Capitulo 9



Capitulo 9

                                                          XXX--XXX


Harry estava mortalmente entediado. O Metropoli­tan Museum of Art parecia esplêndido como sempre, e conhecia todos os seus encantos em detalhes, uma vez que seus ancestrais haviam participado da funda­ção. Passara tanto tempo no amado e famoso ponto de referência, que podia percorrê-lo de olhos vendados. Pensou que poderia deixar os convidados que circula­vam pelo salão Charles Engelhard, na ala Americana, num evento de caridade que não se distinguia de qual­quer outro, e encontrar, de olhos fechados, o corredor que levava ao Medieval Sculpture Hall, onde sabia que encontraria, por ser tradição em dezembro, a famosa árvore de Natal iluminada e um presépio napolitano do século XVIII.


O fato de ter aquela idéia, apesar de jamais ter gostado de festas natalinas, apenas confirmou o que suspeitava desde o instante em que fora buscar a sua acompanhante: não iria se casar com a srta. Elizabeth Shipley Young, a despeito do desejo ardoroso de seu avô. Harry não conseguia imaginar como passaria a noi­te sem dar um enorme bocejo bem no meio da mesa de banquete, sentado entre seu avô e a desinteressante Elizabeth.


— Está tudo bem? — perguntou-lhe a convidada, com um riso que parecia nervoso. Pensou: por que não? Desde o momento em que fora buscá-la no apar­tamento, mostrara-se mal-humorado, sombrio. Agi­tado, preocupado. Limitara-se a resmungar os cum­primentos de praxe, e não agira como o encantador e gentil Harry Potter que ela, com certeza, esperava ver. Era como se tivesse deixado aquela parte de si ser lavada pela chuva de Endicott Island, mas ela ja­mais perceberia. Nunca reparavam: por mais que ele se comportasse mal, as mulheres sempre viam apenas Harry Evans Potter.


— Não podia estar melhor — mentiu, forçando-se a dar um sorriso que lhe pareceu sair tenso, endurecido. Harry não precisava olhar para seu avô para saber que observava atentamente cada gesto que fazia, como se a força do seu olhar fosse resultar no desejado casamen­to, naquela mesma noite.


O sorriso dele desapareceu no momento em que sua acompanhante pediu licença e se dirigiu ao banheiro. Apesar de cercado pelos fofoqueiros que compunham a alta sociedade de Nova York, e ao lado do seu maior crítico, não conseguiu manter o sorriso.


— Esta noite está tão encantador quanto um coveiro — resmungou o velho na sua voz seca. Harry mal controlou a impaciência.


— Estou aqui, não estou? — Franziu a testa, desafian­do o avô a fazer mais algum comentário. — Como fui mandado.


— Não deveria ter que mandar que você cumpris­se seu dever com a família — começou a dizer o avô, franzindo a testa com desprezo e começando a recitar a acusação de sempre. Mas naquela noite Harry estava de mau humor, irritado. Não agüentaria da mesma manei­ra que costumava agüentar.


— Não precisa se preocupar com minha dedicação ao dever — falou por entre os dentes, num tom ainda re­lativamente educado e respeitoso. — Mas é o que você quer. Faz tempo que desconfio que este seja um dos maiores prazeres que tem na vida.


O avô o observou por longo tempo, e Harry se prepa­rou para a tempestade inevitável, imaginando quando teria se tornado tão destemido, quando deixara de pisar em ovos como fazia quando estavam juntos. Porém, para sua surpresa, o idoso torceu o nariz e se voltou para o convidado que estava do outro lado.


Harry recostou na cadeira e ficou olhando o teto do outro lado da sala, sem enxergá-lo. Por mais que não quisesse, precisava admitir que há várias semanas não era o mesmo. E sabia o motivo. Estava naquele estado desde o momento em que acordara e descobrira que Hermione Granger fugira dele. Outra vez. Não havia conseguido superar esse fato. Seguira em frente, claro, como se isso não lhe importasse


. Fechara a casa e vol­tara ao continente. Tolerara o tormento de um longo jantar de Ação de Graças na casa do avô, no elegante Louisburg Square, em Boston, para o qual havia sido convocado. Mas enquanto calmamente garantira ao avô que tinha a intenção de se casar e de perpetuar o nome da família como se esperava, enquanto ignorara cuidadosamente o pai e sua última esposa, só consegui­ra pensar em Hermione.


O avô fizera a lista de prós e contras de cada herdeira abaixo de 40 anos da costa leste, mas Harry só conseguira pensar num par de olhos verdes atormentados, numa boca tentadora e inteligência agu­da que ela se esforçava por esconder. Tinha ouvido o avô fazer um sermão a respeito da fusão das grandes fa­mílias tradicionais, da responsabilidade de proteger as heranças e nutri-las ao longo do tempo, e só pensara na rebeldia de Hermione, seminua e mais poderosa e atraente que uma deusa, na sala de Scatteree Pines.


Enquanto Harry mexia distraído nos pratos que se su­cediam à frente, perguntava-se como se casaria com al­guém adequado, se ainda sentia o gosto de Hermione, o seu corpo, se ainda a desejava com todas as forças? Não que houvesse dito ao avô, mas era como se ela o tivesse enfeitiçado, e ele ainda estava sob o seu encanto. Não conseguia encontrar outra explicação. Como sempre te­mera, Hermione era como um vício ao qual era e sempre fora suscetível, e que pensara poder controlar. Deseja­ra-a, e ainda a queria várias semanas depois, no meio da mais alta sociedade de Manhattan, apesar de tê-lo deixado sem dizer uma palavra. Deus o ajudasse, mas não conseguia pensar em mais nada: estava obcecado.


Para ser sincero, pensou, levantando-se para puxar a cadeira da acompanhante que voltava com a devida gentileza, não queria pensar em mais nada. Voltara a Nova York, ao trabalho cotidiano na administração da Potter Foundation e a tudo que ele representava, mas só pensava em Hermione. Chegava a sonhar com ela. Era o fantasma particular que o assombrava.


Com isso, Harry não ficou surpreso ao ouvir um mur­múrio se espalhar, voltar-se e ver Hermione entrando no salão, como se a conjurasse em pensamento. Sua presença o atingiu como um raio, e pela primeira vez em semanas ele deu um sorriso espontâneo, dirigido somente a ela. Estava maravilhosa, como ele já deve­ria esperar: não se tornara o ícone da sua geração por acaso, e ele deveria se lembrar que a Hermione que vira no Maine fora a sua versão não habitual, que ele consi­derara falsa, encenada para manipulá-lo.


Ele levou um tempo para conciliar a imagem que lhe viera à cabeça — o rosto sem maquiagem, o jeans desbotado, o seu velho suéter — com a incomparável beldade cercada por ad­miradores, que oferecia o seu sorriso de Mona Lisa aos fotógrafos como se estivesse muito à vontade e conten­te por voltar a ser o foco da atenção de Manhattan. E ela voltara a ser, como esperava.


— Hermione Grenger é realmente corajosa — murmurou Elizabeth Shipley Young num tom que nada tinha de elogioso, dando uma risadinha maldosa que fez com que Harry trincasse os dentes. — Pela maneira como se comporta ninguém desconfiaria da verdade a seu res­peito, não é? Como se fosse uma santa...


Harry olhou a companheira por um momento, tentan­do controlar a vontade de esganá-la: duvidava de que seu avô fosse aprovar e, além disso, supunha-se que fos­se um cavalheiro. Foi disso que tentou se lembrar.


— Não sabia que você conhecia Hermione — disse o avô por fim, num tom gélido. Elizabeth corou ao perceber o seu tom. Ou talvez, pela maneira com que a olhava.


— Não conheço — respondeu a moça, recuando na ca­deira, como se ele a esbofeteasse. — Não pessoalmente.


— Então talvez não saiba a verdade a respeito dela — observou Harry, mal contendo a fúria da qual Hermione teria rido, mas que, levava Elizabeth a se encolher. — Deveria pensar duas vezes, antes de fazer comentários que fazem com que pareça uma fofoqueira.


Engasgou e ficou muito vermelha. Harry percebeu que o avô o olhava com severidade, mas não conse­guiu se importar com isso, nem com o projeto de casa­mento que acabara de arruinar. Estava ocupado demais tentando entender por que reagira daquela maneira ao comentário de Elizabeth.


Não dissera coisas muito pio­res na cara de Hermione? Por que ficava furioso quando alguém fazia o mesmo? Olhou para Hermione novamente, enquanto passava pelo meio do salão, sorrindo como se já esperasse ser admirada, como se descesse de alguma nuvem para iluminar a festa. Ela vestia um maravilho­so vestido azul-escuro, bordado, que desafiava a lei da gravidade colando-se a seu corpo delicado e perfeito, deixando evidente que prescindia de roupas de baixo.


As contas do bordado refletiam as luzes e faziam-na brilhar a cada vez que se mexia ou respirava. Era mais bonita do que se lembrava. Harry descobriu que adorara a maneira como se pintara, acentuando os olhos admi­ráveis e a beleza dos cabelos curtos e negros, que na­quela noite lhe davam maior elegância e sofisticação do que teriam lhe dado os cachos louros. Hermione exalava mistério, sensualidade, e algo a mais, algo de novo. E de repente Harry percebeu o que era: a sua linhagem. Sé­culos de ascendência dos Granger, que jamais haviam parecido admitir como seus, teriam se concentrado e resultado numa segurança inabalável.


Hermione possuía o andar de quem dizia: podem falar de mim, mas irão me aceitar. Era ela mesma, mas era única e, por mais que fosse mal falada, ainda era uma Granger. Perceber isso naquela mulher — sua mulher, disse uma voz na cabeça de Harry — fazia com que o seu corpo vibrasse no mesmo tom. Hermione Granger voltara. E mal podia esperar para pôr as mãos nela.


 


 


Mais tarde, encontrou-se com ela nos degraus da en­trada do museu. Protegera-se do frio cortante de de­zembro, mas Harry ainda sentia o calor provocado pela longa noite que passara observando-a dançar com quem a convidasse, sorrindo para todos que se aproximavam, desempenhando o papel de perfeita herdeira, uma hon­ra há muito esperada por sua família. Por um momento não acreditara e pensara que era alimentado pela des­confiança que fazia o sangue correr em suas veias.


— Devagar, Cinderela — disse ao chegar perto o sufi­ciente para tocá-la, mas contendo-se no último instante. Se pudesse encostar em qualquer parte do corpo dela, sabia que tocaria todo o seu corpo ali mesmo, naquele momento, e o frio que fosse para o inferno.


Ela se voltou, e Harry teve o grande prazer de vislum­brar a Hermione que conhecia, por trás da criatura exótica que usava a máscara social perfeita. Conseguiu vislumbrá-la nos olhos dela, no discreto tremor da sua boca, antes que se escondesse rapidamente.


— Harry. — Sorriu, mas ele percebeu o quanto lhe cus­tara e ficou mais satisfeito do que deveria. — Tem o costume de perseguir mulheres que andam sozinhas à noite nas grandes cidades?


— Aonde vai? — falou em tom ameaçador. Harry se sentia perigoso como se houvesse uma fera dentro dele à espera de se soltar e correr ferozmente pelas ruas da cidade, ou simplesmente pular sobre ela e de­vorá-la. Mexeu-se, sentindo-se inquieto, agitado. Per­cebeu que Hermione engolia em seco e sentiu vontade de beijá-la na garganta, de colar os lábios na sua pele doce e macia...


— Não sabia que meu destino é da sua conta — pro­vocou ela num tom tão frio quanto o ar que os envol­via. Seus olhos também estavam frios e o seu rosto era a máscara perfeita, que odiava quase tanto quanto o sorri­so onipresente que ela lhe dava agora. — Quer realmen­te ser visto conversando comigo? Nos degraus do Met, onde pode ser visto por todo mundo de Manhattan? Com certeza, não quer se arriscar a ser infectado...


Falava num tom doce, mas com um olhar cortante. Sentia-se atingido pelos dois, recordando-se que a últi­ma visão que tivera de Hermione fora quando, sentada em cima dele, jogara a cabeça para trás e gritara de prazer enquanto atingiam o êxtase. Depois, ela caíra sobre o seu peito, soltando pequenos gemidos doces. Ele afas­tou as lembranças que lhe provocavam excitação e que em nada o ajudavam.


— Aqui está você, fugindo do baile depois de ter se esforçado tanto para convencer a todos de que mudou. — Fixou os olhos na bela máscara que ela insistia em usar. — Que surpresa. Existe alguma coisa de que não fuja? — Hermione estava diferente da mulher que ele pen­sara conhecer, ainda que superficialmente, no Maine. Seus olhos não tinham expressão, e odiou ver que, ao invés de reagir, ela se encolhia.


Parece que o meu interesse pela difamação não solicitada de caráter diminuiu desde a última vez em que o vi — falou ela em tom cortante, embora seu sor­riso o ferisse ainda mais fundo. — É um prazer vê-lo de novo, claro. Ainda mais quando não está fantasiado de pescador, tentando se passar por um deles, e voltou a se vestir com sua costumeira elegância. — Ela fez um gesto de desdém, indicando o elegante casaco que Harry vestira por cima do smoking. — Mas devo ir a outro lugar.


— Qual é o nome dele? — Harry pretendera manter a voz calma e indiferente, mas sentiu que o tom incontrolavelmente ameaçador com que falara parecia ecoar nas sombras do Central Park e reverberar nas avenidas. Hermione não se mexeu e não desviou os olhos, mas ele via uma veia pulsar em seu pescoço.


— Está se referindo ao meu acompanhante? — per­guntou ela com ironia. — Vim sozinha, Harry. Mulheres adultas podem fazer isso: andam sozinhas. Até eu posso.


— Estou falando do homem que a fez fugir para en­contrá-lo — falou num tom de acusação, que ela não demonstrou perceber. — O homem que a fez fugir da minha cama.


Hermione deu um suspiro silencioso que foi traído pelo vapor formado por sua respiração no ar frio. Harry sorriu sem nenhuma gentileza. Mal se reconhecia, mas não conseguia se conter.


— É aquele idiota com quem dançou quatro vezes esta noite? — perguntou, lembrando-se da criatura de aparência degenerada e olhar maldoso, que achou que a abraçara apertado demais, por muito tempo. — Parece uma ótima escolha. Creio que confundiu meu avô com um garçom.


— Chip Van Housen? — perguntou com frieza. — Di­ficilmente. — Emitiu um som de desprezo, como se a simples idéia fosse um insulto.


— Então, quem?


Ela contraiu a boca e o encarou por algum tempo.


— Ah, porque é preciso que haja um homem, claro — falou como se juntasse os fatos e estivesse chegan­do a uma conclusão nada agradável. — Considerando as minhas inclinações... Ou seria minha profissão? Não consigo distinguir. — Levantou a mão quando ele tentou falar. — Vá para o inferno, Harry — disse, olhando-o diretamente nos olhos. — De qualquer jeito, não é da sua conta.


As buzinas reclamavam na rua, os ônibus guinchavam ao frear nos sinais ao longo da 5a Avenida, Manhat­tan resplandecia de luz e energia, centenas de pessoas passavam por eles rapidamente. E Harry só via os olhos castanhos dela, o tremor quase imperceptível dos seus lábios. Quase.


Tudo que queria era tomá-la nos braços e carregá-la para longe, e não tinha certeza se queria jogá-la na cama ou algo ainda mais perigoso e confuso, como simplesmente abraçá-la e se desculpar por sempre magoá-la sem realmente querer. Mas isso era algo que não sabia como dizer e cujo significado se recusava a analisar. Só restava se concentrar inten­samente na mulher que o assombrava, mesmo quando estava parada ali, na sua frente.


— Acredita mesmo nisso, Hermione? — Aproximou-se, contente por ela calçar saltos exageradamente altos que os deixavam da mesma altura, e que o tornavam mais próximo da sua boca. Perto o suficiente para ina­lar o cheiro de baunilha. Sentia as mãos comicharem de vontade de tocá-la. — Acha que tudo acabou só por­que foi embora? Outra vez? Acha que será tão fácil desta vez?


— O que você quer, Harry? — Não estava mais fingin­do. Ele podia ver. Podia ver de novo a mulher que conhecera no castanho atormentado dos seus olhos, ouvi-la na sua voz. Senti-la no fundo do coração.


— Não sei — disse ele, como se as palavras lhe fossem arrancadas, como se não conseguisse mais controlá-las, assim como não conseguia controlar Larissa.


— Quer mesmo saber algo a respeito de Chip Van Housen? — perguntou num tom exaltado que ele não conseguiu identificar. — Costumava gostar dele, porque isto não agradava a Theo. Assim, conseguia atingi-lo e atendia à minha tendência autodestrutiva: matava dois coelhos de uma só vez. — Ela retorceu os lábios e os seus olhos chisparam. — Acha que lhe devo algo, mas não passa de um milionário abusado, que também acre­dita que o mundo lhe deve alguma coisa.


— E você não deve? — Harry se aproximou ainda mais e cedeu ao impulso inexplicável de passar a mão nos cabelos que caíam sobre a testa de Hermione. Viu-a tre­mer e entreabrir os lábios, e sabia que isso não fora efeito da própria imaginação, assim como não imagi­nava a maciez da sua pele sob os dedos.


— O que acha que eu lhe devo, ou ao mundo, ou a ou­tra coisa qualquer? — perguntou ela com a voz contida. — Que preço acha que devo pagar? Porque obviamente acha que eu tenho reparações a fazer. Por que não me diz do quê?


— Não foi isso que eu quis dizer — ele começou a falar.


— Não é o único que decidiu que queria ter uma imagem melhor — interrompeu com firmeza. — Só que, quando você tenta, é acompanhado por uma parada de confetes, enquanto outros precisam se reinventar longe dos elogios e de um bando de aduladores fingidos.


— Ainda com essa história de se reinventar... — Sa­cudiu a cabeça, furioso com ela. Furioso e algo mais, algo áspero que se mexia nele e que deixava feridas por onde passava. — Por que insiste neste jogo, Hermione? O que espera ganhar?


Por um momento ela pareceu ter levado um soco no peito. Harry a viu respirar com dificuldade, como se lhe doesse, e então ela recolocou a máscara. Não conseguia conciliar o olhar ferido que vira nos seus olhos com a imagem de exímia manipuladora que insistia em lhe atribuir: que deveria ser, porque, do contrário, nada fa­ria sentido.


— Sua acompanhante é adorável — falou Hermione calmamente, embora para ele soasse como veneno, como na bofetada forte. — Falando no que se quer ganhar... tenho certeza de que dará uma esposa dedicada e per­feita para você, de acordo com as exigências do seu avô.


Não se incomodou pela maneira que ela dissera aqui­lo, com os olhos brilhando.


— Por que acha que sabe quem seria a minha esposa perfeita? — perguntou, resolvendo desafiá-la. — Baseada em quê, exatamente?


— Parece suficientemente reverente. Duvido que vá se importar quando você inevitavelmente começar a ter os seus casos, como todos fazem. Sem dúvida, fi­cará até aliviada. Ela não me parece ser do tipo que se arrisca.


— Não como você — retrucou de propósito, olhando-a pensativa. — Está se oferecendo para ser a minha pri­meira amante?


— Não. Não serei eu. — Nos olhos dela havia o bri­lho de uma forte emoção, mas continuou a encará-lo. — Com certeza, será alguém, mas nunca serei eu.


— Mentirosa — disse, percebendo só depois que falara num sussurro, embora ainda estivesse furioso. Pensou se estaria realmente com raiva. — E covarde. Acha real­mente que pode continuar fugindo? Acha que se fazer de respeitável a salvará?


— Já tive o bastante... — começou a dizer, revoltada.


Harry não podia mais fingir. Calou-a do único jeito que conhecia: com um beijo, com toda a paixão, avi­dez e raiva que estivera carregando durante semanas. Beijou-a até tudo desaparecer e existir só Hermione, seu gosto, seu perfume, o seu corpo. Segurou-a pelo rosto e beijou repetidamente, até amenizar a angústia que sen­tia, enquanto o fogo que ardia entre os dois se tornava cada vez mais forte.


Harry se esqueceu de tudo: onde es­tavam, quem eram, do papel que deveriam representar ali, naquela noite, de quem poderia estar olhando. Queria estar dentro, em cima dela, embaixo, ao seu lado, até estar tão misturado que não poderia mais dizer onde ele terminava e Hermione começava. Deus, o que daria para possuí-la novamente!


Ela deu um gemido abafado e inesperadamente se afastou.


— Hermione...


— Não me quer, Harry — falou com voz trêmula. — Quer o que acha que eu sou, o que vê quando me olha, mas não me quer.


— Não sabe o que eu quero — retrucou, mas se pertur­bou ao perceber que também não sabia.


— Não me importa — falou com um olhar sombrio. Naquele momento, Harry teve a forte sensação de que o chão tremia, levando-o a perder o equilíbrio: percebera estar diante da verdadeira Hermione, como sempre dese­jara, e ela parecia sombria, zangada e entristecida.


— Eu me importo com o que quero. E não é isto: beijar mais um homem que me odeia no íntimo, no escuro, enquan­to a mulher com quem deverá se casar o espera num lugar adequado e amplamente iluminado.


— Quero você — argumentou, tentando se aproximar, mas Hermione recuou e lhe lançou um olhar que o atingiu como se fosse uma faca.


— Não me conhece — falou ela com desdém. — Como todos os outros, você quer uma fantasia que nada tem a ver comigo e jamais terá.


— Conheço-a mais do que pensa — disse, com o cora­ção acelerado dentro do peito e com as mãos contraí­das por não poder tocá-la, abraçá-la e fazê-la mudar de idéia do único jeito que sabia.


— Não — falou com indiferença. — Você não conhece. Mas eu conheço você. — Os olhos dela brilharam e pare­ceram atravessá-lo. — Você se sente perfeitamente à von­tade para me destruir por todos os meus defeitos aparen­tes, mas, enquanto isso, tudo que faz é dançar conforme a música do seu avô. Nunca vai se castigar o suficiente, não é, Harry? E, no entanto, jamais conseguirá trazer a sua mãe de volta, ou fazer com que seu avô o trate melhor.


— Cale-se — ordenou secamente, subitamente sentin­do frio como se a noite de dezembro entrasse em sua alma.


— Prefere viver infeliz, pelo resto da vida a enfrentar seu avô — falou, como se não percebesse o perigo. — Chegaria a se casar se ele ordenasse, como se estivés­semos em 1882. Mas se dá o trabalho de me dizer o pesadelo que sou neste cenário. Sou a fraca, o embara­ço. Pelo menos não finjo ser diferente. — Ela ergueu o queixo. — Com todas as minhas falhas e defeitos.


— Diz a mulher que dedicou sua vida a negar o pró­prio legado! — retrucou Harry, incapaz de entender o caos das emoções que sentia: a revolta, a cólera, e algo mais que não sabia o que era. Identificação? Não podia estar certa, podia?


— Você sequer me enxerga — falou ela com tristeza. — Nunca vai me enxergar.  


Olhou-o fixamente, e Harry percebeu que a perdera. Que falhara com ela. Que iria embora outra vez. Porém reconhecia que a culpa fora sua, que não conseguira segurá-la. Notou que os lábios de Hermione tremiam, enquanto se afastava. Não voltaria para ele. Não naquela noite. Talvez, nunca mais.


— Hermione... — disse. Mas era tarde demais. Já se vol­tara e descia a rua, deixando-o parado ali, sozinho, ten­tando descobrir o que acontecera e pensar no que iria fazer.

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