­zia há um longo tempo. Provavelmente, cinco anos. E também ignorava a presença do pai a alguns metros, fazendo-se de tolo com a namorada adolescente. Harry se guiava por seu, avô, que ignorara friamente o genro, durante quase quarenta anos.


— Boas festas, vovô — murmurou Jack com a since­ridade que lhe era possível. Os olhos verdes do avô, tão parecidos com os de sua mãe, se voltaram para ele e o mediram de cima a baixo.


— Ficaria mais feliz se pudesse morrer em paz, sa­bendo que a descendência dos Evans não termina com você. Mas, pelo visto, prefere insultar todas as herdeiras de Manhattan, ao invés de cumprir seu dever. — Harry sacudiu a cabeça e comprimiu os lábios.


Esta­va cansado daquela conversa. E então, pelo canto dos olhos, ele a viu. Saíra pela porta que dava para o salão e parara, rodeada por um verdadeiro batalhão formado pelos mais conhecidos herdeiros filantropos de Ma­nhattan. Ou seja: seus pares. Todos conversavam ani­madamente, e Hermione parecia perfeitamente à vontade. No passado, teria usado algo ousado demais para um evento como aquele, mas se a antiga Hermione ainda exis­tia, não via sinal dela naquela noite.


Ficou observando. Estava radiante como um farol que jogasse luz através da 5ª Avenida e iluminasse o Central Park. Ela parecia cintilar num vestido furta-cor que lhe caía dos ombros, ajustava-se a seu corpo como se a abraçasse e esvoaçava até o chão. Usava um magnífico colar que rivalizava com o brilho das estrelas, fazendo jogo com os brincos e uma pulseira, e segurava uma pequena carteira. Fazia com que ele sentisse o coração apertado e o corpo en­rijecido, do outro lado de um ambiente cheio de gente. Estava enrascado. E muito.


A nova Hermione ocupava seu espaço no mundo, pen­sou Harry, num misto de orgulho e pânico. A despeito do conflito entre o que não queria sentir e o que não con­seguia deixar de sentir, pensou que de alguma maneira ele a perdera.


— Esta aí — disse o avô, torcendo o nariz com despre­zo e olhando para Hermione. — Não senhor. Esta aí cheira a confusão. Tem sido um problema desde o dia em que nasceu.


— Você não a conhece, vovô — Harry se ouviu dizer, escandindo as sílabas das palavras. — Não sabe o tipo de problema que enfrentou. Seria bom ter um pouco de compaixão.


— Sei o tipo de problema que ela causa — retrucou. — E é suficiente. — Voltou-se para Harry e contraiu os olhos. — Ela não é diferente de seu embaraçoso pai. Os dois têm a mesma moral e comportamento. Seria me­lhor se interessar por outra, meu jovem.


E então, algo se quebrou dentro de Harry... Sentiu como se algo se partisse com um ruído seco que o dei­xou surdo por um instante, deixando sua audição mais clara. Tudo parecia mais nítido. Fitou o avô, viu seu ar habitual de desprezo e o olhar de censura. Depois olhou para Hermione e percebeu que Chip Van Housen a assediava. Em meio à multidão inútil que o enaltecia e a desprezava, mas que nunca os enxergara realmente, notou que o sorriso dela se tornara falso. Ele não iria suportar. Não iria mais tolerar isso.


— Chega — disse Harry, não com a voz alterada, mas num tom definitivo que surpreendeu seu avô. Viu o velho, e algo primordial e sólido se transformou em pó dentro dele: a culpa. Aquela dor permanente por tudo que sua mãe jamais saberia a seu respeito, o res­sentimento por ter tido aquele pai. Carregara aquelas emoções por tanto tempo que haviam se tornado parte dele.


— O que disse? — perguntou o avô, mas Harry sabia que ele ouvira perfeitamente.


— Sinto muito, vovô. — E sentia, mas também estava mais determinado do que nunca. — Sinto muito não ter sido o neto que desejava quando eu era mais jovem. Sinto que nada possa mudar o que sente por mim. Não posso culpá-lo, quando olho para meu pai. — Harry lem­brou-se das palavras que Hermione lhe dissera, às portas de outro museu, e balançou a cabeça. — Mas não posso me punir por mais tempo, e não quero.


— Isto é por causa daquela moça? — quis saber o an­cião, perplexo, chocado. — Daquela inútil Granger? Por que iria querer se juntar a este desastre?


— O que eu quero é problema meu — falou friamente. — Eu o contentei durante anos por senso de lealdade e respeito, mas você não retribuiu. Cansei de ser submis­so, de me deixar intimidar como um menino, porque sente necessidade de me colocar no lugar repetidamen­te. Para mim, chega.


— Harry...


— Sinto muito se me odeia — falou em voz baixa. — Sinto mesmo. Mas não posso deixar que isto me con­trole mais. É algo que não posso mudar, e estou cansa­do de tentar. Quer goste ou não, sou o futuro do legado dos Evans, vovô. Vai ter que confiar em mim.


O avô fitou-o de olhos arregalados. Ao fundo, Harry ouvia a orquestra tocar, o murmúrio de vozes, e a gar­galhada embriagada do pai, e sabia que jamais se ar­rependeria do que havia dito, por mais que lhe doesse magoar o avô. Não poderia ter evitado. Deveria ter fei­to isso há muito tempo.


— Não odeio você — falou o avô num tom de voz di­ferente, e Harry logo percebeu por quê. Falara num tom cansado, envelhecido, pela primeira vez, como o ho­mem de 85 anos que realmente era. — Não odeio você. Sinto saudade dela.


Sabia que o ancião se referia à sua mãe, Lilian Evans Potter, a luz mais brilhante que iluminara sua vida... Até agora.


— Eu também, vovô — disse ele em voz rouca. — Sem­pre vou sentir.


— Sei que sim.


E naquele momento, Harry se deu conta de várias coi­sas que já deveria ter sabido. Fora um grande idiota. Deveria ter percebido desde que colocara os olhos em Hermione há cinco anos. Mas não podia usá-la como des­culpa. Estivera cego para o que acontecia na relação com seu avô e com ela. Talvez aquela fosse a maldição dos Evans: a falta de capacidade em ver a verdade cristalina. Ele podia escolher não olhar o outro lado. Podia decidir não olhar diretamente para a luz e ver o que acontecia. Como poderia fazer diferente?


Abraçou o avô, e pela primeira vez reparou o quan­to ele era frágil, como era menor que a imagem que alimentara em sua cabeça. Harry pensou que não podia mudar o passado, os mal-entendidos, o orgulho ferido, as maluquices da juventude, mas podia mudar o futuro. E mudaria.


— Tudo vai ficar bem, vovô — disse, sentindo que aquilo ressoava dentro dele.


 


 


Chip Van Housen não aceitaria um não como resposta, e isto não seria novidade. Hermione manteve o sorriso no rosto e fingiu que se divertia com a versão lasciva de Chip para a valsa.


— Não pode me ignorar para sempre, Hermione — dis­se ele, com olhos injetados e insípidos grudados ao rosto dela. Sentia o cheiro de álcool no seu hálito e se perguntava como e por que passara algum tempo com um tipo como ele. Hermione se dera o trabalho de fazer isso algumas vezes, mas as lembranças agora lhe pareciam sombrias e borradas. Realmente se odiara tanto? Agora, isso se tornara difícil de imaginar, mas já era um progresso.


A noite estava linda, seca e gelada, mas havia um ca­lor delicioso no regaço da mansão de estilo georgiano, como se o baile tivesse convocado um pouco do verão. Se Hermione ignorasse quem a abraçava na pista de dan­ças, estaria se divertindo, mas Chip não era alguém a quem podia dar atenção, e tentava beijá-la pela terceira vez. Resolveu que fora suficiente. Afastou-se brusca­mente, soltou-se das mãos de Chip e retirou-se para um canto, onde esperava haver poucas testemunhas para o tipo de cena que passara a evitar.


— Não pode simplesmente me deixar — reclamou Chip, pegando-a pelo braço. Hermione livrou-se e olhou ao redor. Não havia nenhum lugar a salvo de olhares curiosos, mas aquele canto era frio o suficiente para abafar o som. Era o que esperava.


— Acabo de deixá-lo — disse com calma. — Não quero dançar com você. Dançava apenas por educação, mas não me sinto mais educada. Não me convide outra vez. — Existia algo de belo no rosto dele, mas fora estra­gado há muito tempo. Agora, via apenas traços da sua aparência de menino, e uma crueldade assustadora na maneira como retorcia os lábios.


— Não vai me dizer não — disse com uma risada sar­cástica que fez o sangue de Hermione gelar.


— Tem certeza? Acho que acabo de dizer.


— Não disse, não — falou num tom desagradável, aproximando-se. — Nunca. Em que jogo acha que está? Pensa que alguém vai cair nesta?


Por mais que não tivesse gostado quando Harry lhe fi­zera as mesmas perguntas, gostava ainda menos agora. Empertigou os ombros combativa, mas por dentro esta­va gelada. Uma coisa era enfrentar o pai, mas teria que lidar com cada personificação do pior do seu passado? Sentia-se envergonhada, suava frio, mas se recusava a demonstrar medo.


— Deixe-me esclarecer — falou ela em tom amigável. — Deixe-me em paz. Não pretendo discutir o assunto.


— Não vai me dizer o que quer ou não... — começou Chip, aproximando-se ameaçador. Hermione ergueu o queixo e não se mexeu.


— Pare de me assediar — falou calmamente. — Pode ser que não tenha notado, mas não sou a mesma pes­soa que você conheceu. E ela não vai voltar, portanto, precisa encontrar alguém que aceite participar das suas sórdidas aventuras.


Hermione percebeu de repente que o odiava, que sem­pre o odiara. Nada havia nele que não lhe causasse des­gosto. Ele realmente tinha sido sua arma mais eficaz de autodestruição? Como não percebera antes? Por que usara aquele homem fraco, desagradável, para se auto-flagelar por tanto tempo?


— É muito inspirador — sibilou. — A vagabunda da ci­dade vestida como alguém respeitável, como uma pes­soa de verdade, e não como uma piada. Quanto tempo acha que isto vai durar, antes de acabar na próxima sar­jeta? A quem acha que engana? Ninguém nesta festa, nesta cidade, vai esquecer quem você realmente é. — Ele deu uma risada cruel. — Ninguém.


Sentiu uma onda de ódio por si mesma, de horror, de vergonha, que quase a derrubou. Sabia que ele tinha ra­zão. Sentiu o calor no rosto. Pensou que se olhasse ao re­dor, todos estariam rindo dela. Divertindo-se com a sua desilusão, com a fantasia de que poderia ser mais do que a criatura inútil que sempre acreditara ser, como se todo esforço que fizera nas últimas semanas e meses, tivesse sido para nada.


 Hermione sentiu o estômago se retorcer e pensou que iria vomitar. Mas não morreu de vergonha, como talvez desejasse. Ainda respirava, o coração conti­nuava a bater, e das duas pessoas que estavam ali, era a única que realmente sabia quem era, e não aquele verme lindamente vestido, mas horroroso por baixo.


— Quem pensa que é? — provocou-a.


Naquele instante, percebeu que não importava o que Chip Van Housen e todos pensassem a seu respeito. De­cidia quem era, e a vergonha tinha o poder de magoá-la apenas se permitisse.


— Sou Hermione Granger — respondeu, sem se inco­modar em sorrir, sem tentar ser polida, sem ligar para quem podia ouvir. Nutrira-se com a própria força, com as suas escolhas, era quem decidia o que o passado fa­ria dela, não Chip. Jamais. — E não me importa o que pensa que sou.


Ela se voltou, deixando-o de boca aberta, e deu de cara com Harry. Estava parado como se estivesse ali por algum tempo. Como se escutasse todas as palavras terríveis.

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