Capitulo 10



Capitulo 10

                                                          XXX--XXX


Hermione esperava pelo pai na mesma sala fria da man­são Granger onde passara tantos momentos desagra­dáveis da sua juventude. A sala ficava no segundo, andar, nos fundos da enorme casa que ocupava um quarteirão inteiro de Manhattan e que ainda levava os turistas a parar para fotografar a fachada. Aquela era a sala favorita de Bradford. Pequena e isolada o sufi­ciente para que pudesse dar voz a toda a dimensão do seu eterno desagrado, sem ser ouvido pelos empre­gados.


 Se ela fechasse os olhos, seria capaz de se ver com todas as idades, sentada na mesma posição, exa­tamente na mesma cadeira desconfortável, olhando o mesmo quadro de Mary Cassat, que dava uma falsa impressão de harmonia familiar ao ambiente em tons de azul e creme. Mas Hermione não fechou os olhos. Te­mia que, se os fechasse, veria Harry, e já levara muito tempo, naquela manhã, tentando diminuir o dano de uma longa noite insone em que lhe ocupara a cabeça.


 Soltou um suspiro e sentiu os lábios formigarem com a lembrança do beijo que lhe dera na noite passada, do lado de fora do museu, do seu belo rosto, dos seus sedutores olhos cor de chocolate... A claridade de dezembro entrava pelas janelas, mas não aquecia o ar. Hermione se arrependeu de ter en­tregado o casaco de lã e a echarpe ao mordomo quan­do chegara.


A porta abriu e seu pai entrou intempes­tivamente, com uma expressão sinistra que fez com que a temperatura diminuísse alguns graus. Bradford Granger tinha a aparência de sempre: cinza de des­gosto, apesar do seu guarda-roupa extremamente ele­gante, mas discreto, e dos cuidados que sempre tinha com a pele. Hermione se lembrou de que até os tiranos têm vaidade.


— Não me deixei enganar pela última encenação, Hermione — disse Bradford, a guisa de cumprimento. Torceu o nariz com desprezo e a avaliou de cima a baixo. Ela não reagiu. Sentou diante dela, do outro lado da mesa de centro que ocupava aquele lugar desde os anos 1800. Os dois haviam ocupado seus lugares tradicionais, Hermione observou, contendo um suspiro. Agora, Bradford come­çaria a soltar seu fel, e tentaria sobreviver intacta.


Houvera anos em que chorara; gritara; olhara pela janela, fazendo de conta que ele não estava ali; fingira dormir; certificara-se de estar devidamente entorpecida. Nada disso adiantara. O disparate deixava-a sempre enrijeci­da, retorcida e abafada por uma espécie de luto pela vida que nunca tiveram, por nunca terem sido pai e filha, e pelo tipo de família que os Granger jamais poderiam ser.


— Não sei do que você está falando — declarou, em­bora soubesse. Queria que ele dissesse em voz alta, como se achasse que ouvir o eco da própria maledicência o envergonharia. Mas isso jamais acontecia. Entrar naquele jogo era mais um exemplo da sua decadência, pensou Hermione, e isso era algo que ela ultimamente se permitia fazer cada vez mais.


Afastou a lembrança de Harry: já estava abatida demais, obrigada. Só de voltar àquela casa, um monumento à longa história dourada da família disfuncional, fazia com que se sentisse fe­rida. Havia muitos fantasmas, muitas esperanças des­feitas, perambulando pelas luxuosas salas, circulando pelos longos corredores.


— Falo da sua insistência suspeita em comparecer a eventos de caridade — disse Bradford, com um tom de escárnio, embora fosse educado demais para escarne­cer de alguém, mas ainda estavam no início da conver­sa... — Dos seus tristes gestos de bom comportamento, comentados por todos em Nova York. Do seu novo guarda-roupa, como se alguém pudesse esquecer suas absurdas tentativas de se mostrar ofensiva no passado. Algumas semanas brincando de se fantasiar não apaga­rão uma vida de atitudes embaraçosas.


Hermione correu a mão ao longo das calças cor de grafite, e resistiu à vontade de repuxar a gola alta da blusa de cashmere ou de arrumar os lindos brincos de brilhante. Sabia que estava elegante, quase con­servadora, e que as botas de saltos exageradamente altos quebravam um pouco do ar severo das roupas. O pai não podia ver a vergonha e a humilhação que ela sentia por dentro, e que ajudara a alimentar. Via apenas o que lhe mostrava, e assim, não lhe mostrou absolutamente nada.


— Presumo que este seja o seu jeito de dizer bem-vinda ao lar — falou secamente, num tom quase sereno. — Obrigada.


— O porteiro do seu edifício me informou que você reapareceu há várias semanas — continuou, como se não a escutasse. Hermione pensou que era bem possível: ja­mais ouvia. — Tive que acompanhar suas aventuras nas páginas de colunas sociais, esperando o resultado ine­vitável, porque ele sempre acontece. Seja o que for que pretenda, Hermione, o resultado é o mesmo de sempre: não estou nada contente.


— Estou bem, obrigada — falou casualmente, como se tivesse perguntado. Como se algum dia ele tivesse pensado em perguntar... — Os meses que fiquei fora... Principalmente depois daquele terrível acidente... Real­mente me ajudaram a compreender algumas coisas. Agradeço que tenha perguntado por mim. Sua grande preocupação paterna me deixa comovida.


— Aviso-lhe que deve tomar cuidado, Hermione — falou o nome dela como se fosse um xingamento.


— Ou então, o quê? — disse sem nenhum tom de desa­fio. Por que se daria o trabalho? Sabia que sua simples presença era vista como um desafio pelo pai. Ela er­gueu as sobrancelhas e o fitou com ar de curiosidade. — Minha reputação e situação poderiam ser piores? Creio que esgotou as suas ameaças eficazes.


— Não estou interessado nos seus melodramas intermináveis — disse em tom frio, entediado. E calmo, como sempre era, quando se tornava mais cruel. — Da próxima vez que tentar se matar em um desses clubes, ou numa das suas festas, tenha certeza de completar a tarefa. A limpeza da sujeira custa caro, é um transtorno, e reflete desfavoravelmente no nome da família e da Granger Mídia. — Olhou para ela de um jeito que a atingiu no ponto onde se concentravam sua vergonha, mágoa e autoreprovação, coisas que ela ainda carregava, por mais que tivesse mudado. — Não posso me dar o luxo de perder outro presidente por causa dos seus jogos. Compreendeu? Estou sendo claro?


Hermione precisou respirar por um instante, como o médico ensinara há oito meses, quando Bradford lhe causara um ataque de pânico naquela mesma casa, ao comentar um assunto semelhante. Pensara estar tendo um enfarte. E se recusava a dar-lhe a satisfação de vê-la reagir da mesma maneira novamente.


— Perfeitamente claro — disse, forçando-se a dar o maldito sorriso que tudo escondia, e que o deixava en­furecido. — Meu próximo coma será mortal. Prometo. — Olhou sem medo para o pai, por mais que por dentro sentisse o contrário. — Está satisfeito agora?


— É a maior decepção da minha vida — comentou Bradford num tom casual, apesar de não deixar de fi­tá-la friamente.


— Este é um ponto que você faz questão de ressaltar desde que eu tinha mais ou menos 6 anos — retrucou Hermione. Estava orgulhosa por aparentar indiferença, sentada na cadeira dura como se estivesse perfeitamen­te relaxada. Como se por fim tivesse se tornado à prova de balas. — Garanto que conheço os seus sentimentos, e se não os conhecesse, acho que seu pedido para que da próxima vez eu realmente cometa suicídio iria me dar uma pista. Creio que podemos dizer com certeza que estamos sintonizados.


— Espero que tenha aproveitado o passeio — falou o pai, sem expressão. Nada havia nos seus olhos frios, teria havido algum dia? Hermione conteve um estreme­cimento. — Não imagino o que fez por tanto tempo, e não me interessa. O único ponto positivo foi que, de alguma maneira, conseguiu manter-se longe dos jornais. Imagino que o preço será astronômico, como sempre.


Apenas emocionalmente, pensou Hermione tristemen­te, dando de ombros. O pai que pensasse que ela se escondera em algum lugar caro, que pensasse o que quisesse. Era o que costumava fazer, por mais que dis­sesse ou fizesse...


— Não pense que vou ajudá-la, se excedeu a sua me­sada trimestral — continuou no mesmo tom maldoso. — Estou farto de dar um jeito nas suas confusões. — Pela primeira vez, um sinal de emoção passou pelo rosto dele, e Hermione conteve o fôlego. Era isso? Era assim que seu pai revelava ter algum sentimento humano, de­pois de todo aquele tempo? — Faz idéia do que signifi­cou para a empresa perder Theo Markou Garcia? Por sua causa?


Deveria saber. Admirável é que ainda sentisse algo, que ainda tivesse alguma esperança em relação àque­le homem. Que tipo de idiota isso a tornava? Hermione respirou novamente e recorreu ao seu sorriso habitual.


— Sabe que você e a empresa não são a mesma enti­dade, pai? — Aumentou o sorriso. — Às vezes, realmente temo pela sua sanidade.


— Depois do truque que armou com aquelas ações, você tem sorte por não a cortar de vez. — Ele pareceu espumar. Surpreendentemente, ainda havia um sinal de emoção no seu olhar. Hermione deveria saber que ela envolvia apenas o seu investimento, seu precioso lucro, e a maldita empresa que amava mais que tudo no mundo. — Não pense que esqueci o que tentou fazer: abrir mão do nosso futuro, só para me causar problemas. Da pró­xima vez que mudar seu testamento, é melhor querer realmente morrer, porque, do contrário, vou fazer com que se arrependa de ter nascido.


A ameaça ignóbil ecoou entre os dois, na claridade fria do inverno.


— Não é preciso — falou como se aquilo não a atin­gisse, como se fosse algo agradável em vez de feio. Fez um gesto de indiferença. — Vinte e sete anos tendo-o como pai fizeram o mesmo efeito.


— Só precisava se casar com Theo — falou em tom indignado. — E não podia fazer isso, não é? Não con­segue fazer nada. Jamais conseguiu. No fim, até ele não queria, e isso depois de o tolo andar atrás de você durante anos.


Hermione não pôde deixar de pensar que Theo esta­va melhor longe do poço lamacento que era a famí­lia Granger. Longe como desejaria ser capaz de ficar, como tentara fazer durante os últimos oito meses. Mas se Harry lhe ensinara algo, fora que não havia como fugir de quem era de fato, da verdade que insistia em aparecer no meio de uma tempestade, numa ilha qua­se deserta, forçando-a a encarar tudo de frente. Lição aprendida, pensou com amargura.


— Não estou aqui para falar de velhas histórias — falou calmamente. — Mal me lembro delas. — Não era inteiramente verdade, mas se deleitou ao ver a fúria nos olhos frios de Bradford. — Foi você quem me cha­mou até aqui. Deve ter outro assunto para discutir, além de Theo. — Ela se recostou na cadeira. — Se não tem, por favor, continue com o sermão. Ele me deixa comovida.


Fitou-a por longo tempo, apertando a boca até que virasse apenas um traço.


— A reunião anual da diretoria será na quinta-feira — falou no tom de quem anuncia algo muito importan­te. — Sei que seus advogados estão tentando entrar em contato com você há semanas. Meses. — Ele torceu o nariz. — Sua presença, embora indesejada, é necessária.


— Que convite encantador — murmurou Hermione, com uma expressão de indiferença. — Mas por quê? Sabe que os negócios me aborrecem. Especialmente os seus. — Observou-o atentamente, à procura de algo, de qual­quer coisa, que revelasse que existia uma pessoa de verdade dentro de seu pai, que havia esperança para ele, mas só via seu desdém habitual. Isso era tudo que sempre vira. Seria de se admirar que tivesse se tornado o que era?, pensou. Não seria de se admirar que não tivesse se tornado algo pior? Com certeza, o fato de que sobrevivera e que tentava se regenerar contaria para al­guma coisa. Bradford sempre fora um monstro.


— Vai passar legalmente suas ações para mim — de­clarou o pai num tom que não admitia discussões. — Não vejo motivos para continuar com uma procuração absurda, quando é evidente que não tem interesse em assumir o seu lugar na diretoria. Ainda bem. Quanto mais cedo acabarmos com as formalidades, mais rápi­do poderá se livrar da Granger Mídia. E mais rápido posso lavar as mãos a seu respeito.


— Abrir mão das minhas ações dissolve os nossos la­ços de sangue? — perguntou gentilmente. — A próxima quinta-feira será realmente um dia milagroso.


— Não vai fazer cena, Hermione — continuou implacá­vel e frio. — Vai assinar os papéis, fazer uma declaração adequada a respeito de como pretende desperdiçar a vida do jeito que escolher, e ir embora. Não me importa para onde. Fui claro?


Novamente sentiu a dor, a falta de coisas que jamais tivera. Desejaria ser mais forte. Acreditar piamente, de coração, que ele fosse o monstro, não ela. Queria sim­plesmente deixar de se preocupar com o que Bradford pensava a seu respeito, com o que sempre achara dela. Mas ele era o que era. Hermione pensou que seu erro havia sido acreditar que existia alguma coisa que pudesse mu­dar ou consertar, para fazer com que ele a amasse, tole­rasse, ou apenas tratasse com algo além de desdém.


Mas agora percebera: tornara-se uma pessoa diferente, mas era o mesmo de sempre. Tinha sido o motivo para que sua mãe passasse os dias atordoada com sedativos, na Provence. E para que Hermione passasse a vida dedicando-se à própria destruição, na esperança de que algo forçaria aquele homem a se importar com ela. Bradford jamais veria sua mudança. Quando a olhava, via apenas o que fora, a pessoa que moldara: um jarro vazio e desprezível.


— Não se preocupe, papai — disse, cuidando para fa­lar com a voz firme, leve, como se aquilo não fosse um adeus, como se não tivesse mudado, como se ele pudesse mudar. — Entendi perfeitamente.


 


 


Algumas noites depois, quando Hermione entrou corren­do no magnífico saguão art déco do seu edifício, tre­mendo por causa do frio e do cansaço, depois de mais um baile de caridade onde tentara recuperar alguns laços, Harry estava à sua espera. Viu-o imediatamente, como se a atraísse com sua figura imponente vestida num casacão preto, do outro lado do salão de mármore. A expressão de seu belo rosto era de desdém, e ela tinha certeza de que esperava fazer com que se encolhesse nos saltos. Ou talvez ele pretendesse varrer todo o Cen­tral Park West e o Upper West Side com a força do seu desconforto.


Não havia como negar que era um homem podero­so, mas Hermione refletiu que estava vacinada e que não sentia o coração despencar, não sentia o crepitar das chamas, aquecendo-a e queimando.


Deu um sorriso para o sempre presente porteiro uni­formizado, que se orgulhava de conhecer todas as pes­soas dignas de nota em Manhattan, algumas das quais moravam no famoso edifício Emery Roth, no Central Park West, que Hermione frequentava há alguns anos. Ti­nha certeza de que ele sabia quem era Harry.


— Por que está aqui? — perguntou, caminhando até ele. Harry se apoiou numa das enormes colunas, uma obra de arte preciosa como as tapeçarias que adorna­vam as paredes com frisos dourados. Hermione teve o cui­dado de se mostrar impassível, mas imaginava se teria conseguido, porque a encarava como se pudesse vê-la por dentro, como se fosse de vidro.


Olhou-a por longo tempo. Ela sentiu o coração pa­rar: o tempo se prolongava e só via a emoção nos olhos atormentados dele, uma paixão que se inflamava, um fogo. Por que aquilo ainda a perturbava? Por que não se tornara tão imune quanto desejava?


— Não sei — disse. Simples e devastador.


Parou diante dele e se obrigou a respirar, engolir, funcionar.


— Isto está quase se tornando assédio — falou com a garganta seca. — Embora acredite que, quando se tra­ta do grande Harry Evans Potter, não se possa falar em assédio, e sim em persistência. Ou será persuasão? De qualquer maneira, envolve um elevado pedigree e a complacência do país. — Ela deu um leve sorriso. — Que sortuda!


— Achei que se telefonasse, você não iria atender — resmungou, observando-a com os olhos cor de choco­late, envolvendo-a no seu calor, quase fazendo com que esquecesse que há alguns minutos estivera congelando no frio de dezembro. Ele era perigoso.


— É muito esperto, Harry. — Ela tentou sorrir, mas não sabia se havia conseguido. — É uma das coisas que mais admiro em você.


 Parada na frente dele, usando saltos muito altos, sentia-se mais poderosa. Ou, de qualquer maneira, muito menos sujeita a desabar no chão e im­plorar pelo amor de Harry, por suas carícias. Perto dele, sentia ainda aquele impulso, aquela compulsão irresis­tível de estar em seus braços, de senti-lo novamente. Desejava-o mais do que gostaria de admitir, e isto doía mais do que queria de acreditar.


Porém jamais poderia tê-lo, pensou com amargura, ignorando as batidas de­sesperadas do seu coração. Não era mais um receptáculo vazio que se autodestruía ao aceitar de boa vontade as migalhas que atiravam em seu caminho, sem se im­portar com o quanto isso lhe doesse, porque qualquer coisa era melhor que o simples vazio. Precisava se lem­brar de que isso era bom. Realmente era.


— Convide-me para subir — disse. Ela percebeu o tom de comando na sua voz e notou o brilho de desejo nos seus olhos. Hermione sabia exatamente o que ele queria, e sentia a reação excitada do próprio corpo, que a fazia tremer de desejo, de expectativa.


— Não acho que seria sensato — falou, depois de um momento, sabendo que não conseguia fugir ao olhar com que a observava, com que a prendia firme, como se estivesse em seus braços. Enfiou as mãos nos bolsos do casacão para não o tocar, para evitar repetir o terrí­vel erro que cometera no Maine.


— Desde quando alguma coisa entre nós foi sensata? — perguntou malicioso.


Hermione pensou que, por mais que naquele momento quisesse que fosse diferente, mudar era uma tarefa de tempo integral, e não apenas para ocasiões em que lhe parecia adequado ou conveniente. Se queria respei­tar a si própria, precisava agir como se realmente se respeitasse. Sempre. Mesmo quando tinha vontade de fingir que não se importava, vontade de se perder nos braços do homem que suspeitava tê-la destruído para sempre. Naquele mesmo instante, podia vê-lo partin­do o seu coração.


— Sinto muito — falou, tentando manter a voz firme e voltando-se na direção do elevador. — Não posso fazer isso, Harry. A semana tem sido cansativa. Amanhã devo enfrentar uma reunião de diretoria na Granger Mídia, sem o apoio do noivo que acha que preciso para me salvar, e estou cansada.


— Espere. — Fez uma pausa. — Por favor.


Voltou-se para ele, surpresa ao ouvir a expressão. E também se surpreendeu ao ver seu olhar: parecia tão perdido e perturbado quanto ela. Parecia. Quem dera, pensou, com o coração acelerado e cheio de esperança.


— Vamos caminhar um pouco. Tome um drinque co­migo — falou em voz baixa, ansiosa. Se fosse outro ho­mem, diria que estava desesperado. — Em algum lugar irremediavelmente público. — Ele retorceu os lábios e Hermione sentiu um calor no peito e se encolheu. — O que seria mais seguro que isso?


Porém, ela sabia que não estaria a salvo. Jamais es­taria a salvo perto daquele homem, porque sempre de­sejaria o que ele não podia nem queria lhe dar. E não agüentaria mais. Não queria. Controlou a ansiedade, aproximou-se de Harry e ouviu sua respiração, quando se inclinou em sua direção e deu-lhe um beijo no queixo. Ela fechou os olhos por um instante e deixou que o seu perfume masculino a provocasse, incendiasse e, depois, recuou para ir embora.


— Adeus, Harry — sussurrou. Ele a pegou pelo braço, não com força, mas o suficiente para não a deixar fugir. Não desta vez.


— Como posso saber quem é você, Hermione? — per­guntou enfático, num tom que parecia envolvê-la, atravessá-la, com um olhar penetrante. — Como alguém poderia, se tudo que faz é fugir e se esconder?


Ela teve a sensação de que os seus olhos se torna­ram grandes demais para o rosto, muito iluminados, e, de repente, Harry parecia ter ocupado o mundo inteiro, como se nada mais existisse, a não ser ele. Como se nada mais tivesse existido. Como podia amar tanto aquele homem, quando sabia, com cada fibra do seu ser, que iria destruí-la? Que já iniciara o processo e que estava a caminho de acabar com ela? E ainda lhe servi­ria de cúmplice?


— Poderia usar os olhos, ao invés de preconceitos — ela conseguiu dizer, lutando até o fim, porque era o que lhe restava. — Seria um começo. — Pretendera manter um tom casual, como sempre fazia, mas nada havia de normal na maneira como a fitava, com um olhar som­brio, queixo tenso, como se combatesse os mesmos de­mônios que ela combatia.


— Então me mostre — sussurrou.


Ainda se sentia fraca. E o amava tanto. A certeza de que as duas coisas seriam sua desgraça não ajudava para acalmar seu coração, ou para impedir que a sua respiração se tornasse ofegante e rápida. Harry estava ali, e ela o amava. Hermione não podia deixar de imaginar por que fazer o que era certo parecia ser errado. Uma coisa era sucumbir acidentalmente à atração de Harry. Outra era escolher isso deliberadamente. Resolver: era isso que continuava a fazer, seguindo seu tolo coração, ao invés da cabeça.


— Tudo bem — falou ela sem pensar nas centenas de razões que faziam com que aquela ideia fosse péssima.


— Tudo bem? — repetiu Harry, mas nos seus olhos brilha­va uma espécie de triunfo. Sentiu que as mãos dele aper­tavam seus ombros comum tremor quase convulsivo.


— Pode subir — disse ela, sem disfarçar o tom resig­nado, de vulnerabilidade. Naquele momento, não im­portava. Ou não importava da maneira que sabia que deveria importar. — Mas você não pode ficar.


 
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